Na Amazônia, ribeirinhos se unem para
preservar tartarugas
Um dos montinhos de
areia parece se movimentar. Fábio abre caminho com as mãos e um filhote de
pitiú emerge do ninho. Com cerca de 4 centímetros, o quelônio passa a nadadeira
no olho direito e depois repete o gesto do lado esquerdo. É preciso desembaçar os
olhos para enxergar o novo mundo. Segundos depois, emerge outro filhote.
Num dos biomas mais
biodiversos em quelônios do mundo, moradores de Juruti viram a abundância de
tartarugas e outras espécies despencar ao longo das últimas gerações. Relatos
dos antepassados e as próprias observações sobre a drástica redução levaram ribeirinhos
de 32 comunidades no município de Juruti, no Pará, a se organizar, de forma
independente e voluntária, para preservar espécies como tartaruga-da-amazônia (Podocnemis
expansa), tracajá (Podocnemis unifilis), pitiú (Podocnemis
sextuberculata) e irapuca (Podocnemis erythrocephala).
O trabalho consiste em
vigiar as praias durante a noite a partir de setembro, quando inicia o período
de desova e as fêmeas ficam mais vulneráveis. Depois, os comunitários coletam
os ovos de cada ninho, transportando-os para um berçário ou chocadeira — área
cercada na areia, onde os ovos ficam protegidos até o nascimento dos filhotes,
quando são colocados em tanques até a soltura, que no último ano ocorreu no
início de março.
“Se as espécies hoje
estão conseguindo aumentar a população silvestre nos rios da Amazônia, é graças
ao trabalho de base de manejo comunitário”, diz Fábio Andrew Cunha, jurutiense
especialista em quelônios. “Hoje nós temos na Amazônia brasileira 21 espécies
de quelônios descritas. Nessa região [Juruti], nós já conseguimos catalogar 14
espécies, sendo uma endêmica. A gente
considera o Brasil um ‘turtle hotspot, uma área prioritária para
conservação do grupo”.
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Entre tartarugas e
estrelas
Os antigos moradores
diziam que havia mais tartarugas nos rios do que estrelas no céu. “Em alguns
rios da Amazônia, era impossível a navegação de grandes barcos devido à
concentração de fêmeas, sobretudo nesse período da postura em que elas formam
os grandes cardumes para subir e formar os tabuleiros, que é a desova conjunta
nas praias”, conta Fábio.
No entanto, a
quantidade de tartarugas diminuiu drasticamente na região. Segundo Fábio,
biólogo e doutor em Ecologia Aquática e Conservação na Amazônia, nas décadas de
1970 e 80 Juruti tornou-se um centro de coleta de ovos e caça de fêmeas
adultas. Tradicionais na alimentação, os ovos chegaram a ser usados como
pagamento de contas bancárias e a carne da tartaruga já foi considerada a
segunda principal fonte de proteína animal na dieta local, atrás somente dos
pescados.
Atualmente, leis que protegem a fauna silvestre proíbem o consumo tanto dos ovos quanto dos quelônios, mas
entre agosto e setembro os ares jurutienses contam uma outra história: “É muito
comum você sentir o cheiro do casco [assando] quando você anda pelas ruas da
cidade. Estou falando sobre a realidade de um único município, mas isso
acontece em quase todas as cidadezinhas no interior da Amazônia”, diz Fábio.
É verdade que uma
parcela significativa da população já se conscientizou sobre a importância da
preservação das tartarugas, mas uma pesquisa mostra que
aproximadamente 1,7 milhão de quelônios foram consumidos em áreas urbanas do
Amazonas em 2018.
Além da caça ilegal,
os quelônios sofrem outros tipos de ameaça. “Quando há grandes projetos de
mineração sendo implantados na Amazônia, isso afeta a paisagem tanto do ponto
de vista do local para desova quanto da área de abrigo e de alimentação”,
aponta Fábio. Em Juruti, a extração de bauxita realizada pela mineradora Alcoa desde
2009 gerou acordos financeiros sem precedentes por danos socioambientais.
O desmatamento, a
exploração de petróleo e a instalação de barragens nos rios para a ampliação da matriz energética representam outros
perigos. “São várias alterações atuando de forma conjunta que, em última
escala, reduzem o número e estrutura populacional, tanto de fêmeas quanto de
machos.”
Tendo como base os
relatos dos antepassados, e observando a quantidade de quelônios minguar,
comunitários se inspiraram em projetos já existentes na Amazônia, como o Projeto Quelônios da Amazônia e
o Projeto Pé-de-Pincha, e se
organizaram, de maneira independente e voluntária, para proteger seu entorno.
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Guerreiros do Miri
“O nosso grupo é
formado por jovens. Tem menino com 25 anos que começou com 8 acompanhando o
trabalho”, conta Marunei Guerreiro de Mesquita, líder do projeto na comunidade
Miri, zona rural de Juruti, que reúne 20 voluntários na Associação dos
Guerreiros Ambientais do Miri (Agam). “Tem eu de velho e o resto juventude.”
Há 15 anos, quando
começaram a fazer o manejo, os comunitários conseguiam realocar cerca de 50
ninhos na chocadeira a cada temporada. Nos últimos anos, chegaram a mais de
270.
Em frente à casa do
seu Marunei, às margens do lago de várzea que se junta ao Rio Amazonas, está o
cercado que abriga os ovos coletados. Nesta temporada são 225 ninhos, número
inferior ao dos anos anteriores — provavelmente por conta da seca severa que atingiu a região, mudando o regime das águas e deixando as cabeceiras dos lagos
e rios secas ao extremo.
Desde o início do
projeto, os números só faziam crescer a cada ano. Não sem dificuldades. “Criei
problema com comunitário, criei problema com a Secretaria [Municipal do Meio
Ambiente], criei problema com coordenador de comunidade por causa do trabalho
que eu faço. Mas esse trabalho que eu faço não está me dando açúcar, nem café”,
desabafa Marunei.
Apesar dos desafios em
conseguir recursos para seguir adiante, Marunei sente-se recompensado pelo
aumento de quelônios na região, pela admiração que muitos sentem pelo projeto,
e pelas novas gerações que se juntam no voluntariado.
“A gente aprende muito
e vai levando isso para frente até a geração dos nossos filhos, dos nossos
netos”, conta Jelso Santarém, de 20 anos, que começou no projeto com 13.
É no quintal de
Marunei que fica o tanque, onde vivem por alguns meses os quelônios
recém-nascidos. No último mês de novembro, o tanque já abrigava uma pequena
multidão de quelônios.
Fábio, recém-chegado
da Bolívia, onde participou de uma reunião da União Internacional para a
Conservação da Natureza (IUCN) para avaliação do status de ameaça dos quelônios
da Amazônia, pega um filhote de pitiú na
mão, uma de suas espécies favoritas e das mais ameaçadas: “ela é a mais linda
do mundo, parece que ela te pede um abraço”.
No berçário, nascem
mais filhotes de pitiú. Henry Mesquita Santarém, de 2 anos de idade, acompanha
o acontecimento. “Bota na caixa”, diz o menino, referindo-se ao isopor. Henry
sobe a ladeira do quintal junto ao avô Marunei, ajudando como pode a levar o
isopor até o tanque de cria.
·
Um olho no peixe,
outro no quelônio
“A pitiú é a espécie
mais procurada pelos predadores”, diz Ednaldo Lima de Sousa, coordenador do
projeto que funciona desde 2005 na comunidade Capiranga. “Se a gente não cuidar
desses bichos que estão aqui, mais tarde a gente não vai ver mais.”
Além do manejo dos
quelônios, muitas comunidades também cuidam dos peixes. “Nós temos um acordo de
pesca. Não é dar a liberação para qualquer um; a gente tenta preservar para a
comunidade. Esse é o nosso acordo”, explica Ednaldo.
Na comunidade
Capiranga, o aumento de quelônios é notado e já houve safra com 300 ninhos
protegidos. “Os bichinhos começaram a chegar mais pra banda onde já está
preservado”, diz Edir Lima de Sousa, que atua junto com o irmão Ednaldo e mais
oito ribeirinhos.
Dentro do berçário,
que neste ano abriga quase cem ninhos com vista privilegiada para o Lago
Capiranga, filhotes de tracajá despontam na
areia. Ednaldo ajuda, abrindo espaço na saída do ninho, mas nem tudo ocorre
como o planejado. Poucos filhotes saem, alguns ovos estão parcialmente ou
totalmente cozidos dentro do ninho e alguns filhotes não conseguiram se
desenvolver e eclodir.
“A gente vinha tendo
um resultado muito positivo, mas o período muito intenso de seca atrapalha o
contexto de uma forma geral”, afirma Fábio.
Com a medição de 43
graus Celsius de temperatura na areia, relatos sobre fêmeas mortas às margens
dos rios também têm sido comuns. “Elas iam subir para fazer postura e não
conseguiram, ou pela distância ou pela temperatura muito elevada.”
Outra preocupação do
momento é que a temperatura tem influência na determinação sexual de diversas
espécies de quelônios de rio. “Pode ser que temperaturas elevadas produzam mais
fêmeas do que um equilíbrio normal para a população. A gente precisa que haja
um equilíbrio entre o número de machos e de fêmeas, então estamos falando de um
processo de feminização”.
Numa noite de lua
cheia e de estrelas invisibilizadas pela fumaça das queimadas, a reportagem da
Mongabay acompanhou as incursões de rabeta lago adentro em busca de fêmeas
adultas: sem sucesso.
“Num cenário perfeito,
nesse momento estaríamos medindo e fotografando e marcando umas 50, 60 fêmeas”,
diz Fábio. “A gente colocou as redes na água e nós não conseguimos capturar
nenhum animal. Ainda não se sabe o motivo. Acredito que a intensificação da
seca e a captura ilegal tenham afugentado ou levado as fêmeas a escolherem
outros locais.”
·
Espelho da natureza
Domingos transporta o
isopor nos braços, como se fosse uma criança. Ali dentro estão 29 ovos de
tracajá que ele acabou de coletar num ninho às margens do Lago Tucunaré. Os
ovos serão realocados e vigiados no berçário, metros adiante. “Para levar para
a cova, tem que levar com jeito para não sacudir”, avisa.
Adentrando o alambrado
da chocadeira, Domingos Pereira Campos, que participa do projeto desde seu
início em 2012, escolhe uma vaga e cava um buraco com uma curva mais acentuada
de um dos lados, como se fosse uma barriga.
“É assim que a
natureza faz. A gente faz mais ou menos que nem ela, mas não é igual”, mostra.
“Do jeito que a gente tira, a gente coloca lá de volta na outra cova. Aquele
que saiu por último, vai primeiro para o fundo.”
“Se puder observar o
cuidado que a fêmea tem para fazer o ninho… é emocionante demais. É uma câmara
que consegue manter a temperatura”, conta Fábio.
Realmente, nem tudo
pode ser copiado da mesma forma que é elaborado na natureza. “Claro que, com o
deslocamento dos ovos do ambiente natural para a chocadeira, há uma perda,
porque a gente não consegue de forma literal escolher o mesmo microclima como é
o da natureza. Então é esperado que uma porcentagem mínima seja inviável”,
explica Fábio.
O aumento de quelônios
em Juruti está diretamente ligado ao trabalho dos ribeirinhos, que vigiam as
praias durante o período de desova, coletam os ovos e cuidam dos quelônios
recém-nascidos. Foto: Julia Lemos Lima/Mongabay
Toda interferência tem
seus efeitos. Não apenas a mudança de local do ninho, mas também os meses em
que os filhotes crescem nos tanques até a soltura geram impactos, podendo
comprometer sua capacidade de fugir de predadores, a agilidade natatória e a
habilidade em procurar o próprio alimento.
Especialistas sugerem
que uma parte dos filhotes seja direcionada imediatamente para a água após o
nascimento para incentivar as fêmeas adultas a voltarem ao local de desova.
“Com a descoberta da
vocalização, descobriu-se que há um cuidado parental das fêmeas com os
filhotes”, relata Fábio. Estudos têm mostrado que
os filhotes emitem sons ainda como embriões, alertando as fêmeas do seu
nascimento. Se as fêmeas estão no aguardo do nascimento e não recebem nenhum
filhote, podem considerar o local pouco seguro para uma futura desova.
Ainda que a proteção
dedicada dos comunitários não seja exatamente um espelho da natureza, é
possível perceber dentro do município o impacto real positivo das ações de
conservação nas comunidades rurais, com o crescimento populacional das espécies
e o aumento do número de ninhos.
Numa tarde quente de
novembro, caminhando pelas margens do Lago Tucunaré, Fábio encontra mais um
ninho. Esse será o de número 183 a ser levado para dentro da chocadeira.
“Quando a gente
começou em 2012, a gente conseguiu seis ninhos e 212 filhotes já em 2013”,
conta Jorge Simões, coordenador do projeto no Tucunaré. “Os moradores foram
apoiando cada vez mais e hoje é um sucesso muito grande. No ano passado, nós
soltamos 4.150 filhotes. Então, cada ano que passa evolui mais”.
Fonte: Mongabay
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