- Por que covid-19 ainda mata tanta gente no Brasil
Há cerca de duas
semanas, um homem de 79 anos deu entrada no pronto-socorro de um hospital
particular de Matão, cidade no interior de São Paulo, com falta de ar e dores
no corpo.
Primeiro, especulou-se
que ele poderia ter contraído dengue – já que o Brasil vive uma explosão de
casos desde o fim do ano passado.
Mas, como o protocolo
de atendimento exige que, diante desses sintomas, os pacientes também façam o
teste para covid-19, ele passou pelo exame já na triagem.
Horas depois, enquanto
se encaminhava para a internação, saiu o diagnóstico: ele estava, de fato,
infectado pelo novo coronavírus.
O homem ficou quatro
dias na UTI e faleceu – foi o primeiro óbito registrado na cidade por covid-19
em meses.
Segundo a Secretaria
de Saúde local, o paciente havia tomado duas doses de vacina, mas seu quadro
clínico foi agravado, entre outras coisas, pela obesidade.
A notícia caiu como
uma bomba em Matão: além de outros pacientes internados na mesma situação, o
município viu o número de casos de covid-19 triplicar em pouco tempo.
Em apenas 15 dias de
fevereiro, 539 contaminações foram confirmadas pelas autoridades locais, sendo
que, em janeiro inteiro, haviam sido 180.
"A gente até
consultou o CVE [Centro de Vigilância Epidemiológica de São Paulo] para saber
se existe alguma medida que podemos tomar para conter essa onda de
contágio", diz o secretário de saúde do município, Orivaldo Reguin, à BBC
News Brasil.
Essa mesma preocupação
tem crescido em todo o país. No Rio de Janeiro, a média móvel foi de 66 casos
no último dia de 2023 para 383 no fim de janeiro – alta de 480%, segundo os
dados do Data Rio. Foram 14 óbitos no período.
Há dois dias, a
Secretaria de Saúde do Estado publicou relatório mostrando que a taxa de testes
positivos hoje é de 30%, o triplo do registrado em janeiro (10%).
Em São Paulo, o número
de contaminados subiu de 892 na primeira semana do ano para 3.196 na semana
entre 11 e 17 de fevereiro, um aumento de 258%.
Na maior metrópole do
Brasil, 25 pessoas morreram de covid-19 neste ano, sendo 10 só na semana
epidemiológica de 4 a 10 de fevereiro, segundo dados da Secretária Municipal de
Saúde.
Em Salvador, na Bahia,
as contaminações aumentaram 19% depois do Carnaval, de acordo com o Conselho
Nacional de Secretários de Saúde (Conass), e 95 óbitos foram contabilizados
desde janeiro em todo o Estado, segundo dados do governo.
Regiões como Norte e
Nordeste também viram o volume de casos graves subir a partir da segunda metade
de janeiro, segundo um boletim da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Dados do Ministério da
Saúde mostram ainda que a média móvel de casos de covid-19 do Brasil está em
alta desde a segunda semana do ano.
Passou de 19,9 mil
registros para pouco mais de 38 mil, se mantendo neste patamar desde então.
Em 2023, nessa mesma
época, eram 21 mil casos – ou seja, a média é, atualmente, 80% maior do que há
um ano.
Na cidade de São
Paulo, uma plataforma ligada ao Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à
Indústria (CeMEAI), da Universidade de São Paulo (USP), segue atualizando os
números da pandemia em tempo real e apontou que o número de pacientes subiu
140% no começo de fevereiro.
Desde o início de 2024
até 17 de fevereiro, o Brasil já teve 1.325 mortes por covid-19, segundo o
Conass.
Para além da
subnotificação, não entram nas contas sobre a covid-19 uma série de outros
registros considerados apenas como suspeitos, ou seja, ainda não foi confirmado
que a causa da morte foi covid-19.
Ainda assim, o Brasil
é o segundo país com mais óbitos pela doença no mundo neste ano.
Fica atrás apenas dos
Estados Unidos, onde mais de 10,6 mil pessoas morreram infectadas pelo
coronavírus nesse período, segundo o Centers for Disease Control and Prevention
(CDC), agência que mensura as tendências da pandemia no país, e a Organização
Mundial da Saúde (OMS).
Isso ocorre quatro
anos depois de ser confirmado o primeiro caso de covid-19 no Brasil, em 25 de
fevereiro de 2020.
Um homem de 61 anos
foi internado no hospital Albert Einstein, em São Paulo, dias depois de voltar
de uma viagem à Itália.
De lá para cá, 19% da
população brasileira contraiu a doença e, dentro desse universo, quase 710 mil
pessoas morreram em decorrência dela.
No ápice da crise
sanitária, em 2021, o Brasil teve 423,3 mil óbitos.
Especialistas afirmam
que a covid-19 caminha muito lentamente para se tornar uma doença semelhante à
gripe, com baixíssima taxa de mortalidade, remédios acessíveis e maior
conhecimento dos sintomas pela população.
Enquanto isso não
acontece, ela continuará a causar um número significativo de mortes, avaliam
profissionais de saúde ouvidos pela reportagem.
Somente na última
semana epidemiológica já consolidada em âmbito nacional, entre 11 e 17 de
fevereiro, 198 brasileiros perderam a vida por complicações da covid-19, de
acordo com dados do Ministério da Saúde e do Conass.
"São números bem
preocupantes", diz Ralcyon Teixeira, diretor da Divisão Médica do
Instituto Emílio Ribas, em São Paulo.
Para se ter uma
dimensão, esse número registrado em apenas uma única semana é maior do que as
184 pessoas que morreram devido à dengue em 2024, segundo o monitoramento de
arboviroses mantido pelo Ministério da Saúde.
A chikungunya, por sua
vez, teve oito óbitos. Com base na média anual de registros, a Sociedade
Brasileira de Cardiologia estima, por sua vez, que pouco mais de 57 mil
brasileiros morreram por doenças cardiovasculares somente neste ano.
No último boletim
sobre doenças respiratórias da Fiocruz, apenas 5% dos óbitos registrados foram
causados pelo vírus influenza A, da gripe.
O SARS-CoV-2, que
causa a covid-19, foi responsável por 88%.
Em quantidade de
casos, a situação atual se assemelha à do período entre abril e maio de 2020,
quando a covid-19 começava a se espalhar pelo Brasil e tinha uma média móvel de
39 mil casos.
É parecida também ao
dos últimos meses de 2022, ano em que a doença voltou a se espalhar com mais
força por causa da chegada da variante ômicron.
As mortes, porém,
estão em queda desde então: em 2023, pouco mais de 14,7 mil brasileiros
perderam a vida por causa do vírus. Foi o ano menos letal desde o início da
pandemia.
Em nota, o Ministério
da Saúde informou que "monitora e avalia permanentemente a situação
epidemiológica da covid-19 no Brasil e no mundo".
"Os dados revelam
que, apesar dos números de casos e óbitos por covid-19 serem menores em 2024 em
comparação com anos anteriores, a doença continua causando a perda de muitas
vidas na população brasileira, além de consequências graves como a síndrome
inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P)", reconheceu a pasta.
O ministério reforçou
a importância de medidas não-farmacológicas (como uso de máscaras e redução da
aglomeração) e da vacinação para prevenir a doença.
A pasta afirmou ainda
que está investindo no planejamento alinhado com autoridades locais, na
divulgação de informações e transparência, além do combate a notícias falsas e
desinformação.
• Quem ainda morre de covid?
Entre especialistas
que seguem na linha de frente do combate à doença, um dos consensos é que, no
médio prazo, o Brasil seguirá com um volume de mortes por covid-19 parecido ao
de agora, embora por motivos diferentes do período mais crítico.
Ralcyon Teixeira, que
está à frente de um dos principais centros de infectologia da América Latina,
observa que os óbitos estão se concentrando em grupos clinicamente mais
vulneráveis da população, assim como foi nos primeiros meses da pandemia.
"É difícil que
alguém contraia a covid-19 e morra puramente por causa dela hoje”, afirma
Teixeira.
“O que está
acontecendo é uma descompensação de doenças crônicas que os pacientes já
possuíam antes de serem infectados pelo vírus. Daí, o que ele faz é
intensificar essa base, e as pessoas vão a óbito."
Entre essas
complicações, estão a diabetes, que atinge 7% da população brasileira, e
doenças cardiovasculares, que afetam cerca 14 milhões de pessoas pelo país,
segundo dados recentes do Ministério da Saúde.
O infectologista Julio
Croda, pesquisador da Fiocruz no Rio de Janeiro, concorda e acrescenta:
"Muitas vítimas são idosas também".
Pesquisas recentes
identificaram que a pandemia conseguiu diminuir a faixa etária da mortalidade
brasileira, movimentando o maior volume de óbitos para o intervalo entre 40 e
79 anos. Antes da pandemia, ele ficava na faixa após os 80 anos.
Essas são grandes
preocupações sobre os impactos da circulação atual do vírus no Brasil, na visão
da infectologista Margareth Dalcolmo, que acabou de ser eleita para uma cadeira
na Academia Nacional de Medicina.
"Algumas
comorbidades, como a hepatite C ou a hipertensão arterial, por exemplo, estão
totalmente fora de controle no país. Isso significa que há mais gente
vulnerável", diz Dalcolmo, que também é pesquisadora da Fiocruz.
Até o ano passado,
imunossuprimidos, pessoas sem a imunização adequada ou idosos conformavam o
perfil da mortalidade por covid-19 no país, segundo ela.
Para Croda, a idade
dos doentes colabora na explicação das desigualdades regionais.
O Sul é um bom
exemplo: embora tenha uma boa estrutura de saúde pública, além de uma ampla
rede de atendimento, a região tem uma taxa de mortalidade relativamente alta
(0,58 por 100 mil habitantes).
Na região, 12,1% da
população tem mais de 65 anos. É o segundo maior índice do país, de acordo com
o Censo 2022, quase empatado com o Sudeste, que tem 12,2%.
"Mas não é apenas
a idade, é a comorbidade que pode estar atrelada a ela", diz Croda.
Um relatório de 2023
do Conass mostrou que o Brasil teve um excesso de 18% em mortes naturais no ano
passado.
O dado é calculado
comparando os óbitos registrados desta forma e uma expectativa definida a
partir de uma média histórica.
Em números absolutos,
foram 48 mil mortes a mais do que o esperado.
Para o conselho, isso
se explica principalmente pelas vítimas de covid-19, porque as taxas de
mortalidade por outras doenças, como cardiovasculares, por exemplo, caíram no
mesmo período.
O microbiologista
Átila Iamarino, que se tornou um dos principais porta-vozes da comunidade
científica durante a pandemia, coloca mais uma camada nesse diagnóstico: a
capacidade de circulação das variantes do SARS-CoV-2 e, especialmente, a
ômicron, que hoje é a cepa dominante no território brasileiro.
"Ela é
extremamente transmissível e, quando infecta alguém, causa sintomas mais graves
do que a gripe comum", diz Iamarino.
"Como existem
ciclos contínuos da doença acontecendo, que se movimenta também mais do que as
síndromes gripais já conhecidas, é de se esperar que ela mate mais gente ao
longo desse processo."
Iamarino ressalta como
a ômicron também é uma variante mais resistente do que suas anteriores – o que
ajuda a entender sua prevalência.
"Ela escapa muito
bem da imunidade das pessoas, ao ponto de continuar sendo transmitida meses
após ter causado um surto", diz o microbiologista.
"Isso significa
que a ômicron tem capacidade de voltar a circular rapidamente e, assim, gerar
novos casos."
Com o aumento relativo
de óbitos nas últimas semanas, a taxa de mortalidade brasileira se movimentou
nesse intervalo: era de 0,37 para cada 100 mil habitantes no início do ano e,
agora, já é de 1 para 100 mil.
Ainda assim, é um
indicador muito longe do de 2021, quando chegou a ser de 201 para cada grupo de
100 mil pessoas.
Por outro lado, a
letalidade desses dois primeiros meses está igual à de todo o ano 2022 (0,5%),
o que indica a manutenção do volume de pessoas que, uma vez contaminadas, estão
morrendo por causa da covid-19.
• Tratamentos disponíveis
Para Ralcyon Teixeira,
do Emílio Ribas, outro motivo que ajuda a entender por que a covid-19 ainda
vitima tanta gente é a desinformação – tanto da maioria da população quanto dos
próprios profissionais de saúde.
De um lado, na análise
dele, falta conhecimento público sobre os medicamentos já disponíveis em
farmácias ou até oferecidos gratuitamente em dispositivos do Sistema Único de
Saúde (SUS) para tratar a doença.
É o caso do Paxlovid,
elaborado pela americana Pfizer e aprovado na metade de 2022 pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para venda no país.
De outro, ele vê que
muitos médicos ainda não têm lançado mão dessas alternativas quando atendem
pessoas infectadas.
"Na verdade, é
preciso repensar todo o acesso ao tratamento da covid no Brasil. O uso desses
medicamentos ajudaria a reduzir significativamente o número de mortes",
analisa.
Trata-se também de um
medicamento caro: uma caixa com 30 comprimidos sai por cerca de R$ 4,5 mil.
O governo federal
comprou diversos lotes de Paxlovid desde que ele foi regulamentado e os
distribuiu no SUS.
Dalcolmo, da Fiocruz,
lembra que a prescrição correta do Paxlovid é para casos moderados.
"É uma indicação
muito precisa. Quem tem sintomas leves precisa apenas de analgésico e de
isolamento por cinco dias", afirma a médica.
"Casos graves
necessitam de internação. Mas, para quem está em uma situação moderada, é um
excelente medicamento."
• Vacinação insuficiente
Outro consenso entre
os especialistas são as brechas na vacinação.
Hoje, o Brasil tem
perto de 82% da população imunizada com as duas primeiras doses das vacinas
monovalentes – um universo de 167 milhões de pessoas.
Metade do país (53%)
está totalmente coberta pelos reforços disponíveis.
Mas a baixíssima
adesão à vacina bivalente, que foi aplicada em cerca de 16% dos brasileiros
(33,3 milhões de doses) é o ponto considerado mais alarmante.
"Significa que
pouquíssima gente está protegida contra as novas cepas circulantes, oriundas da
ômicron, já que as vacinas monovalentes carregam apenas cepas antigas",
explica Dalcolmo.
Há ainda um fenômeno
social envolvido na cobertura vacinal brasileira, diz Átila Iamarino.
Para ele, a percepção
pública da gravidade da doença determina a adesão massiva à imunização.
Foi assim que, quando
as primeiras doses foram disponibilizadas no SUS, em janeiro de 2021, quando a
média móvel de óbitos estava em 4 mil, quase a totalidade da população correu
para os postos de saúde.
"Naquele
desespero todo, as pessoas sabiam que a proteção que a vacina oferecia era uma
necessidade aguda", afirma o microbiologista.
"No entanto,
conforme a campanha foi tendo efeito e o número de mortos foi caindo, elas
passaram a não se preocupar com reforços, e isso se seguiu sucessivamente a
cada nova dose que foi sendo disponibilizada".
Além disso, há uma
crítica latente ao desenho da campanha vacinal feito pelo Ministério da Saúde
em 2021 e, principalmente, à comunicação em torno dela. "Ficou tudo muito
confuso", avalia Ralcyon Teixeira.
No seu cotidiano no
Emílio Ribas, ele diz ainda encontrar muita gente que não entende que a vacina
não foi elaborada para evitar totalmente a contaminação, mas para diminuir os
efeitos da doença.
Há muitas dúvidas
também sobre a duração da imunidade fornecida em cada dose.
"A população
ficou muito atrapalhada sobre quando ir se vacinar, quais são os grupos
prioritários, qual é a necessidade de seguir se imunizando, etc. As pessoas
foram se cansando", reflete.
O último movimento
dentro da campanha foi em janeiro, quando o Ministério da Saúde colocou três
doses da vacina da Pfizer como parte do Programa Nacional de Imunização (PNI).
Desde então, elas são
obrigatórias dentro do ciclo vacinal de crianças entre 6 meses e menores de 5
anos.
No caso de idosos e de
pessoas imunossuprimidas, os reforços devem ser tomados semestralmente.
"O problema é
nossa cobertura para esse grupo está baixa. É por isso que ainda temos uma
mortalidade bastante concentrada nele", lamenta Julio Croda.
Para o infectologista,
a inserção das vacinas no PNI também foi uma reação à campanha do movimento
antivacina contra a imunização de crianças, que teve bastante penetração no
Brasil.
Essa é, aliás, uma
percepção corroborada entre todos os especialistas.
"A diferença
entre o risco percebido e o que existe de fato para as crianças fez com que
muita gente não vacinasse pessoas nessa faixa etária", comenta Iamarino.
"De fato, elas
têm menos chances de morrer, mas ainda assim não deveríamos assumir esse risco
de forma alguma."
Ralcyon Teixeira diz
que a desinformação envolvendo crianças potencializaram bastante a baixa adesão
dessa parte da população à vacina.
Ele aponta que
mensagens circularam durante a pandemia relacionando a imunização a reações
fatais piores do que a própria covid-19 ou a projetos supostamente políticos,
como a implementação de rastreamento na população como forma de monitorá-las.
"Esse é realmente
um problema grave da vacinação no Brasil hoje", diz Dalcolmo.
Levando em conta o
período desde o início da pandemia de covid-19, em 2020, o Brasil permanece
como o segundo país onde o vírus mais matou no mundo, atrás apenas dos Estados
Unidos, que estão perto de registrar 1,8 milhão de óbitos nesses quatro anos.
Índia (533 mil mortes), Rússia (402 mil) e México (334 mil) também possuem
números altos.
Pelos dados da OMS,
11,6 mil pessoas morreram de covid-19 no mundo em 2024: a maioria delas nos
EUA.
A Johns Hopkins,
universidade norte-americana que serviu como banco global de informações sobre
a covid-19, deixou de coletar números dos países em outubro do ano passado, mas
manteve seus gráficos abertos.
Neles, o Brasil ocupa
o quarto lugar no índice de mortalidade, com 328 mortes ao longo da pandemia
para cada 100 mil habitantes.
À frente do país estão
o Chile (336 para cada 100 mil), os Estados Unidos (341) e o Peru (665).
Fonte: BBC News Brasil
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