'DE SEGUNDA A SEGUNDA: Religiosos da
Universal alegam ter sido obrigados a trabalhar na TV Record
33 anos depois de
comprar a Record e anunciar aos fiéis a criação da primeira televisão
evangélica do país com uma programação religiosa 24 horas por dia, o bispo Edir
Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, está perto de cumprir a
promessa.
Relatos de religiosos
e processos judiciais aos quais o Intercept Brasil teve acesso
mostram que a Universal está abocanhando cada vez mais a produção de conteúdo
da Record – e se aproveitando de suas vantagens tributárias como igreja para
exercer uma atividade comercial.
Por enquanto, a
Universal já montou uma estrutura dentro da Record para atender às demandas de
programas da igreja. A igreja é responsável por toda a produção de novelas e séries da Record desde 2023. E também por
entrevistas, debates, transmissões de cultos e eventos exibidos na Record e em
horários comprados em outras emissoras, segundo ex-pastores da Universal que
movem ações na justiça contra a emissora. As entrevistas, debates e cultos são
produtos da chamada TV Universal – que não existe juridicamente. Alguns
bispos e pastores já têm ocupado a posição de radialistas, segundo os relatos
de ex-religiosos à Justiça.
Em uma ação que tramita
no Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, o Sindicato dos Radialistas do
Rio de Janeiro pede a condenação da Universal por descumprimento das convenções
coletivas de trabalho da categoria. O sindicato listou programas produzidos
pela igreja que, de acordo com depoimentos de ex-religiosos, têm a supervisão e
coordenação de bispos e pastores: “Fala que eu te escuto”, “The Love School”,
“Entrelinhas” e “O Santo Culto em seu Lar”, entre outros.
Esses programas da TV
Universal são exibidos na Record ou em emissoras concorrentes, como a Gazeta de
São Paulo, Rede TV, CNT, CNI e TV Templo, que alugam horários para a igreja.
Geralmente vão ao ar à noite, em horário nobre, nas madrugadas ou pelas manhãs.
Há casos em que os programas religiosos da Universal chegaram a ocupar toda a
grade da emissora, como acontecia na Rede 21, mas a parceria de nove anos foi
interrompida em dezembro de 2022, devido a um embate judicial.
Um ex-religioso ouvido
pelo Intercept na condição de anonimato afirma que a Igreja Universal mantém
hoje uma equipe de 250 pessoas – 130 no Templo de Salomão e 120 na catedral
João Dias, em Santo Amaro, zona sul de São Paulo –, responsável por produzir conteúdo
para a Record e outras emissoras.
Segundo ele, que se
desligou da Universal no ano passado, bispos e pastores têm produzido
entrevistas e vídeos e operado equipamentos, executando funções de redatores e
produtores de vídeos, entre outras atividades. Quem não sabe executar a função
é obrigado a se virar e aprender sozinho, afirmou.
A igreja mantém cerca
de 3,5 mil funcionários em todo o Brasil e ao menos outros 250 deles integram
equipes de comunicação nos demais estados, estima o ex-pastor.
Religiosos designados
para essas atribuições que se desligaram da Universal recentemente passaram
então a mover ações na Justiça, alegando acúmulo de funções e desvio da
atividade da atividade religiosa.
·
‘Trabalhava sete dias por semana, até duas
da manhã’
Um outro ex-pastor,
também sob anonimato, pediu na justiça uma indenização de R$ 1,6 milhão.
Vinculado à Universal desde 2003, quando tinha 17 anos, ele afirmou à 69ª Vara
do Trabalho de São Paulo ter atuado como supervisor de produção na área de TV
sem registro em carteira.
Em novembro de 2023, a
justiça do trabalho condenou a Universal em primeira instância a pagar uma
indenização de R$ 800 mil pela falta de vínculo empregatício, desvio de função
e danos morais por ele ele ter sido obrigado pela Igreja a fazer vasectomia.
A juíza substituta do
Trabalho Franciane Aparecida Rosa considerou que a prova dos autos “é clara em
relação ao labor do autor na produção da TV, sendo que por tal período a ré não
comprovou sua atuação ministerial (como pastor) dentro da Igreja, não havendo
prova sequer da realização de cultos pelo reclamante”. A Universal
recorreu.
O Intercept teve
acesso ao processo do ex-pastor. Na ação, ele disse ter atuado na produção de
TV da Universal a partir de 2012, trabalhado na central da equipe na catedral
João Dias, em Santo Amaro, na capital paulista; e ainda em Campinas, no
interior paulista, na Bahia e no Maranhão.
Afirmou ter começado
na área de audiovisual dos programas de televisão, “executando a gestão
administrativa e de produção de TV e vídeo, operando equipamentos de câmeras e
editor de vídeo, gravações internas e externas”, durante “sete dias por semana,
de segunda a segunda”, muitas vezes “até às duas da manhã”, conforme consta em
sua ação.
Em São Luís, no
Maranhão, ele disse ter feito a gestão do programa “Fala que eu te escuto”.
Após ser transferido para o setor administrativo da Universal em São Paulo,
contou ter atuado no departamento de conteúdo online da Univer Vídeo, empresa
do grupo que produz e comercializa filmes. O ex-pastor cuidou também do
programa “Entrelinhas”.
“Tinha de editar as
matérias, pois não tinha produtora nem editora do programa, e enviava para o
bispo Renato Cardoso [genro de Edir Macedo e o segundo nome da hierarquia da
Universal hoje] no sábado ou domingo para a aprovação”, relatou. “Eu recebia
mensalmente como pastor, mas não exercia a função de pastor”.
Em outro processo, o
Sindicato dos Radialistas do Rio de Janeiro pediu a relação de todos os
radialistas contratados pela Universal para atuar em programas da Record e
outras emissoras, e também a lista de contratos sociais, grades de programação
e contratos de compra de espaços nas outras TVs. O sindicato reivindica o
cumprimento de direitos trabalhistas e a aplicação de multas à iIgreja. Na
justiça, a entidade venceu em primeira e segunda instâncias, e a Universal
recorreu ao TST.
Segundo o ex-pastor
que disse ter comandado uma gerência de produção de conteúdo – e evitou se
identificar por ter um processo em andamento na justiça –, os religiosos que
atuam em produção de conteúdo para a TV não têm registro em carteira.
Ele contou que outras
empresas do grupo Universal estão também envolvidas nessa produção de conteúdo.
Além da Univer Vídeo, ele citou também a MJC Music, que produz trilhas sonoras
e é comandada pelo pastor Isaías de Oliveira, e a Unipro Editora – responsável
pela publicação de livros da Universal, mas que alterou o seu contrato social e
incluiu em sua atividade econômica também a produção de vídeos.
·
Filha do bispo comanda séries e novelas na
Record
A filha de Edir
Macedo, Cristiane Cardoso – casada com o bispo Renato Cardoso, agora o
herdeiro na Universal –, tornou-se supervisora de teledramaturgia da
Record em 2015. É ela quem dá a última palavra sobre a produção de séries e
novelas.
Em 2022, Cristiane
assinou sua primeira novela como autora principal: a sexta temporada de “Reis”.
A novela, fora do ar no momento, voltará em abril, na décima temporada. Em nova
série a ser lançada em 2024, “A Rainha da Pérsia”, a filha de Edir Macedo
assina, além da trama, também a autoria da trilha de abertura, que tocou em seu piano.
Em janeiro de 2023, a
Universal assumiu oficialmente a
produção das novelas da TV Record. Ao deixar de produzir suas próprias novelas
e séries, a Record passou a comprar capítulos prontos entregues pela igreja, com um
preço fixo. Se o orçamento da TV estourar, o prejuízo é da igreja. Assim, a
emissora espera voltar a registrar lucro. A produção das novelas e séries
continuou terceirizada à empresa Casablanca Estúdios, do Rio de Janeiro. Esse
núcleo de produção era conhecido antes como RecNov.
A motivação para o uso
de pastores em atividades que deveriam ser executadas por radialistas é
econômica e visa a redução de custos, segundo a advogada Márcia Cajaíba, que
atua em processos contra a Igreja. A TV Record enfrenta uma crise financeira:
em 2023, demitiu cerca de 200 funcionários, entre eles famosos como a apresentadora Janine Borba e o repórter
esportivo Roberto Thomé.
Na Record Rio, houve
novas demissões um mês depois. No final
de janeiro, houve 18 demissões na Record
Goiânia, e no início de fevereiro dois conhecidos jornalistas da emissora, Luiz
Gustavo e Priscilla Doroche, também perderam o emprego.
Segundo o site
Notícias da TV, a Igreja Universal tem injetado quase R$ 1 bilhão por ano na
emissora para conter a crise. Em 2022, foram R$ 907 milhões, 10% a
mais do que no ano anterior, quando somou R$ 822 milhões.
“A Igreja coloca um
pastor nessas funções por que considera a atividade dele uma vocação. Então o
deixa lá full time e sem ter direito a qualquer qualificação, já que não tem
limite de horário de trabalho, podendo trabalhar à noite e por aí vai, sem qualquer
alcance pela legislação trabalhista”, afirmou Cajaíba.
Para a advogada, a
Universal, ao colocar religiosos nessas funções, procura se livrar da
obrigação de pagar direitos trabalhistas a radialistas e já se prepara também
para obter mais benefícios com uma possível ampliação da isenção tributária às
igrejas, proposta apresentada por membros da bancada evangélica por meio de
projetos que tramitam no Congresso. “Como a igreja é uma instituição com fins
filantrópicos e hoje ainda se discute a ampliação dessa isenção de tributos,
profissionais de rádios e TV também passaram a ser contratados pela igreja”,
disse Cajaíba.
·
‘O pastor trabalha full time, sem limite de
horário.’
Passando parte de
contratações da Record para a Universal – que é isenta de impostos (de renda,
IPTU e IPVA), de acordo com a Constituição –, a Record diminuiria seus
encargos, alivia sua situação financeira e tenta voltar a obter lucro.
“A Universal está
agindo de forma desleal no mercado de telecomunicações (rádio e TV) e atuando
como se fosse uma empresa pública na área da comunicação”, diz a advogada, que
atua em um processo por desvio de função movido contra a igreja por um ex-pastor,
que também não quis se identificar.
A lista de benefícios
fiscais pode ficar ainda maior. Líderes evangélicos no Congresso já apresentaram projetos de lei que incluem isenção de impostos para a aquisição de serviços e
bens – até imóveis e avião.
O deputado Marcos
Soares, do União fluminense, filho do missionário R.R.Soares, líder da Igreja
Internacional da Graça, e sobrinho do bispo Edir Macedo, apresentou
recentemente uma emenda à medida provisória do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, propondo ainda isenção fiscal sobre
os salários de pastores.
A decisão da Universal
de colocar bispos e pastores para produzir conteúdo para a Record reacende a
discussão sobre a proposta, engavetada no passado, de a igreja ter uma
televisão evangélica com programação religiosa 24 horas por dia.
Na época da compra da
Record, a Universal pediu ofertas com esse objetivo e muitos fiéis e
obreiros chegaram a vender até suas camas e geladeiras em casa para arrecadar o
dinheiro necessário para a empreitada.
Naquele final dos anos
1980, a Universal, uma igreja evangélica emergente e até então conhecida apenas
no Rio de Janeiro, surpreendeu o Brasil ao comprar por US$ 45 milhões a
Record, a segunda maior rede de TV do país. À época, travou uma batalha gigante
com grandes conglomerados de comunicação, principalmente a Globo, e com a
Igreja Católica.
A Record, até então,
era uma emissora celebrada por revelar Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano
Veloso e Gilberto Gil, entre outros, em programas de auditórios de sucesso e
históricos festivais de MPB na década de 1960, durante a ditadura militar. Com
a mudança, os bispos e pastores se chocavam com a rotina de jornalistas e
artistas da televisão. Queriam impor na emissora até o uso de gravata e cabelo
curto na redação. Mas sem sucesso.
No início dos anos
2000, a Universal passou a preparar um de seus fiéis, Douglas Tavolaro, então
um jovem redator de revista semanal que viraria depois editor e produtor de
reportagens na Record, para assumir a vice-presidência de Jornalismo da
emissora. Tavolaro, que deixou o cargo em 2019 para trabalhar na CNN Brasil,
fez a ponte, com êxito, entre os patrões evangélicos e os profissionais de
comunicação. Agora, a Universal começa a dar passos em direção ao velho projeto
original.
Procurada, a Universal
não respondeu aos questionamentos do Intercept.
Fonte: Por Gilberto
Nascimento, em The Intercept
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