Quem não relativiza o Holocausto relativiza
a dor alheia
ESTA FOI UMA
SEMANA em que a imprensa brasileira parece ter cantado um samba de uma
nota só. Após o presidente Lula comparar o genocídio cometido por Israel em
Gaza ao Holocausto, a mensagem enviada pela grande mídia, salvo poucas
exceções, foi a mesma: o Holocausto não pode ser relativizado.
E eu pergunto: por
quê?
À luz da definição
mais ortodoxa, não sou exatamente judeu. Meu pai é, mas minha mãe era católica
– o que me torna um gói. Não fiz bar-mitzvah (mas tampouco fiz primeira
comunhão), e fui poucas vezes à sinagoga.
Entendo, no entanto,
que o judaísmo é parte da minha identidade: está no meu sobrenome, na minha
pele clara de asquenazi, no meu pênis circuncidado e nos jantares de Yom Kipur
e Hosh Hashaná oferecidos na casa do meu tio, quando participo das rezas em hebraico.
No frigir dos ovos,
sei que eu estaria na linha de tiro se houvesse um novo ciclo de perseguição ao
povo judaico. Portanto, sou judeu.
Não estudei em escola
judaica, mas fui educado, pelo meu pai, a carregar tanto a melancolia quanto a
ira dos nossos antepassados que sobreviveram ao Holocusto.
Eu tinha 8 anos em
1990 e me lembro da tristeza dele quando a Argentina foi derrotada, no final da
Copa, para a Alemanha. Sim, a Argentina de Maradona, que havia derrotado o
Brasil nas oitavas de final, e contra a qual todo torcedor canarinho salivava
com desejo de vingança. Mas não na minha casa. Dizem que o futebol nunca é
apenas futebol – neste caso, era política, história, ódio, trauma, educação e,
claro, sobrevivência. Judeu que era judeu deveria detestar a Alemanha.
Antissemitismo foi
sempre um tema – uma ameaça velada, à espreita – que pairou sobre as conversas
na nossa casa. Evoco outra situação, esta ocorrida quando ele era professor e
eu aluno da mesma universidade, cerca de 20 anos atrás.
Ele veio a mim pálido,
em choque, quase chorando, para avisar que aquilo que sempre temera havia
finalmente ocorrido: um aluno respondera a uma questão com um texto
antissemita. Pedi para ver o texto: não havia antissemitismo.
Isso me remete muito
ao que aconteceu, nesta semana, em termos de reação da comunidade judaica à
fala de Lula contra o massacre em Gaza. A fala, cabe frisar, era comovedora e
humanista: Lula criticava a indiferença dos países que haviam interrompido a ajuda
humanitária a Gaza sob a suspeita de que o dinheiro poderia estar sendo
desviado.
A acusação feita por
Israel, e jamais confirmada, é que havia sete – repito, sete – integrantes do
Hamas na Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina
no Próximo Oriente. Foi o suficiente para que Estados Unidos, Inglaterra, Suíça,
Itália, Irlanda, Canadá e Austrália cortassem a ajuda a milhões de palestinos.
“Quando eu vejo o
mundo rico anunciar que está parando de dar contribuição para a questão
humanitária aos palestinos, eu fico imaginando qual é o tamanho da consciência
política dessa gente e qual é o tamanho do coração solidário dessa gente que
não está vendo que na Faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um
genocídio”, ele disse.
Pouco depois veio a
frase que geraria a celeuma diplomática (e a histeria midiática): “O que está
acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro
momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”.
A reação da comunidade
judaica, no Brasil, me lembrou, de alguma forma, a reação do meu pai de vinte
anos atrás. O aluno não estava sendo antissemtia – e Lula tampouco. Mas de que
importa? Eram não-judeus se arvorando em cutucar as feridas do povo judaico, e
isso já era razão para acionar o alarme do antissemitismo.
Eu não compartilho
desse alarme, talvez por ser de outra geração, mas consigo entender de onde ele
vem e, por isso, o acolho. Hitler ficou no poder de 1933 a 1945 – período em
que aviso nenhum, grito nenhum, alarme nenhum impediu que 6 milhões de judeus fossem
brutalmente exterminados.
Findo o terror, a
lição que ficou, de um aprendizado pavloviano a partir do sofrimento, foi: ao
qualquer sinal de fumaça, por menor que seja, grite. Melhor apagar um fósforo
com um extintor a correr o risco de que um fogo pequeno se alastre.
E a estratégia
funcionou muito bem: quase 80 anos depois, permanece mínima a ameaça de um
retorno generalizado do antissemitismo. O problema é que nem toda fumaça é
sinal de fogo.
O que eu não sou capaz
de acolher é a reação da imprensa, ou de gente da imprensa, que deveria primar
por uma reação sóbria, desapaixonada.
O jornal que assino, O
Globo, pareceu ter mudado sua redação para Jerusalém – ou para o Palácio do
Planalto, onde parece estar ocorrendo tudo o que importa no massacre de Israel
contra Gaza.
“Criticar é legítimo,
mas comparar ao Holocausto é antissemita”, disse Guga Chacra, numa chamada
publicada na capa do jornal, no dia 18. No dia seguinte, a capa trazia chamadas
para um editorial – “Ao comparar Israel a nazistas, Lula agride a história” – e
uma coluna de Merval Pereira – “Lula cometeu erro diplomático, histórico e
ideológico”.
Outro dia, vi também
um tuíte do Álvaro Pereira Júnior dizendo assim:
“Por devoção
incondicional a um político, há ‘gente’, nesta rede social, relativizando o
Holocausto.
R-E-L-A-T-I-V-I-Z-A-N-D-O
O
H-O-L-O-C-A-U-S-T-O
Era só este o tuíte”.
Bom, eu sou esse tipo
de “gente”, e não é por devoção ao Lula. Sou capaz de relativizar o Holocausto
porque acho injusto o povo judeu ter o monopólio do sofrimento. E acho burro
colocar o Holocausto como um patamar inatingível da barbárie, como se apenas
Hitler e a Alemanha nazista tivessem sido capazes de tamanha monstruosidade.
O extermínio, o
genocídio e a desumanização estão na base da sociedade ocidental. O Holocausto
é insuportável porque representa essa lógica levada a uma escala industrial,
absurdamente perversa, mas também por ter ocorrido no jardim de casa. Ele é o
genocídio tão presente em séculos de domínio das Américas, da Ásia, da Oceania
e da África trazido para a Europa. E exterminando corpos que não eram de
negros, indígenas, ou indianos. Eram corpos brancos.
Quem diz isso é
sociólogo britânico – e negro – Kehinde Andrews, que escreveu um livro
brilhante chamado “A Nova Era do Império”. Cito um trecho, a respeito do
genocídio levado adiante pelos britânicos na Austrála:
A ideia de
que a violência sofrida pelo povo judeu nas mãos dos nazistas é única só é
verdade se o sofrimento, a tortura e a brutalidade infligidos àqueles que não
são considerados brancos forem descartados. Os horrores dos campos de
concentração são inquestionáveis, mas elevar o Holocausto ao status de mal
primário cometido no mundo tem ainda a vantagem de desviar o olhar da
brutalidade que a Europa exerceu sobre o planeta.
Quem não relativiza o
Holocausto está relativizando a dor alheia. Está dizendo que uma família armena
assassinada no genocídio feito pelos otomanos, durante a Primeira Guerra
Mundial, tem menos direito à dor que uma família judaica assassinada pelos alemães,
durante a Segunda Guerra.
Que os milhões de
indígenas exterminados nos Estados Unidos (onde de fato ocorreu uma solução
final, dado que não sobrou ninguém para contar a história) não se comparam aos
milhões de judeus exterminados na Europa.
Aliás, o termo
genocídio, segundo o Kehinde Andrews, só passou a existir no Ocidente a partir
do Holocausto. O que ocorria antes recebia apenas o nome de colonização.
Dor não se quantifica.
Uma criança sem braço, sem perna e sem família aguardando uma cirurgia – não
raro feita sem anestesia – num hospital depauperado em Gaza não me parece tão
distante, em termos de dor e trauma, de uma criança sobrevivente de Auschwitz.
Um navio negreiro
lotado, com pessoas vivas dormindo por meses sobre cadáveres – ou com pessoas
também vivas, sendo jogadas no mar para aliviar o peso do lastro – não se
distancia, em termos de desumanização, de uma câmara de gás.
Colocar o Holocausto
como um dogma, um “padrão ouro” da barbárie, só uma vez atingido, nos faz ter a
doce ilusão de que a humanidade seria incapaz de repetir tamanho ato. E neste
ponto, devo concordar que o Lula errou – mas por outro motivo.
Errou porque não foi
só durante o Holocausto que o Ocidente foi capaz de tanta desumanidade. Foi
durante a colonização das Américas por Portugal e Espanha. Foi durante a
colonização da África por Bélgica, França e Alemanha. Foi durante o disparo de
duas bombas atômicas – com dois dias de intervalo, tempo suficiente para evitar
que a segunda fosse acionada – dos Estados Unidos no Japão. A lista é
interminável.
A população civil de
Gaza vive hoje um massacre. 80% das pessoas não têm mais onde morar. Falta
comida e água. Uma criança morre a cada dez minutos.
A tragédia é tão
grande que fez surgir um novo acrônimo – WCNSF (Wounded Child, no Surviving
Family, ou Criança Ferida sem Familiares Vivos) para dar conta dos meninos e
meninas que chegam nos hospitais com ferimentos graves e sem um único parente
vivo para acolhê-los. Hospitais são invadidos pelo Exército israelense.
Por isso, do ponto de
vista moral, vejo a fala de Lula como um acerto: é preciso deixar clara a
amplitude do trauma provocado por Israel. Lula apontou o dedo para uma
barbárie, mas desde então a imprensa só discute o dedo.
E isso, em termos de
cobertura jornalística, é vergonhoso. E também vil, porque ignora o que talvez
seja a principal missão da imprensa: a de evitar a barbárie.
Que fique claro: a
defesa que faço não é do Lula; é do respeito às outras dores, tão brutais
quanto à do Holocausto. Proponho um exercício hipotético, o de imaginar que a
frase dita por Lula terminasse assim: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza
e com o povo palestino não existe nenhum outro momento histórico. Aliás,
existiu quando os portugueses resolveram matar os indígenas no Brasil”.
Não haveria incidente
diplomático – e Benjamin Netanyahu perderia seu bode expiatório para desviar a
atenção enquanto segue cometendo suas atrocidades. E também não haveria a
indignação altiva da nossa nobre imprensa. Mas por quê?
Por que a dor sofrida
por um dos meus antepassados, num campo de concentração, não pode ser nomeada,
mas a dor sofrida pelo antepassado de um indígena pode, ou por um africano que
foi sequestrado, acorrentado, enfiado à força num navio, transportado contra
sua vontade para outro continente, extirpado de sua família, seu país, sua
língua, sua religião e ainda obrigado a trabalhar justamente para quem lhe faz
tanto mal? Por que essa dor é aceitável?
Imagino que tenha a
ver com quem tem o poder financeiro e político de ditar a interpretação da
história. Os judeus o tiveram – e que ótimo que o tiveram – depois do
Holocausto. A população negra e indígena do Brasil, não.
Escrever este texto me
traz um ônus triplo, por isso tardei um pouco a enfrentá-lo: me indispõe com a
minha família – só nessa semana já foram dois desentendimentos – e com minha
classe profissional. De quebra, ainda me faz correr um o risco de ser taxado de
judeu antissemita, por contestar aquilo que não pode ser contestado.
Por isso, acho
importante enfatizar uma vez mais: não desmereço a dor e nem o horror do
Holocausto. Mas também faço questão de que nenhuma outra dor seja desmerecida.
Gostaria que a imprensa pudesse ter a dignidade de abandonar os comentários
sobre o dedo do Lula para voltar a comentar o cenário para onde o dedo aponta:
o massacre cometido pelo estado de Israel contra os palestinos.
E, aos linguistas de
plantão, pouco me importa se o nome disso é genocídio, morticínio ou crime de
guerra. Dor é dor. Barbárie é barbárie. E a barbárie nunca pode ser
hierarquizada.
Fonte: Por Roberto
Kaz, em The Intercept
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