quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Quem não relativiza o Holocausto relativiza a dor alheia

ESTA FOI UMA SEMANA em que a imprensa brasileira parece ter cantado um samba de uma nota só. Após o presidente Lula comparar o genocídio cometido por Israel em Gaza ao Holocausto, a mensagem enviada pela grande mídia, salvo poucas exceções, foi a mesma: o Holocausto não pode ser relativizado.

E eu pergunto: por quê?

À luz da definição mais ortodoxa, não sou exatamente judeu. Meu pai é, mas minha mãe era católica – o que me torna um gói. Não fiz bar-mitzvah (mas tampouco fiz primeira comunhão), e fui poucas vezes à sinagoga. 

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Entendo, no entanto, que o judaísmo é parte da minha identidade: está no meu sobrenome, na minha pele clara de asquenazi, no meu pênis circuncidado e nos jantares de Yom Kipur e Hosh Hashaná oferecidos na casa do meu tio, quando participo das rezas em hebraico.

No frigir dos ovos, sei que eu estaria na linha de tiro se houvesse um novo ciclo de perseguição ao povo judaico. Portanto, sou judeu.

Não estudei em escola judaica, mas fui educado, pelo meu pai, a carregar tanto a melancolia quanto a ira dos nossos antepassados que sobreviveram ao Holocusto. 

Eu tinha 8 anos em 1990 e me lembro da tristeza dele quando a Argentina foi derrotada, no final da Copa, para a Alemanha. Sim, a Argentina de Maradona, que havia derrotado o Brasil nas oitavas de final, e contra a qual todo torcedor canarinho salivava com desejo de vingança. Mas não na minha casa. Dizem que o futebol nunca é apenas futebol – neste caso, era política, história, ódio, trauma, educação e, claro, sobrevivência. Judeu que era judeu deveria detestar a Alemanha.

Antissemitismo foi sempre um tema – uma ameaça velada, à espreita – que pairou sobre as conversas na nossa casa. Evoco outra situação, esta ocorrida quando ele era professor e eu aluno da mesma universidade, cerca de 20 anos atrás. 

Ele veio a mim pálido, em choque, quase chorando, para avisar que aquilo que sempre temera havia finalmente ocorrido: um aluno respondera a uma questão com um texto antissemita. Pedi para ver o texto: não havia antissemitismo.

Isso me remete muito ao que aconteceu, nesta semana, em termos de reação da comunidade judaica à fala de Lula contra o massacre em Gaza. A fala, cabe frisar, era comovedora e humanista: Lula criticava a indiferença dos países que haviam interrompido a ajuda humanitária a Gaza sob a suspeita de que o dinheiro poderia estar sendo desviado. 

A acusação feita por Israel, e jamais confirmada, é que havia sete – repito, sete – integrantes do Hamas na Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente. Foi o suficiente para que Estados Unidos, Inglaterra, Suíça, Itália, Irlanda, Canadá e Austrália cortassem a ajuda a milhões de palestinos.

“Quando eu vejo o mundo rico anunciar que está parando de dar contribuição para a questão humanitária aos palestinos, eu fico imaginando qual é o tamanho da consciência política dessa gente e qual é o tamanho do coração solidário dessa gente que não está vendo que na Faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio”, ele disse. 

Pouco depois veio a frase que geraria a celeuma diplomática (e a histeria midiática): “O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”.

A reação da comunidade judaica, no Brasil, me lembrou, de alguma forma, a reação do meu pai de vinte anos atrás. O aluno não estava sendo antissemtia – e Lula tampouco. Mas de que importa? Eram não-judeus se arvorando em cutucar as feridas do povo judaico, e isso já era razão para acionar o alarme do antissemitismo.

Eu não compartilho desse alarme, talvez por ser de outra geração, mas consigo entender de onde ele vem e, por isso, o acolho. Hitler ficou no poder de 1933 a 1945 – período em que aviso nenhum, grito nenhum, alarme nenhum impediu que 6 milhões de judeus fossem brutalmente exterminados. 

Findo o terror, a lição que ficou, de um aprendizado pavloviano a partir do sofrimento, foi: ao qualquer sinal de fumaça, por menor que seja, grite. Melhor apagar um fósforo com um extintor a correr o risco de que um fogo pequeno se alastre. 

E a estratégia funcionou muito bem: quase 80 anos depois, permanece mínima a ameaça de um retorno generalizado do antissemitismo. O problema é que nem toda fumaça é sinal de fogo.

O que eu não sou capaz de acolher é a reação da imprensa, ou de gente da imprensa, que deveria primar por uma reação sóbria, desapaixonada. 

O jornal que assino, O Globo, pareceu ter mudado sua redação para Jerusalém – ou para o Palácio do Planalto, onde parece estar ocorrendo tudo o que importa no massacre de Israel contra Gaza. 

“Criticar é legítimo, mas comparar ao Holocausto é antissemita”, disse Guga Chacra, numa chamada publicada na capa do jornal, no dia 18. No dia seguinte, a capa trazia chamadas para um editorial – “Ao comparar Israel a nazistas, Lula agride a história” – e uma coluna de Merval Pereira – “Lula cometeu erro diplomático, histórico e ideológico”.

Outro dia, vi também um tuíte do Álvaro Pereira Júnior dizendo assim:

“Por devoção incondicional a um político, há ‘gente’, nesta rede social, relativizando o Holocausto.

R-E-L-A-T-I-V-I-Z-A-N-D-O

O

H-O-L-O-C-A-U-S-T-O

Era só este o tuíte”.

Bom, eu sou esse tipo de “gente”, e não é por devoção ao Lula. Sou capaz de relativizar o Holocausto porque acho injusto o povo judeu ter o monopólio do sofrimento. E acho burro colocar o Holocausto como um patamar inatingível da barbárie, como se apenas Hitler e a Alemanha nazista tivessem sido capazes de tamanha monstruosidade.

O extermínio, o genocídio e a desumanização estão na base da sociedade ocidental. O Holocausto é insuportável porque representa essa lógica levada a uma escala industrial, absurdamente perversa, mas também por ter ocorrido no jardim de casa. Ele é o genocídio tão presente em séculos de domínio das Américas, da Ásia, da Oceania e da África trazido para a Europa. E exterminando corpos que não eram de negros, indígenas, ou indianos. Eram corpos brancos.

Quem diz isso é sociólogo britânico – e negro – Kehinde Andrews, que escreveu um livro brilhante chamado “A Nova Era do Império”. Cito um trecho, a respeito do genocídio levado adiante pelos britânicos na Austrála:

A ideia de que a violência sofrida pelo povo judeu nas mãos dos nazistas é única só é verdade se o sofrimento, a tortura e a brutalidade infligidos àqueles que não são considerados brancos forem descartados. Os horrores dos campos de concentração são inquestionáveis, mas elevar o Holocausto ao status de mal primário cometido no mundo tem ainda a vantagem de desviar o olhar da brutalidade que a Europa exerceu sobre o planeta.

Quem não relativiza o Holocausto está relativizando a dor alheia. Está dizendo que uma família armena assassinada no genocídio feito pelos otomanos, durante a Primeira Guerra Mundial, tem menos direito à dor que uma família judaica assassinada pelos alemães, durante a Segunda Guerra. 

Que os milhões de indígenas exterminados nos Estados Unidos (onde de fato ocorreu uma solução final, dado que não sobrou ninguém para contar a história) não se comparam aos milhões de judeus exterminados na Europa. 

Aliás, o termo genocídio, segundo o Kehinde Andrews, só passou a existir no Ocidente a partir do Holocausto. O que ocorria antes recebia apenas o nome de colonização.

Dor não se quantifica. Uma criança sem braço, sem perna e sem família aguardando uma cirurgia – não raro feita sem anestesia – num hospital depauperado em Gaza não me parece tão distante, em termos de dor e trauma, de uma criança sobrevivente de Auschwitz. 

Um navio negreiro lotado, com pessoas vivas dormindo por meses sobre cadáveres – ou com pessoas também vivas, sendo jogadas no mar para aliviar o peso do lastro – não se distancia, em termos de desumanização, de uma câmara de gás. 

Colocar o Holocausto como um dogma, um “padrão ouro” da barbárie, só uma vez atingido, nos faz ter a doce ilusão de que a humanidade seria incapaz de repetir tamanho ato. E neste ponto, devo concordar que o Lula errou – mas por outro motivo. 

Errou porque não foi só durante o Holocausto que o Ocidente foi capaz de tanta desumanidade. Foi durante a colonização das Américas por Portugal e Espanha. Foi durante a colonização da África por Bélgica, França e Alemanha. Foi durante o disparo de duas bombas atômicas – com dois dias de intervalo, tempo suficiente para evitar que a segunda fosse acionada – dos Estados Unidos no Japão. A lista é interminável.

A população civil de Gaza vive hoje um massacre. 80% das pessoas não têm mais onde morar. Falta comida e água. Uma criança morre a cada dez minutos. 

A tragédia é tão grande que fez surgir um novo acrônimo – WCNSF (Wounded Child, no Surviving Family, ou Criança Ferida sem Familiares Vivos) para dar conta dos meninos e meninas que chegam nos hospitais com ferimentos graves e sem um único parente vivo para acolhê-los. Hospitais são invadidos pelo Exército israelense.

Por isso, do ponto de vista moral, vejo a fala de Lula como um acerto: é preciso deixar clara a amplitude do trauma provocado por Israel. Lula apontou o dedo para uma barbárie, mas desde então a imprensa só discute o dedo. 

E isso, em termos de cobertura jornalística, é vergonhoso. E também vil, porque ignora o que talvez seja a principal missão da imprensa: a de evitar a barbárie.

Que fique claro: a defesa que faço não é do Lula; é do respeito às outras dores, tão brutais quanto à do Holocausto. Proponho um exercício hipotético, o de imaginar que a frase dita por Lula terminasse assim: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando os portugueses resolveram matar os indígenas no Brasil”. 

Não haveria incidente diplomático – e Benjamin Netanyahu perderia seu bode expiatório para desviar a atenção enquanto segue cometendo suas atrocidades. E também não haveria a indignação altiva da nossa nobre imprensa. Mas por quê? 

Por que a dor sofrida por um dos meus antepassados, num campo de concentração, não pode ser nomeada, mas a dor sofrida pelo antepassado de um indígena pode, ou por um africano que foi sequestrado, acorrentado, enfiado à força num navio, transportado contra sua vontade para outro continente, extirpado de sua família, seu país, sua língua, sua religião e ainda obrigado a trabalhar justamente para quem lhe faz tanto mal? Por que essa dor é aceitável? 

Imagino que tenha a ver com quem tem o poder financeiro e político de ditar a interpretação da história. Os judeus o tiveram – e que ótimo que o tiveram – depois do Holocausto. A população negra e indígena do Brasil, não.

Escrever este texto me traz um ônus triplo, por isso tardei um pouco a enfrentá-lo: me indispõe com a minha família – só nessa semana já foram dois desentendimentos – e com minha classe profissional. De quebra, ainda me faz correr um o risco de ser taxado de judeu antissemita, por contestar aquilo que não pode ser contestado. 

Por isso, acho importante enfatizar uma vez mais: não desmereço a dor e nem o horror do Holocausto. Mas também faço questão de que nenhuma outra dor seja desmerecida. Gostaria que a imprensa pudesse ter a dignidade de abandonar os comentários sobre o dedo do Lula para voltar a comentar o cenário para onde o dedo aponta: o massacre cometido pelo estado de Israel contra os palestinos. 

E, aos linguistas de plantão, pouco me importa se o nome disso é genocídio, morticínio ou crime de guerra. Dor é dor. Barbárie é barbárie. E a barbárie nunca pode ser hierarquizada. 

 

Fonte: Por Roberto Kaz, em The Intercept

 

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