Dora Incontri: O fundamentalismo e a
extrema-direita
A breve entrevista com
as senhoras apoiadoras de Bolsonaro no domingo, publicada e comentada por meio
mundo, e que teve a incrível fala – “apoio Israel porque sou cristã” – diz
muito sobre a extrema direita e o fundamentalismo religioso. Tal fundamentalismo
– que é sinônimo de fanatismo – tem algumas características constantes,
presentes em todas as religiões. O seu apego à letra e não ao espírito, de uma
tradição espiritual, portanto, leitura literal, sem interpretação de texto, sem
contextualização, acrítica. A escolha e até a adaptação dessa leitura ao que há
de mais opressor, conservador e por isso destoante de uma visão aberta,
acolhedora, fraterna, compassiva. O fundamentalismo é alimentado por líderes
perversos, interesseiros e hipócritas e aceito e multiplicado por pessoas
simplórias, emocionalmente vulneráreis, sem base cultural – como essas
senhorinhas da citada entrevista. Oportunismo e perversidade de um lado,
ingenuidade e ignorância de outro.
O pior é que o
fundamentalismo cresce exponencialmente no mundo na maioria das religiões do
planeta de que se tem notícia. Até budistas têm atacado cristãos no Sri Lanka –
quando poderíamos supor que a compaixão de Buda jamais fosse manchada por atos
de agressão. E o fundamentalismo cresce alimentando a extrema direita no campo
político e vice-versa. É uma retroalimentação infernal.
A extrema direita
também é fundamentalista, também arrebanha pessoas vulneráveis e acríticas e
agora sujeitas à hipnose das Fake News, que enceguecidas pela doutrinação em
massa de grupos de WhatsApp e de outras redes, repetem absurdos aos quatro
ventos. Absurdos como essa resposta acima das apoiadoras do inelegível: se elas
fossem de fato cristãs, deveriam estar chorando pelas mais de 12 mil crianças
mortas na Palestina, e por outras milhares órfãs e famintas.
Os fundamentalistas e
a extrema direita têm em comum o repúdio à ciência, ao conhecimento, aos fatos.
Têm horror aos artistas, aos intelectuais; abominam a liberdade (embora possam
citá-la aqui e acolá e até se dizerem seus defensores). Não valorizam a educação.
O fato é que essa gente está tomando conta de muitas narrativas, de muitos
governos, de muitos movimentos no mundo…
Há um filme dirigido
por Alejandro Amenábar (2009), Alexandria, que mostra o momento crucial de
quando o mundo ocidental está mergulhando na Idade Média e a grande filósofa e
astrônoma, Hipátia, é morta em 415 por cristãos, que começavam a dominar a cultura
de forma obscurantista e fanática. Esperemos que não estejamos adentrando uma
nova Idade Média.
Erich Fromm, um dos
pensadores que promoveu um instigante diálogo entre marxismo e psicanálise, faz
um imprescindível estudo no livro A Análise do Homem, sobre religiões
humanistas e religiões autoritárias e sobre fé racional e fé irracional.
Comenta que dentro das próprias religiões, há uma tensão entre essas
tendências. Diz ele que “a fé irracional é uma convicção fanática em alguém ou
algo, radicada na sujeição e na autoridade irracional, pessoal ou impessoal. A
fé racional, em contraste, é uma convicção firme baseada na atividade
produtiva, intelectual e emocional.”
Allan Kardec já dissera no século XIX em O Evangelho segundo o
espiritismo, que “fé inabalável é aquela que pode encarar a razão face a face
em todas as épocas da humanidade” e que “a fé sincera e verdadeira é sempre
calma. (…) A fé insegura sente a sua própria fraqueza, e quando estimulada pelo
interesse torna-se furiosa e acredita poder suprir a força com a violência.”
Em outro brilhante
livro de Erich Fromm, um dos melhores que já li na vida, O medo à Liberdade, o
autor faz uma leitura social, histórica e psicanalítica sobre o porquê das
massas aderiram ao nazismo na Alemanha. Profundas carências afetivas humanas
podem levar multidões a um comportamento de submissão cega a líderes canalhas.
E não se poderia curar essa psicose coletiva, sem que o povo pudesse
reencontrar um sentido de pertencimento mais saudável e horizontal. Mais recentemente, e já citei nessa coluna, há
o livro de Alysson Mascaro, Crítica ao Fascismo, que também traz análises
importantes, mostrando como o próprio capitalismo favorece esses momentos
extremos de fascismo e que apenas uma ruptura estrutural com esse sistema
poderia evitar essa recorrência histórica.
Muito necessário nos debruçarmos sobre essas e
outras leituras, mais ainda debatermos e pensarmos maduramente sobre todo esse
quadro alarmante, para acharmos estratégias inteligentes e urgentes de
despertar a racionalidade, o bom senso e o apreço à verdade nas massas,
cooptadas por lideranças religiosas fundamentalistas e políticos de extrema
direita – que andam de conluio para nos fazer voltar à Idade das Trevas, de
terraplanismos, repressões, opressões e supremo autoritarismo.
Não subestimemos as
milhares de pessoas que compareceram na Paulista neste domingo. Que Deus nos
livre desses líderes toscos e manipuladores que usam um deusinho tirano para
cooptar os incautos do Whatsapp!
Ø
Conformismo com prisão e ódio a Moraes: o
que pensam os bolsonaristas que estiveram na Av. Paulista em 25 de fevereiro
O ato em apoio a Jair
Bolsonaro na Avenida Paulista no domingo (25) não teve apenas o objetivo de
demonstrar força política em pleno ano eleitoral e em meio ao avanço das
investigações da Polícia Federal, mas também serviu para vacinar os apoiadores
contra a prisão iminente do ex-presidente. A massa bolsonarista demonstrou que
acredita cegamente na narrativa de perseguição do Judiciário e exalou um
sentimento de injustiça misturado com um certo conformismo e a fé inabalável de
que Bolsonaro dará a volta por cima e voltará ao poder.
O GGN esteve
presente no ato e conversou com manifestantes de diversas regiões de São Paulo
e do país. Em linhas gerais, o cenário encontrado foi de propagação de
desinformação e ódio contra ministros do Supremo Tribunal Federal e uma fusão
cada vez mais perigosa entre política e religião, com uma maioria branca
ostentando bíblias e bandeiras de Israel – ignorando o massacre dos palestinos
na guerra em Gaza.
A horda foi
contemplada com os discursos inflamados, totalitários e fundamentalistas dos protagonistas do vento,
sobretudo Michelle Bolsonaro a Silas Malafaia,
que ambientaram melhor do que ninguém a realidade paralela onde vivem os apoiadores de Bolsonaro.
À reportagem,
bolsonaristas declararam que não existe mais Estado Democrático de Direito, que
o atentado de 8 de Janeiro de 2023 foi uma trama de baderneiros infiltrados e
da esquerda. Sustentaram, ainda que o país vive uma ditadura e precisa reagir
ao “cenário de golpe”, segundo eles, perpetuado pelo ministro Alexandre de
Moraes, o “ditador”.
É assim que pensa
Djalma, 73 anos, morador da capital paulistana. Para ele, a manifestação passou
um recado ao presidente Lula e ao STF: o poder de controlar as massas está nas
mãos de Jair Bolsonaro. Na visão do idoso, basta Bolsonaro se mobilizar para “voltarmos”
ao Estado Democrático de Direito, fazendo uso do Art. 142 da Constituição –
que, no imaginário bolsonarista, viabiliza o uso das Forças Armadas contra
outros Poderes da República.
“Se o Bolsonaro
chamar, ele pode parar esse país, e a gente pode parar o desrespeito à
Constituição e os desmandos desse governo ladrão que chama Lula. Paramos o
Agro, paramos com os caminhoneiros, paramos com tudo até cair esse governo e o
STF“, declarou.
Para
Djalma, “hoje não existe democracia, existe uma ditadura comandada por
Alexandre de Moraes”.
Um casal abordado pela
reportagem disse que o ato na Av. Paulista foi pacífico e necessário para
defender a democracia. “Porque do jeito que está, se nós deixar [sic], a
Venezuela está a caminho”.
À luz do discurso do
líder reacionário Silas Malafaia, que usou seu tempo para demonizar o Supremo e
colocar, mais uma vez, Bolsonaro como o político mais perseguido dos últimos
tempos, moradores da Rua Pamplona, nos arredores da região, disseram que, com
base na proporção do evento – que preencheu quatro de 18 quarteirões da
Paulista – agora Moraes pensará duas vezes antes de dar voz de prisão a
Bolsonaro.
“O Alexandre de Moraes
vai pensar bem se vai prender ele [Bolsonaro], porque ele viu que o povo está
invocado. É um louco, aquele careca maldito”.
Além de atacar o
ministro do STF, o grupo bolsonarista também criticou a imprensa, mais
precisamente o programa Fantástico, da Rede Globo, sugerindo que a edição do
domingo (25) propagaria números inverídicos sobre a quantidade de presentes no
evento pró-Bolsonaro, tentando esvaziar o ato.
Também de São Paulo
capital, a bolsonarista Andreia Vicente fortaleceu a teoria sem comprovação
de fraude no sistema eleitoral, e sustentou que a vitória de Lula não foi
legítima.
·
Preconceito, intolerância e conservadorismo
Marca registrada da
extrema-direita, o preconceito e a intolerância contra minorias e os apoiadores
de Lula e do PT também foram expressados por uma bolsonarista, endossando o teor de culto religioso que o
ato na Paulista teve neste domingo.
“Nosso
povo é nosso povo, né? Tem que respeitar, empresário, microempresário, é o povo
de bem. Não tem nenhum vagabundo aqui. O povo do Lula é quem? Veado,
bandido e que quer comer de graça. O povo do Lula é só gente errada”.
O interior de São
Paulo também marcou presença na Av. Paulista. Um manifestante abordado
pelo GGN defendeu que a manifestação reafirma os valores
conservadores, incorporados ao slogan de Bolsonaro, “Deus, Pátria,
Família”. “Essa manifestação é para mostrar ao Brasil a força que a
direita está tomando”, disse ele.
·
Conformados
Uma expressão
reproduzida em peso após os discursos que terceirizavam a responsabilidade de
Bolsonaro sobre o 8 de Janeiro foi “engenharia do mal”, usada pelo pastor Silas
Malafaia para descrever o que o Supremo, “covarde, ao arrepio da lei e da
Constituição”, está tramando para prender Bolsonaro.
Um idoso deixou suas
condolências a Bolsonaro e disse que “está tudo errado, é uma injustiça” o
processo judicial que o ex-presidente deve enfrentar por tentativa de golpe.
Apenas Israel é
“vítima“
O sentimento de
traição do Brasil ao Estado de Israel, por causa das recentes declarações de
Lula condenando o genocídio em Gaza, foi outro ângulo explorado na passeata
pelo vácuo do imaginário coletivo bolsonarista.
De acordo com o
bolsonarista André Rhouglas, Lula errou ao comparar Netanyahu a Hitler, e
estaria dando apoio ao Hamas, o que é uma informação falsa. “Aquele
cara que não me representa, falar aquele coisa do Holocausto, desrespeitando e
falando mal, mais ainda, dando crédito ao Hamas”.
Como se sabe, em
discurso que gerou crise diplomática, Lula não disse “holocausto” e condenou o
Hamas. O GGN fez a checagem do discurso
do presidente: frase distorcida e recortada de ampla
fala tornou-se uma polêmica internacional.
Já a bandeira de
Israel foi utilizada por diversas pessoas, inclusive com estampas erradas, como
um pentagrama no lugar da estrela de Davi. A ignorância em relação ao que
pensam defender ficou estampada em vídeo que viralizou nas redes, do jornalista
Joaquim de Carvalho, do 247, onde três senhoras afirmaram que defendem Israel
porque eles são “cristãos”. No entanto, não existe um Messias para os judeus. A
desinformação da extrema-direita associada à rejeição do comunismo ou
socialismo foi marca do trio.
·
Devoção aos policiais
Um outro ponto que
chamou a atenção no perfil do público foi a devoção aos policiais presentes no
ato. Através de elogios, fotos e vídeos, o serviço prestado pela Tropa de
Choque foi exaltado em demasia. Para Luana Quinteiro, 26, da zona Leste de SP,
a abordagem dos profissionais muitas vezes não é reconhecida como deveria, pelo
fato de os suspeitos muitas vezes saírem como “vítimas”.
Entre os que apoiam
Bolsonaro, uma característica que ajuda a constituir o perfil dos manifestantes
mais jovem é a ignorância declarada sobre política e atualidades. “Sou
uma pessoa que não acompanha muito política por causa dos meus compromissos”.
·
Gratidão
Os adeptos a crenças e
valores propagados pelo clã Bolsonaro também estiveram no ato em prol de um
mundo mais democrático. Bianca Vicente, de São Paulo, fez questão de marcar
presença “não pelo Boslonaro, pelas ideias que batem com a minha de
família, de Deus, de pátria”.
O apelo religioso nos
discursos de Michelle Bolsonaro e Silas Malafaia agradou os apoiadores que
seguravam bíblias, e que não querem separar política de religião, o que
contribui para a produção da dissonância cognitiva coletiva, um Brasil
paralelo, que fratura a espinha dorsal dos valores
verdadeiramente cristãos e democráticos.
Fonte: Jornal GGN
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