quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Dora Incontri: O fundamentalismo e a extrema-direita

A breve entrevista com as senhoras apoiadoras de Bolsonaro no domingo, publicada e comentada por meio mundo, e que teve a incrível fala – “apoio Israel porque sou cristã” – diz muito sobre a extrema direita e o fundamentalismo religioso. Tal fundamentalismo – que é sinônimo de fanatismo – tem algumas características constantes, presentes em todas as religiões. O seu apego à letra e não ao espírito, de uma tradição espiritual, portanto, leitura literal, sem interpretação de texto, sem contextualização, acrítica. A escolha e até a adaptação dessa leitura ao que há de mais opressor, conservador e por isso destoante de uma visão aberta, acolhedora, fraterna, compassiva. O fundamentalismo é alimentado por líderes perversos, interesseiros e hipócritas e aceito e multiplicado por pessoas simplórias, emocionalmente vulneráreis, sem base cultural – como essas senhorinhas da citada entrevista. Oportunismo e perversidade de um lado, ingenuidade e ignorância de outro.

O pior é que o fundamentalismo cresce exponencialmente no mundo na maioria das religiões do planeta de que se tem notícia. Até budistas têm atacado cristãos no Sri Lanka – quando poderíamos supor que a compaixão de Buda jamais fosse manchada por atos de agressão. E o fundamentalismo cresce alimentando a extrema direita no campo político e vice-versa. É uma retroalimentação infernal.

A extrema direita também é fundamentalista, também arrebanha pessoas vulneráveis e acríticas e agora sujeitas à hipnose das Fake News, que enceguecidas pela doutrinação em massa de grupos de WhatsApp e de outras redes, repetem absurdos aos quatro ventos. Absurdos como essa resposta acima das apoiadoras do inelegível: se elas fossem de fato cristãs, deveriam estar chorando pelas mais de 12 mil crianças mortas na Palestina, e por outras milhares órfãs e famintas.

Os fundamentalistas e a extrema direita têm em comum o repúdio à ciência, ao conhecimento, aos fatos. Têm horror aos artistas, aos intelectuais; abominam a liberdade (embora possam citá-la aqui e acolá e até se dizerem seus defensores). Não valorizam a educação. O fato é que essa gente está tomando conta de muitas narrativas, de muitos governos, de muitos movimentos no mundo…

Há um filme dirigido por Alejandro Amenábar (2009), Alexandria, que mostra o momento crucial de quando o mundo ocidental está mergulhando na Idade Média e a grande filósofa e astrônoma, Hipátia, é morta em 415 por cristãos, que começavam a dominar a cultura de forma obscurantista e fanática. Esperemos que não estejamos adentrando uma nova Idade Média.

Erich Fromm, um dos pensadores que promoveu um instigante diálogo entre marxismo e psicanálise, faz um imprescindível estudo no livro A Análise do Homem, sobre religiões humanistas e religiões autoritárias e sobre fé racional e fé irracional. Comenta que dentro das próprias religiões, há uma tensão entre essas tendências. Diz ele que “a fé irracional é uma convicção fanática em alguém ou algo, radicada na sujeição e na autoridade irracional, pessoal ou impessoal. A fé racional, em contraste, é uma convicção firme baseada na atividade produtiva, intelectual e emocional.”   Allan Kardec já dissera no século XIX em O Evangelho segundo o espiritismo, que “fé inabalável é aquela que pode encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade” e que “a fé sincera e verdadeira é sempre calma. (…) A fé insegura sente a sua própria fraqueza, e quando estimulada pelo interesse torna-se furiosa e acredita poder suprir a força com a violência.”

Em outro brilhante livro de Erich Fromm, um dos melhores que já li na vida, O medo à Liberdade, o autor faz uma leitura social, histórica e psicanalítica sobre o porquê das massas aderiram ao nazismo na Alemanha. Profundas carências afetivas humanas podem levar multidões a um comportamento de submissão cega a líderes canalhas. E não se poderia curar essa psicose coletiva, sem que o povo pudesse reencontrar um sentido de pertencimento mais saudável e horizontal.  Mais recentemente, e já citei nessa coluna, há o livro de Alysson Mascaro, Crítica ao Fascismo, que também traz análises importantes, mostrando como o próprio capitalismo favorece esses momentos extremos de fascismo e que apenas uma ruptura estrutural com esse sistema poderia evitar essa recorrência histórica.

 Muito necessário nos debruçarmos sobre essas e outras leituras, mais ainda debatermos e pensarmos maduramente sobre todo esse quadro alarmante, para acharmos estratégias inteligentes e urgentes de despertar a racionalidade, o bom senso e o apreço à verdade nas massas, cooptadas por lideranças religiosas fundamentalistas e políticos de extrema direita – que andam de conluio para nos fazer voltar à Idade das Trevas, de terraplanismos, repressões, opressões e supremo autoritarismo.

Não subestimemos as milhares de pessoas que compareceram na Paulista neste domingo. Que Deus nos livre desses líderes toscos e manipuladores que usam um deusinho tirano para cooptar os incautos do Whatsapp!

 

Ø  Conformismo com prisão e ódio a Moraes: o que pensam os bolsonaristas que estiveram na Av. Paulista em 25 de fevereiro

 

O ato em apoio a Jair Bolsonaro na Avenida Paulista no domingo (25) não teve apenas o objetivo de demonstrar força política em pleno ano eleitoral e em meio ao avanço das investigações da Polícia Federal, mas também serviu para vacinar os apoiadores contra a prisão iminente do ex-presidente. A massa bolsonarista demonstrou que acredita cegamente na narrativa de perseguição do Judiciário e exalou um sentimento de injustiça misturado com um certo conformismo e a fé inabalável de que Bolsonaro dará a volta por cima e voltará ao poder.

O GGN esteve presente no ato e conversou com manifestantes de diversas regiões de São Paulo e do país. Em linhas gerais, o cenário encontrado foi de propagação de desinformação e ódio contra ministros do Supremo Tribunal Federal e uma fusão cada vez mais perigosa entre política e religião, com uma maioria branca ostentando bíblias e bandeiras de Israel – ignorando o massacre dos palestinos na guerra em Gaza.

A horda foi contemplada com os discursos inflamados, totalitários e fundamentalistas dos protagonistas do vento, sobretudo Michelle Bolsonaro a Silas Malafaia, que ambientaram melhor do que ninguém a realidade paralela onde vivem os apoiadores de Bolsonaro.

À reportagem, bolsonaristas declararam que não existe mais Estado Democrático de Direito, que o atentado de 8 de Janeiro de 2023 foi uma trama de baderneiros infiltrados e da esquerda. Sustentaram, ainda que o país vive uma ditadura e precisa reagir ao “cenário de golpe”, segundo eles, perpetuado pelo ministro Alexandre de Moraes, o “ditador”. 

É assim que pensa Djalma, 73 anos, morador da capital paulistana. Para ele, a manifestação passou um recado ao presidente Lula e ao STF: o poder de controlar as massas está nas mãos de Jair Bolsonaro. Na visão do idoso, basta Bolsonaro se mobilizar para “voltarmos” ao Estado Democrático de Direito, fazendo uso do Art. 142 da Constituição – que, no imaginário bolsonarista, viabiliza o uso das Forças Armadas contra outros Poderes da República.

“Se o Bolsonaro chamar, ele pode parar esse país, e a gente pode parar o desrespeito à Constituição e os desmandos desse governo ladrão que chama Lula. Paramos o Agro, paramos com os caminhoneiros, paramos com tudo até cair esse governo e o STF“, declarou.

Para Djalma, “hoje não existe democracia, existe uma ditadura comandada por Alexandre de Moraes”.

Um casal abordado pela reportagem disse que o ato na Av. Paulista foi pacífico e necessário para defender a democracia. “Porque do jeito que está, se nós deixar [sic], a Venezuela está a caminho”.

À luz do discurso do líder reacionário Silas Malafaia, que usou seu tempo para demonizar o Supremo e colocar, mais uma vez, Bolsonaro como o político mais perseguido dos últimos tempos, moradores da Rua Pamplona, nos arredores da região, disseram que, com base na proporção do evento – que preencheu quatro de 18 quarteirões da Paulista – agora Moraes pensará duas vezes antes de dar voz de prisão a Bolsonaro.

“O Alexandre de Moraes vai pensar bem se vai prender ele [Bolsonaro], porque ele viu que o povo está invocado. É um louco, aquele careca maldito”.

Além de atacar o ministro do STF, o grupo bolsonarista também criticou a imprensa, mais precisamente o programa Fantástico, da Rede Globo, sugerindo que a edição do domingo (25) propagaria números inverídicos sobre a quantidade de presentes no evento pró-Bolsonaro, tentando esvaziar o ato.

Também de São Paulo capital, a bolsonarista Andreia Vicente fortaleceu a teoria sem comprovação de fraude no sistema eleitoral, e sustentou que a vitória de Lula não foi legítima.

·        Preconceito, intolerância e conservadorismo

Marca registrada da extrema-direita, o preconceito e a intolerância contra minorias e os apoiadores de Lula e do PT também foram expressados por uma bolsonarista, endossando o teor de culto religioso que o ato na Paulista teve neste domingo.

“Nosso povo é nosso povo, né? Tem que respeitar, empresário, microempresário, é o povo de bem. Não tem nenhum vagabundo aqui. O povo do Lula é quem? Veado, bandido e que quer comer de graça. O povo do Lula é só gente errada”.

O interior de São Paulo também marcou presença na Av. Paulista. Um manifestante abordado pelo GGN defendeu que a manifestação reafirma os valores conservadores, incorporados ao slogan de Bolsonaro, “Deus, Pátria, Família”. “Essa manifestação é para mostrar ao Brasil a força que a direita está tomando”, disse ele.

·        Conformados

Uma expressão reproduzida em peso após os discursos que terceirizavam a responsabilidade de Bolsonaro sobre o 8 de Janeiro foi “engenharia do mal”, usada pelo pastor Silas Malafaia para descrever o que o Supremo, “covarde, ao arrepio da lei e da Constituição”, está tramando para prender Bolsonaro.

Um idoso deixou suas condolências a Bolsonaro e disse que “está tudo errado, é uma injustiça” o processo judicial que o ex-presidente deve enfrentar por tentativa de golpe.

Apenas Israel é “vítima“

O sentimento de traição do Brasil ao Estado de Israel, por causa das recentes declarações de Lula condenando o genocídio em Gaza, foi outro ângulo explorado na passeata pelo vácuo do imaginário coletivo bolsonarista.

De acordo com o bolsonarista André Rhouglas, Lula errou ao comparar Netanyahu a Hitler, e estaria dando apoio ao Hamas, o que é uma informação falsa. “Aquele cara que não me representa, falar aquele coisa do Holocausto, desrespeitando e falando mal, mais ainda, dando crédito ao Hamas”.

Como se sabe, em discurso que gerou crise diplomática, Lula não disse “holocausto” e condenou o Hamas. O GGN fez a checagem do discurso do presidente: frase distorcida e recortada de ampla fala tornou-se uma polêmica internacional.

Já a bandeira de Israel foi utilizada por diversas pessoas, inclusive com estampas erradas, como um pentagrama no lugar da estrela de Davi. A ignorância em relação ao que pensam defender ficou estampada em vídeo que viralizou nas redes, do jornalista Joaquim de Carvalho, do 247, onde três senhoras afirmaram que defendem Israel porque eles são “cristãos”. No entanto, não existe um Messias para os judeus. A desinformação da extrema-direita associada à rejeição do comunismo ou socialismo foi marca do trio.

·        Devoção aos policiais

Um outro ponto que chamou a atenção no perfil do público foi a devoção aos policiais presentes no ato. Através de elogios, fotos e vídeos, o serviço prestado pela Tropa de Choque foi exaltado em demasia. Para Luana Quinteiro, 26, da zona Leste de SP, a abordagem dos profissionais muitas vezes não é reconhecida como deveria, pelo fato de os suspeitos muitas vezes saírem como “vítimas”.

Entre os que apoiam Bolsonaro, uma característica que ajuda a constituir o perfil dos manifestantes mais jovem é a ignorância declarada sobre política e atualidades. “Sou uma pessoa que não acompanha muito política por causa dos meus compromissos”.

·        Gratidão

Os adeptos a crenças e valores propagados pelo clã Bolsonaro também estiveram no ato em prol de um mundo mais democrático. Bianca Vicente, de São Paulo, fez questão de marcar presença “não pelo Boslonaro, pelas ideias que batem com a minha de família, de Deus, de pátria”.

O apelo religioso nos discursos de Michelle Bolsonaro e Silas Malafaia agradou os apoiadores que seguravam bíblias, e que não querem separar política de religião, o que contribui para a produção da dissonância cognitiva coletiva, um Brasil paralelo, que fratura a espinha dorsal dos valores verdadeiramente cristãos e democráticos.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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