Chacina de Varginha: Polícia Federal
indicia PRFs e PMs em caso com 26 assassinatos
Após dois anos de
investigação, a Polícia Federal (PF) concluiu que não houve resistência contra
a ação policial que matou 26 pessoas em Varginha (MG), na maior chacina
protagonizada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) durante o governo de Jair
Bolsonaro (PL). Segundo apuração da PF, os agentes teriam simulado um tiroteio,
mas os homens estavam desarmados quando foram surpreendidos e executados,
muitos com tiros pelas costas, na manhã do dia 31 de outubro de 2021. Para os
investigadores, os policiais envolvidos na operação “queriam o resultado morte
para todos que ali estavam”.
A PF encaminhou na
terça-feira (27/2) à Justiça Federal o relatório final do inquérito sobre o
caso, em que pede o indiciamento de 23 policiais rodoviários e 16 militares,
incluindo um tenente-coronel, por crimes que vão de tortura, autoria e
coautoria de homicídio qualificado (quando há intenção de matar) e fraude
processual.
>>> Por que
isso importa?
- A Chacina de Varginha foi a primeira de uma série de
operações lideradas pela PRF que resultaram em múltiplas mortes durante o
governo Bolsonaro.
- O processo mostra a tentativa de responsabilização de
possíveis abusos por parte de autoridades.
Três dias antes,
começou a circular nos grupos de WhatsApp de policiais uma vaquinha para
auxiliar os agentes da PRF a arcar com os custos com advogados e peritos. A
mensagem é atribuída ao Sindicato dos Policiais Rodoviários de Roraima.
“Devido aos
desdobramentos do processo, ainda que tendo atuado de forma legítima, os
policiais estão tendo altos custos com a defesa técnica […] por isso, na
tentativa de diminuir esses custos, os Policiais Rodoviários Federais – PRFs
pedem ajuda dos colegas com a contribuição de qualquer valor”, diz o texto da
mensagem.
No inquérito ao qual
a Agência Pública teve acesso com exclusividade, a PF desmonta a
versão dos depoimentos prestados pelos investigados – a mesma divulgada aos
meios de comunicação pelo governo Bolsonaro – de que teria ocorrido uma intensa
troca de tiros com os membros de uma quadrilha do chamado “Novo Cangaço”.
“Todos os infratores
que eu vi ou estavam disparando ou estavam com armamento apontado para a equipe
policial, claramente no intuito de matar policiais”, destacou o comandante da
equipe, à época dos fatos lotado no Comando de Operações Especializadas da PRF
em Brasília, Lucas Macedo Fontenele Victor, em depoimento no dia 27 de junho de
2022. Dias antes, em 15 de junho de 2022, ele foi dispensado do cargo de direção. A PF o acusa de ter disparado contra
três pessoas durante a ação.
Com base em dois
laudos técnicos produzidos por peritos criminais federais – totalizando 1.455
mil páginas – aos quais a reportagem também teve acesso, os investigadores
concluíram que os policiais deram “uma versão inverossímil” para o que ocorreu
nas duas chácaras onde a quadrilha estava reunida, na madrugada do dia 31 de
outubro de 2021 e sua véspera. “Ficou patente [claro] que o relato dos
policiais rodoviários e dos policiais militares foi uma criação fictícia,
previamente acertada entre eles, com vistas a elidir a responsabilidade destes
pelos excessos cometidos”, aponta a PF.
O exame pericial
indicou que não houve resistência nem injusta agressão contra as equipes
táticas, conforme sustentam os investigados. Os exames revelaram que dos 26
mortos, 17 foram alvejados pelas costas – entre eles, Nunis Azevedo Nascimento,
com seis tiros do tipo. Também foram detectados entre os mortos ferimentos em
membros superiores e inferiores, compatíveis com lesões de defesa, “geralmente
produzidas quando a pessoa coloca a mão, braços ou pernas à frente do corpo na
tentativa de impedir a ação do instrumento lesivo”.
Durante a ação, nenhum
policial foi ferido. Ao todo, eles fizeram 500 disparos. Thalles Augusto da
Silva foi atingido por 14 tiros, o maior número entre os mortos. Dos cerca
de 300 cartuchos localizados nas duas chácaras, apenas 20 foram atribuídos às
armas dos integrantes da quadrilha, mas estes disparos, segundo a PF, teriam
sido realizados pelos próprios policiais após a ação, com intuito de “simular
uma batalha que jamais houve”.
“Por tudo quanto até
aqui apurado, não restam dúvidas: todos que ingressaram nas edificações e seus
perímetros mais próximos queriam o resultado morte para todos os que ali
estavam”, concluiu a PF em seu relatório. Para os investigadores, os policiais
que atuaram na operação partiram da premissa “de que todos os homens que
estavam na chácara eram criminosos e deveriam ser alvejados”.
“Há indivíduos que
levaram vários tiros provenientes de vários atiradores. Logo, vários queriam as
mortes destes. A disposição dos corpos também é clara: a equipe policial foi
‘varrendo’ o perímetro e abrindo fogo em quem estivesse à frente. Não se sabia
quem era quem”, observa a PF.
A Federação Nacional
dos Policiais Rodoviários Federais (FenaPRF) informou por meio de nota que vai
“dar todo suporte para contestar os laudos apresentados pela investigação da
Polícia Federal”. “Não se pode punir quem agiu para proteger a população, nem
abrir precedentes para que policiais passem a trabalhar com medo de exercer o
seu dever de enfrentar a criminalidade”, destaca a entidade.
A Pública procurou
o advogado dos agentes da PRF indiciados, Jarbas Aredes Jr. e a defensora
pública Letícia Barra, que defende os policiais militares – por meio da
assessoria de imprensa da Defensoria Pública de Minas Gerais, mas não obteve retorno.
A reportagem também entrou em contato por mensagem de texto com os indiciados,
mas ainda não teve resposta. Este espaço será atualizado em caso de
manifestação.
·
Grupo não estava pronto para combate; armas
de quadrilha estavam armazenadas
A acusação da Polícia
Federal também sustenta o fato de os peritos terem concluído que os grandes
volumes de armas e munições da quadrilha “não estavam disponíveis para pronto
emprego no momento da ação policial”. Elas estariam embrulhadas em sacos plásticos
e armazenadas no interior de um dos veículos que seriam usados para assalto a
bancos no município de Varginha. Um único homem teria atirado contra a polícia,
usando uma Glock modelo G17 calibre 9 mm.
Uma imagem que reunia
o grande arsenal do grupo divulgada à imprensa pela PRF, à época comandada por
Silvinei Vasques – hoje preso por interferência no segundo turno das eleições
presidenciais – foi apresentada como instrumento de resistência à operação para
chamar atenção da sociedade para a periculosidade dos homens mortos. O
inquérito da PF aponta, no entanto, que as armas pertencentes aos membros da
quadrilha, atribuídas ao local do suposto confronto, inclusive a metralhadora
calibre .50, com capacidade de abater helicópteros, estavam guardadas e teriam
sido introduzidas na cena após a chacina.
“Nos dois sítios,
foram encontrados sacos com formato de canos ou compatíveis com embalagens de
armamentos sobre manchas de sangue, sobre pegadas produzidas no confronto ou em
locais que sugerem, de forma consistente, que os policiais foram responsáveis pela
abertura. No sítio 2, a embalagem compatível com o fuzil .50 foi encontrada no
local de estacionamento”, informa o laudo pericial.
Outro indício apontado
pela PF de que os homens não estavam preparados para o confronto com a polícia
foram os vestígios de que um churrasco teria sido feito no dia anterior,
“regado a álcool e drogas”. “A análise conjunta dos vestígios do sítio 1 indicou
que na noite imediatamente anterior ocorreu um churrasco na casa e que os
sujeitos não tinham percepção de iminente ação por forças de segurança, tendo
sido surpreendidos com a abordagem”, concluíram os peritos.
A polícia invadiu a
primeira chácara onde parte do grupo estava reunido, identificada no inquérito
da PF como sítio 1, por volta das 5h e mataram 18 pessoas, incluindo o caseiro,
Adriano Garcia. Há indícios de que ele estava assistindo à televisão quando os
policiais chegaram ao local. Após a ofensiva, uma parte da equipe percorreu 18
km até a segunda chácara, nomeada pelos investigadores como sítio 2, onde
outras oito pessoas foram mortas.
Conforme revelou
a Pública em reportagem publicada em outubro do ano passado, os policiais teriam
adulterado os locais onde ocorreu a chacina, causando “prejuízos à
interpretação dos fatos”. Ao chegarem às chácaras no dia seguinte à operação,
os peritos narram ter encontrado um “cenário caótico”.
Corpos ensanguentados
foram arrastados sob o argumento de que deveriam ser socorridos, vestígios
foram retirados dos locais originais ou “misturados a elementos deliberadamente
introduzidos na cena”, roupas e objetos foram “espalhados por todos os cômodos
por cima das marcas de arrastamento” e colchões foram transferidos “de um
ambiente para outro”.
Depois da ação, os
corpos foram empilhados pelos policiais em caminhonetes não caracterizadas e
levados primeiro à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Varginha e depois ao
Hospital Bom Pastor. Os profissionais de saúde das unidades que trabalhavam naquele
dia relataram à PF que “receberam somente cadáveres”. Em uma das imagens
anexadas ao inquérito que mostram o momento em que os baleados chegaram ao
hospital, é possível ver que um dos policiais viajou sentado sobre os corpos,
“em condição incompatível com eventual prestação de socorro”.
Para os
investigadores, “a dita prestação de socorro” também foi realizada com a
intenção de “dificultar a reconstituição do ocorrido”. A PF destacou, por
exemplo, que até mesmo corpos que tinham sinais evidentes de óbito, como crânio
esvaziado em decorrência de um disparo de fuzil, foram removidos até a unidade
de saúde.
“Constata-se, pois,
que todos os policiais que estiveram nos locais dos crimes imediatamente após
os eventos de tiro e agiram para ‘socorrer feridos’ ou ‘esfriar armas’ em
verdade agiram para dificultar os trabalhos investigativos. Aqueloutros que
também estiveram nos locais imediatamente após o ocorrido, ainda que não tenham
participado da inovação e adulteração destes locais, por omissão dolosa,
contribuíram para o resultado criminoso”, ressalta a PF, que, a partir dessa
constatação, indiciou quase todos os policiais por fraude processual, exceto o
PRF Roger Lemos. Do total de indiciados, 20 responderão por autoria ou
coautoria de homicídio qualificado e outros 19 exclusivamente por adulterarem a
cena da operação.
·
Homens teriam sido torturados por agentes
da PRF
Os investigadores
também concluíram que dois integrantes da quadrilha encaminhados à UPA “como se
tivessem sido mais dois roubadores a confrontar a polícia no sítio” não estavam
em Varginha no momento da operação. São eles Francinaldo Araújo da Silva, identificado
como motorista do caminhão que daria fuga aos ladrões, e Gleisson Fernandes da
Silva Morais, que seria um dos mentores do roubo.
Eles teriam saído
juntos de Uberaba (MG) no dia 30 de outubro de 2021, rumo a Varginha, mas
teriam sido rendidos pela polícia em um posto na cidade de Muzambinho (MG) por
volta das 2h53 e levados pelos policiais até a primeira chácara onde ocorreu a
chacina, de acordo com as investigações. A PF acusa os policiais rodoviários
federais Francisco de Paula Moura e Douglas Porpino Batista de terem torturado
os dois ao longo do trajeto.
De acordo com os
investigadores, Francinaldo e Gleisson teriam sofrido torturas física e
psicológica, possivelmente para indicar o local onde estavam os supostos
comparsas do crime “e sobre a condição dos integrantes desta em dito local
(quantidade precisa de membros, tipos de armas, locais onde estivessem as armas
etc.)”.
As informações
levantadas pela perícia apontaram que, no caminho, Francinaldo foi morto com
dois tiros – um no peito e outro no abdômen. Um dos projéteis disparados teve
origem no armamento portado pelo cabo da PM Welinson Teixeira de Souza. O
outro, não foi possível determinar.
O laudo pericial
mostrou também que Gleisson “foi colocado ainda vivo na sala do sítio 1 após o
domínio do local e morto em seguida”, com seis tiros – três deles disparados
pelo PRF Douglas Porpino Cordeiro Batista. A autoria dos outros disparos não
foi identificada.
O corpo de Gleisson
apresentava lesões no rosto, pernas e antebraço “causadas por instrumento
perfurocortante de um gume (compatível com faca inserida pela ponta) em mais de
um golpe na mesma região”, a ponto de ser possível ver seus músculos –
“características de ferimentos que destoavam do padrão dos demais mortos na
ação policial”. Ele teria levado ainda um tiro na mão esquerda, “compatíveis
com as lesões que a doutrina medicina legal doutrinariamente classifica como
‘lesões de defesa’”.
·
“Investigação ilegal”
A operação de
“monitoramento” de uma quadrilha no sul de Minas era de pleno conhecimento e
foi autorizada pelo órgão em Brasília, segundo depoimentos dos policiais. No
entanto, para a PF, a investigação da PRF, que culminou no flagrante contra os
supostos criminosos, foi “ilegal, perpetrada por órgão sem atribuição
constitucional para tal encargo, alapardada [escondida] dos órgãos de controle
e sem registros oficiais foi suficiente”.
“Existem pontos
obscuros e incongruentes nas falas dos policiais rodoviários federais no que se
refere à fonte das informações que dispunham, a forma como eram obtidas
referidas informações e as condições pelas quais estas eram repassadas às
forças policiais”, destaca a PF no relatório.
A narrativa dos fatos
ao longo do documento elucida o contexto de conflito que as duas corporações
vivenciavam à época, devido ao poder dado à PRF pelo governo de Jair Bolsonaro,
em detrimento da PF.
Os investigadores
revelam que a PRF concentrou todas as informações apuradas sobre a suposta
quadrilha e omitiu a origem dos dados, o que causou incômodo dentro da cúpula
da Polícia Federal, que acompanhava o caso.
“No vai e vem de
informações e na interação precária entre as instituições policiais eis que em
setembro de 2021 a PRF fica praticamente sozinha com os dados já obtidos.
Também ela é quem detém as fontes […] que atualizam a inteligência acerca da
provável investida criminosa”, informa a PF no relatório. A corporação chegou a
ser acionada pela PRF para participar da ação do dia 31 de outubro, mas se
recusou “temendo um morticínio de inocentes acaso houvesse confronto entre
policiais e criminosos”.
O resultado da
operação foi na época comemorado nas redes sociais pelo então ministro da
Justiça Anderson Torres. “Mais uma ação de sucesso!”, escreveu Torres.
“Parabéns pelas forças policiais pela condução da ocorrência. Enfrentar a
criminalidade nas ruas é o grande desafio e o diferencial do nosso trabalho.”
Os filhos do então presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e o deputado
federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) parabenizaram os policiais nas redes sociais.
“Fiquem tranquilos, só vagabundos reclamarão. #GrandeDia”, provocou Eduardo.
Essa ação deu início a
uma série de ações envolvendo a PRF que resultaram em múltiplas mortes durante
o governo Bolsonaro. Outro exemplo foi a operação na Vila Cruzeiro (RJ), em
maio de 2022, que deixou um saldo de 23 pessoas executadas. Segundo especialistas,
ações armadas da PRF foram um efeito colateral do poder dado à corporação pelo
governo Bolsonaro.
<<<< Quem
foram os mortos na Chacina de Varginha
- Adriano Garcia (caseiro): morto aos 47 anos, com dois tiros
no sítio 2
- Artur Fernando Ferreira Rodrigues: morto aos 27 anos, com
quatro tiros no sítio 1
- Daniel Antonio de Freitas Oliveira: morto aos 35 anos, com
cinco tiros, no sítio 1
- Dirceu Martins Neto: morto aos 24 anos, com um tiro, no
sítio 1
- Darlan Luiz dos Santos Brelaz: morto aos 41 anos, com cinco
tiros, no sítio 2
- Eduardo Pereira Alves: morto aos 42 anos, com dois tiros,
no sítio 2
- Evando José Pimenta Júnior: morto aos 37 anos, com um tiro
no sítio 2
- Francinaldo Araújo da Silva: morto aos 44 anos, com um
tiro, no sítio 1
- Geronimo da Silva Sousa Filho: morto aos 28 anos, no sítio
1 (sem informação de tiros)
- Gilberto de Jesus Dias: morto aos 29 anos, no sítio 1 (sem
informação de tiros)
- Giuliano Silva Lopes: morto aos 32 anos, com cinco tiros,
no sítio 1
- Gleisson Fernando da Silva Morais: morto aos 36 anos, com
três tiros, no sítio 1
- Isaque Xavier Ribeiro: morto aos 37 anos, com três tiros,
no sítio 2
- Itallo Dias Alves: morto aos 25 anos, com um tiro, no sítio
1
- José Filho de Jesus Silva Nepomuceno: morto aos 37 anos,
com quatro tiros, no sítio 1
- José Rodrigo Dama Alves: morto aos 32 anos, com dois tiros,
no sítio 1
- Júlio Cezar de Lira: morto aos 36 anos, com dois tiros, no
sítio 1
- Luiz André Felisbino: morto aos 44 anos, com quatro tiros,
no sítio 2
- Nunis Azevedo Nascimento: morto aos 33 anos, com seis
tiros, no sítio 1
- Pietro Henrique Silva da Fonseca: morto aos 20 anos, com um
tiro, no sítio 1
- Raphael Gonzaga Silva: morto aos 27 anos, com um tiro, no
sítio 1
- Ricardo Gomes de Freitas: morto aos 34 anos, no sítio 1
(laudo não relata número de tiros)
- Romerito Araújo Martins: morto aos 35 anos, com três tiros,
no sítio 2
- Thalles Augusto Silva: morto aos 32 anos, com três tiros,
no sítio 1
- Wellington dos Santos Silva: morto aos 31 anos, com um
tiro, no sítio 1
- Zaqueu Xavier Ribeiro: morto aos 40 anos, com cinco tiros,
no sítio 2
Fonte: Por Alice
Maciel, da Agencia Pública
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