Thiago Trindade Lula da Silva: O ego do
tirano pode até favorecer a democracia
Bolsonaro será preso,
inevitavelmente. Mas como ficará a configuração da direita sem sua presença no
tabuleiro?
A prisão de Bolsonaro
se aproxima, as investigações da Polícia Federal deixam isso claro, o cerco
está se fechando e sua ida para a cadeia é inevitável. Sabemos disso e até ele
e sua turma sabem também. A manifestação chamada pelo próprio, no último domingo
(25), foi apenas mais um sinal de desespero. Foi feita com o intuito de
demonstrar força e um pedido desesperado de anistia, pois, antes de domingo,
Bolsonaro disse que só queria uma foto para mostrar ao Brasil e ao mundo sua
força política. No entanto, durante seu discurso, pediu anistia e para que o
passado fosse esquecido. Bem, não será esquecido nem por nós brasileiros, nem
pela Justiça.
Muitos entenderam como
uma demonstração de força para a esquerda e para o STF, como um modo de dizer
“aqui está o meu exército e se eu for preso haverá convulsão social”. Não
entrarei no mérito da força exibida, se funcionou ou se flopou, ou ainda se o STF
e as instituições recuarão diante da foto. Ou também se a manifestação em si
configura crime, se saiu de lá mais enfraquecido, enfim. Como disse,
independentemente de tudo o que ocorrera no domingo, ele será preso.
Mas o que me chama
atenção é exatamente o recado oculto que Bolsonaro passou. O recado para a
direita brasileira. Bolsonaro deixou claro para seus aliados que é ele quem tem
o apoio dos conservadores brasileiros. É ele que tem o poder de mobilizar
parcelas da população, e esse poder não será naturalmente passado para frente.
Bolsonaro não quer e nunca quis dividir seu lugar de líder da direita, tendo,
inclusive, ao longo dos anos, queimado quem ousou crescer debaixo de sua bota.
Já deixou claro que ele é o líder e ninguém mais.
Muitos acreditam que a
democracia brasileira só foi salva exatamente por conta da incompetência (ou da
burrice mesmo) de parte dos golpistas. Acredito que continuando na mesma
inércia, o ego do tirano pode ser mais um elemento que favorece nossa democracia.
Com isso, os próximos
movimentos da direita brasileira podem ficar dispersos sem uma liderança
central. A corrida será para pegar o máximo possível do espólio deixado por
Bolsonaro. Ao deixar um grande vácuo, os candidatos a receber a “herança”
brigarão entre si. A direita se desestabilizará por um curto período de tempo,
quem sabe até apenas as próximas eleições, ou mais. Talvez o mais provável é
que ela se descentralize, dividindo o poder e a liderança em vários centros
menores, o que pode trazer consequências importantes para a vida política
nacional, já que sem uma narrativa centralizada, o método das fake news se
enfraquecerá.
Aí talvez esteja a
oportunidade que a esquerda, os progressistas, os democratas e as instituições
tanto precisam para restabelecer a verdade no país.
Digo isso pois o
método das fake news pressupõe uma centralidade, uma organização. Não à toa, um
dos organismos mais importantes do governo Bolsonaro era o chamado “gabinete do
ódio”. Agora imagine, no meio do caos, o famoso “barata voa”, cada deputado conservador,
cada governador, prefeito, vereador, jornalista, influencer, grupo do
Whatsapp/Telegram, cada um criando sua própria versão dos novos fatos para
crescer entre os seus, disputando um novo lugar de privilégio dentro deste
espólio. A briga será feroz, e é nesse período que a parte civilizada do Brasil
deve aproveitar para tomar de volta as rédeas, pelo menos no que diz respeito à
disputa de narrativa.
Mesmo com toda sua
organização e poderio financeiro, a derrocada do líder maior sempre causará
turbulência. A aposta é que essa turbulência seja grande o suficiente para
abrir espaços, afrouxando os laços ideológicos de sua militância.
O país não voltará a
ser o mesmo que era antes da Lava Jato, do golpe e o do combo desumano visto na
pandemia e no governo Bolsonaro, embora vigore no momento um excelente governo
Lula III. As fake news não cessarão, mas um ambiente favorável pode tornar essa
prática menos eficiente e dar um “respiro” nessa atmosfera de mentiras.
A prisão de Bolsonaro
não é necessária apenas para punir o bandido que ele é, nem apenas servirá de
exemplo. Essa prisão é necessária também para que haja um novo momento para o
Brasil, novas configurações no tabuleiro político e novos movimentos que possam,
porventura, aparecer.
O movimento fascista
do bolsonarismo se formou de tal forma que cooptou e englobou toda a direita,
não deixando espaço para alternativas como a terceira via. E não foi por falta
de tentativa. Isso criou a tal percepção de “polarização”.
Há aqueles que
erroneamente dizem que o PT ajudou a criar a polarização, pois seria do seu
interesse. Bem, quem diz isso não conhece a história do Partido dos
Trabalhadores e esteve distante da política brasileira nos últimos 40 anos. O
PT precisa de democracia. Lutou, construiu e se fortaleceu nela como partido.
Já o movimento
fascista bolsonarista não aguentou duas eleições sem a tentativa de um golpe de
Estado. Sem Bolsonaro a polarização tende a acabar, e o PT segue em frente.
Evidentemente que tudo
ficará mais claro com o decorrer do tempo. As eleições municipais serão o
cenário desse embate e indicarão as novas movimentações de reconfiguração da
direita. Quem sabe não viveremos um novo momento em que a
direita/centro-direita seja mais republicana e menos fascista, conseguindo
assim se apresentar como uma alternativa?
A queda de Bolsonaro
antes das eleições municipais de 2024 terá um impacto muito grande na disputa.
Até 2026 muita coisa pode acontecer. Quem garante que Tarcísio, que é o
candidato a presidente natural do bolsonarismo, não terá nenhum adversário
disputando seu espaço político?
Tendo a crer,
pessoalmente, que qualquer face da direita que não seja fascista e golpista, e
que ajude a elevar minimamente o nível do debate político nacional, já será um
grande avanço.
Assim como em qualquer
dimensão da vida, a política é muito traiçoeira na hora em que fazemos análises
e previsões sobre o que virá mais à frente, sobretudo no Brasil, onde a terra
plana capota quase toda semana. No entanto, esse é um exercício de imaginação
sadio e que, no mínimo, gera bons debates.
Enquanto isso não
ocorre, veremos o que acontece. Até lá, continuamos acompanhando e comemorando
a Justiça sendo feita e cada vitória da democracia.
Ø
Falar sobre 64 não é remoer o passado. É
discutir o futuro
“Em entrevista para o
jornalista Kennedy Alencar, o presidente Lula afirmou que seu governo não
pretende pautar o tema dos 60 anos do golpe, porque ele deseja olhar para o
futuro, não “remoer o passado”.
Entendemos que a fala
do presidente é equivocada, e gostaríamos de convidar o governo e a sociedade
civil a refletir sobre a questão.
Queremos começar
destacando que falar sobre os 60 anos do golpe de Estado não se trata de remoer
o passado. Pelo contrário, trata-se de colocar em debate o que queremos para o
futuro do Brasil.
Lula apresenta um
contraponto entre falar sobre o passado ou reconstruir o Brasil e fazer o país
se desenvolver economicamente. Pois então, presidente, o golpe de 1964 foi dado
para impor um projeto econômico ao país, defendido pelos mesmos setores que seu
governo busca enfrentar hoje.
A verdade é que as
elites econômicas do Brasil nunca tiveram problema em abraçar o fascismo para
impor sua agenda econômica regressiva e de aprofundamento das desigualdades.
Foi assim em 1964, em 2016 contra Dilma e em 2018 com Bolsonaro. E é por isso
que setores dessas elites financiaram a tentativa de golpe do 8 de janeiro de
2023.
Por isso, falar sobre
1964 é falar sobre os projetos autoritários e elitistas da sociedade que
continuam ameaçando a possibilidade de o Brasil se afirmar como um país
soberano, capaz de produzir desenvolvimento econômico e socioambiental com
inclusão e democracia. É, portanto, falar sobre o futuro.
O segundo ponto da
fala do presidente que gostaríamos de discutir é sua fala de que ele está mais
interessado em discutir o 8 de janeiro do que 1964. Pois nós queremos defender
que é impossível falar de um sem abordar o outro.
É a tradição histórica
de não punir os golpistas e torturadores do passado que faz com que essas
elites econômicas e setores amplos das Forças Armadas se sintam à vontade para
continuar buscando soluções de força para impor seus projetos ao país, ao largo
da democracia e da soberania popular.
Não é à toa que a nova
palavra de ordem do Bolsonarismo seja por “Anistia”. Bolsonaro e seus aliados
sabem que o instrumento da anistia sempre funcionou, na história do Brasil,
para perdoar os que atentam contra a democracia. O que eles querem é repetir esse
padrão histórico.
Por isso, repudiar
veementemente o golpe de 1964 é uma forma de reafirmar o compromisso de punir
os golpes também do presente e eventuais tentativas futuras.
Lula tem razão quando
diz que pela primeira vez militares de alta patente estão sendo chamados para
depor e para responder por seus atos. E temos convicção de que o governo não
aceitará qualquer chantagem por uma anistia a Bolsonaro e seus cúmplices.
Ao mesmo tempo, porém,
Lula diz que a política adotada pelo seu Ministro da Defesa, José Múcio
Monteiro, é “adequada”. Pois aqui há uma contradição gritante: de nada
adiantará a punição a indivíduos específicos se o Brasil não colocar na mesa
definitivamente um debate sobre as necessárias reformas institucionais nas
Forças Armadas. Punir meia dúzia de generais mas não promover mecanismos de
adequação da caserna à democracia e de subordinação dos militares ao poder
civil significa, em última instância, que o pedido de Bolsonaro por uma
“borracha no passado” estará sendo atendido.
Gostaríamos de
enfatizar que o próprio presidente faz uma ressalva em sua fala, ao admitir que
ainda há desaparecidos no país. Pois bem, presidente, está em suas mãos
enfrentar esse tema. É urgente a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos, cujo decreto está na Casa Civil há quase um ano. O processo de
reparação não foi plenamente reconstruído: a Comissão de Anistia está julgando
menos que o governo Bolsonaro, não retomou os projetos de memória das gestões
passadas, como: Marcas da Memória, Caravanas da Anistia, Memorial da Anistia,
Clínicas do Testemunho. Nessa seara a reconstrução não chegou. E ainda, falta
avançar na implementação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade e no
cumprimento das sentenças internacionais ao redor do tema da Anistia como
impunidade. Ademais, como pedir às filhas, filhos, irmãos, irmãs, netos e
netas, sobrinhos e sobrinhas de desaparecidos políticos, cujos corpos jamais
foram encontrados, que esqueçam os seus entes queridos numa vala qualquer desconhecida
e abandonada pela própria história?
Ao mesmo tempo,
chamamos atenção para o fato de que essas não são as únicas pendências do
Brasil em relação à ditadura militar. Localizar os desaparecidos deve ser parte
de uma agenda mais ampla, que passa inclusive por uma discussão sobre o quanto
inúmeros setores da sociedade foram atingidos pela ditadura e até hoje nem
foram reconhecidos como vítimas do regime. Indígenas, camponeses, moradores de
favelas e periferias, a população negra, os LGBTQIA+, os trabalhadores – é
fundamental que reconheçamos, enquanto pais, o quanto o golpe de 1964 impactou
esses setores da sociedade, que historicamente foram e continuam sendo alvos
preferenciais da violência do Estado. Nesse sentido, há uma pendência enorme do
Brasil em termos de memória, verdade, justiça e reparação em relação a essas
violações.
Não aceitaremos que,
mais uma vez, os governos negociem ou abdiquem dos direitos das vítimas para
poder contemporizar com os militares. Não aceitaremos mais essa tutela cujo
preço histórico quem tem pago são os familiares, todos os que foram atingidos
por atos de exceção, todos que trabalham pela construção da memória para a
defesa da democracia.
Por isso tudo,
presidente, falar sobre o golpe de 1964 não é remoer o passado. É algo
fundamental para que o senhor e seu governo continuem avançando em uma agenda
voltada para transformar definitivamente o futuro do país, com vistas a
construir um país cada vez mais justo e democrático.”
Fonte: Fórum/Coalizão
Brasil Memória Verdade Justiça Reparação e Democracia
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