Eleições e religião: a nova aposta do
bolsonarismo
A manifestação da
Avenida Paulista, realizada neste domingo (25), atendeu a algumas das
necessidades mais urgentes de Bolsonaro em um cenário no qual a sua condenação e posterior prisão passam a ser dadas como favas contadas. Primeiro, como o
próprio ex-presidente disse em seu discurso, retratou, em “uma imagem para o
Brasil e para o mundo”, que a extrema direita ainda tem poder de mobilização,
embora tenha sido um ato nitidamente inferior a outros realizados pela base
bolsonarista. Há três razões para o declínio: o cenário adverso do ponto de
vista político, a ausência dos grandes financiadores, hoje temerosos em relação
ao que pode vir das investigações da Polícia Federal sobre a irrigação de recursos para sustentar o golpismo, e
o de não estarem mais à frente do Executivo federal.
Se antes eram eventos
pulverizados em várias cidades, ontem foi São Paulo o centro imagético que
provaria a resistência da extrema direita brasileira. Mais do que o número de
presentes em si, calculados em aproximados 185 mil, segundo grupo de pesquisa da
Universidade de São Paulo (USP), é importante observar o sentido e as mensagens
veiculadas durante o ato, que apontam para o que será do bolsonarismo, caso se
veja sem a figura que dá nome ao movimento.
O primeiro sentido
político é bem evidente: buscar anistia e insistir na tese de que não houve
tentativa de golpe, a despeito de toda a apuração feita até agora pelas
autoridades policiais. Bolsonaro se referiu mais de uma vez às pessoas que
participaram dos acampamentos e do 8 de Janeiro como “pobres coitados”. “O que
eu busco é a pacificação, é passar uma borracha no passado. É buscar maneira de
vivermos em paz, não continuarmos sobressaltados. É, por parte do parlamento
brasileiro, uma anistia para os pobres coitados que estão presos em Brasília”,
disse.
Há projetos no
Congresso Nacional, como o do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), para
anistiar pessoas envolvidas no 8 de Janeiro, mas, além da pouca viabilidade
política de apreciação e aprovação nas duas casas legislativas, juristas
apontam que qualquer iniciativa de anistia para crimes contra o Estado
democrático de direito é inconstitucional. Mesmo assim, Bolsonaro tenta fazer o
que sempre fez (com relativo sucesso, dada a adoção por parte da mídia
comercial do jornalismo declaratório e
pela busca de audiência): pautar a agenda política e se fazer de vítima de
perseguição.
O mais longo discurso
na manifestação foi o do pastor Sila Malafaia, responsável pelo aluguel dos trios elétricos e principal organizador do ato. A sua fala foi a mais
efetiva em costurar uma versão que amalgamou fake news, recortes
descontextualizados de fatos e declarações de terceiros e informações
distorcidas para contar uma história sobre uma suposta “engenharia do mal”
articulada para perseguir Bolsonaro.
Em seu revisionismo de
um passado recente, retratou o ex-presidente como alguém que havia fumado o
“cachimbo da paz”, após suas declarações de que não respeitaria mais decisões
do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, dadas em 7
de setembro de 2021. Na fábula de Malafaia, o então chefe do Executivo ficou
“em silêncio absoluto” após a derrota nas eleições de 2022, foi aos EUA no
final de seu mandato e “não falou de ninguém”, como se fosse um resoluto
respeitador do pleito eleitoral, e não alguém que não só tramava um golpe, mas
que também havia feito um discurso dúbio no fim do seu mandato, dizendo, entre
outras coisas, que “as Forças Armadas deviam lealdade ao povo”.
Se Bolsonaro não podia
atacar o STF, coube a Malafaia fazê-lo, com sua ficção da tal “engenharia do
mal” e também ao apontar que Alexandre de Moraes teria “sangue nas mãos” em
função da morte de um dos presos pelos ataques golpistas de 8 de Janeiro que estava
na Penitenciária da Papuda. O pastor afirmou que o ministro “vai dar conta a
Deus”. Não é a primeira vez que ele diz isso. Para passar a imagem
de um Bolsonaro sereno, foi o pastor que encarnou a virulência que forja
inimigos e amarra o discurso permeado de ódio que tem o poder de mobilizar.
·
“Momento da libertação”
Ainda que seja um
líder de igreja, não foi de Malafaia o discurso com maior teor religioso, e sim
o da ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro. Ela discursou por quase 16 minutos,
em uma fala que misturou pregação, oração, citações bíblicas e política.
Deus teve o nome
mencionado 32 vezes por ela, com referências, também na casa das dezenas, ao
termo “Senhor”, que esteve presente em frases como “o Brasil é do Senhor”. “Meu
marido foi escolhido e declarou que era Deus acima de todos. Se é difícil com
Deus, é impossível sem Ele”, disse ainda, sempre em tom choroso, fazendo da
trajetória do cônjuge uma espécie de jornada do herói.
O momento mais
emblemático, no entanto, talvez tenha sido o trecho em que condenou quem havia
dito que “não poderiam misturar política com religião, e o mal ocupou o
espaço”. Em seguida, clamou: “chegou o momento da libertação”. Ali, Michelle
não só fez uma espécie de autorização para si a respeito da junção entre
religião e política, posicionando-se como alguém que encarna esse ideário, mas
também legitimou tal união como uma forma de combater o que chama de “mal”. Ela
também agradeceu ao pastor Malafaia pela “mobilização”.
Michelle tomou a
palavra por um tempo quase duas vezes e meia maior do que o discurso do
governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que em seu discurso divulgou
conquistas do governo anterior que não eram dele, como o Pix. “Quem eu era, não
era ninguém. E o presidente apostou em pessoas como eu e tantos outros que
surgiram que tiveram posição de destaque porque ele acreditou”, disse,
reforçando seu vínculo com o ex-chefe. Mas mostrou dificuldades em realizar uma
comunicação mais direta com o público, falando do “desafio da
representatividade que só vai ser vencido com liberdade” ou do “desafio da
segurança jurídica para que a gente tenha previsibilidade”. Nada que anime
qualquer tipo de plateia.
No evento, a diferença
entre Michelle e Tarcísio era nítida: enquanto uma figura tinha o poder de
atrair e agitar a base do ex-presidente, encarnada no fervor religioso que se
torna ainda mais protagonista, o outro era o aceno à elite econômica e àqueles
que não se importam com pendores autoritários ou mesmo com o frágil arranjo
democrático brasileiro, sempre dispostos a abraçar o extremismo se lhes for
conveniente.
·
O bolsonarismo sem Bolsonaro
O ato serviu para
mostrar quais são os caminhos de um bolsonarismo que não terá Bolsonaro, já que
hoje ele está inelegível e tem um caminho tortuoso em termos judiciais por
conta de uma tentativa de golpe de Estado. O braço religioso da base extremista
se fortaleceu e é hoje a avalista da sobrevivência desse segmento.
A Justiça, ao
enquadrar militares de alta patente, enfraqueceu o ímpeto das Forças Armadas
que, em uma espécie de política de redução de danos, buscam isolar os golpistas
mais notórios para preservar sua imagem e seu poder de influência. Contam, para
isso, com parte da mídia comercial e com aliados importantes nos Três Poderes.
Isso, no entanto, acarreta perda de espaço no bolsonarismo, tanto do ponto
vista das figuras que seriam protagonistas como na organicidade que sustenta o
extremismo.
E esse vácuo já está
sendo ocupado por Malafaia e outras lideranças do meio. Não à toa, Bolsonaro
disse em seu discurso que era preciso ter atenção para votar nos “vereadores”,
que em sua fala vieram antes mesmo dos prefeitos. Grupos evangélicos neopentecostais
mobilizaram-se para as eleições dos conselheiros tutelares, em 2023, também
para fomentar candidaturas às Câmaras de vereadores em 2024, projetando voos
legislativos mais altos daqui a dois anos. O projeto de expansão da base de
fiéis se relaciona com o aumento da participação política em nível
institucional e o ato de domingo evidenciou que será o bolsonarismo a mola
propulsora desse objetivo.
A anistia e a falta de
uma justiça efetiva de transição democrática deram ao Brasil um governo de
militares eleito pela via direta. Agora, as isenções tributárias, a falta de
controle sobre movimentações financeiras de denominações religiosas, as vistas grossas
diante de seu controle sobre veículos de comunicação, além da imunidade de
lideranças que podem falar absolutamente qualquer coisa em seus púlpitos (o que
inclui propaganda política irregular e destilação de toda sorte de
preconceitos) podem legar ao país mais um elemento destinado a corroer seu
tecido institucional.
Ø
Malafaia entra na mira da PF após ato
golpista e deve ser investigado
O “pastor” Silas
Malafaia pode ter conseguido, finalmente, se ver enroscado de forma oficial no
inquérito da Polícia Federal que investiga a tentativa de golpe de Estado
ocorrida no país entre o fim das eleições de 2022 e o começo de 2023.
Os federais estão
analisando de maneira minuciosa seu discurso incendiário proferido no domingo
(25,) durante o ato dos golpistas de extrema direita apoiadores de Jair
Bolsonaro, realizado na Avenida Paulista, para tipificar os crimes
potencialmente cometidos pelo clérigo radical, que por várias vezes já desafiou
as autoridades dizendo duvidar que alguém tenha coragem de prendê-lo. A
informação é da colunista Bela Megale, do diário carioca O Globo.
De acordo com os
agentes e delegados que atuam no inquérito, Malafaia estaria atuando de forma
aberta em defesa de uma organização criminosa e para atrapalhar as
investigações, inclusive pagando do próprio bolso manifestações como a de
ontem, pelas quais os fanáticos seguidores extremistas do ex-presidente são
insuflados com várias mentiras e interpretações propositalmente distorcidas dos
fatos, a fim de criar animosidades e clima hostil contra a PF, o Ministério
Público Federal e o Judiciário.
“Alexandre de Moraes
diz que a extrema direita precisa ser combatida na América Latina. Como o
ministro do STF tem lado? Ele não tem que combater nem a extrema direita nem a
extrema esquerda. Ele é guardião da Constituição. O presidente do STF, ministro
Barroso, disse ‘nós derrotamos o bolsonarismo’. Isso é uma afronta, uma
vergonha”, disse aos berros o “pastor”, claramente inflamando a multidão com o
repetitivo discurso ultrarreacionário de Bolsonaro.
Oficialmente a PF não
fala sobre a inclusão do nome de Silas Malafaia no inquérito da tentativa de
golpe de Estado, tampouco manifesta em quanto tempo terá uma resposta sobre a
inclusão ou não do “religioso” nas investigações.
·
Gleisi: "O que Bolsonaro fez foi
terceirizar para Malafaia os ataques que sempre fez"
A presidenta do PT e
deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR) fez uma análise importante sobre os
atos golpistas de Bolsonaro neste domingo (25).
A petista destruiu, em
três pontos, as narrativas que Bolsonaro utilizou em seu discurso e deixou
claro que o futuro da extrema direita está em risco.
"Não adianta
amaciar discurso nem posar de vítima, o Brasil e o mundo conhecem o prontuário
antidemocrático, ditatorial e fascista de Jair Bolsonaro. Continua sendo e
sempre será uma ameaça à democracia, ao estado de direito e à paz. O que
Bolsonaro fez foi terceirizar para Malafaia os ataques que sempre fez à
Justiça, às instituições e à verdade", disse Gleisi.
De fato, foi Malafaia
quem assumiu o lado sujo do bolsonarismo, atacando o ministro Alexandre de
Moraes, o governo Lula e defendendo os bolsonaristas do 8/1.
Ela também relembrou o
silêncio de Bolsonaro em depoimento à PF nesta semana. "O discurso de
Bolsonaro foi típico de um farsante, do começo ao fim. Devia ter apresentado à
Polícia Federal sua versão fabulosa sobre o decreto de golpe. Seria confrontado
com as provas da conspiração, que previa tropas na rua e prisão de ministros e
adversários", afirmou.
E ainda relembrou que
quem quer a anistia é Bolsonaro. "Quando fala em anistia para os
condenados pelos atentados de 8 de janeiro, Bolsonaro está mirando sua própria
impunidade. É incapaz de defender interesses que não sejam os dele. Com
golpista não tem que ter complacência, a começar pelo chefe de todos
eles", completa.
Fonte: Por Glauco
Faria, em Outras Palavras/Fórum
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