Veneno de terno, gravata e jaleco: os alvos
do lobby da indústria de agrotóxicos
Cerca de seiscentas
páginas: esse é o espaço ocupado pelos estudos científicos que compõem o Dossiê Abrasco – Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na
saúde. Trata-se de uma compilação de dimensões
hercúleas, organizada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva, com
centenas de pesquisas feitas em várias regiões do país por integrantes de
entidades consagradas no setor acadêmico, como a Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz). Não, não estamos falando de achismos.
Lançado em 2012 (com
um complemento posterior, publicado em 2015), a obra – uma leitura fundamental
para todos nós que lutamos por um modo de cultivar que não destrói a vida -,
não deixa espaço para dúvidas em relação à gravidade da situação que enfrentamos
no país. Estamos sendo envenenados, seja através dos alimentos que chegam às
nossas mesas, da água que sai de nossas torneiras e até do ar que respiramos,
sobretudo no caso de quem vive em áreas próximas às grandes monoculturas, com
seus aviões pulverizadores a cruzarem os céus.
Infelizmente, a
expressão “chuva de veneno” não é uma metáfora. Também não é somente uma
alegoria no título de um
documentário dramático que retrata uma
escola atingida pelo conteúdo tóxico de uma pulverização aérea, em 2013. Embora
o caso retratado seja especialmente trágico, vitimando crianças – que
precisaram de socorro hospitalar na época e que, passados tantos anos, ainda
sofrem consequências do ocorrido – ele está longe de ser o único. Os despejos
de cargas tóxicas por aviões do agronegócio sobre os territórios brasileiros
vêm sendo usados até mesmo como uma arma contra as populações campesinas,
indígenas e quilombolas, já que, para expulsar os povos dos campos, das
florestas e das águas de suas moradas ancestrais, a máfia do veneno recorre até
a guerra química, aproveitando a facilidade com que se consegue, em nosso país,
substâncias altamente agressivas, muitas delas cancerígenas e proibidas em
países do norte global.
Para quem acha que
carreguei demais, ao usar a expressão “máfia do veneno”, sinto informar que a
união das grandes corporações transnacionais, produtoras de agrotóxicos e
sementes transgênicas, com uma elite rural brasileira altamente reacionária,
formada na esteira da colonização escravista, deu origem a uma organização
extremamente poderosa, que opera sem nenhuma preocupação com qualquer parâmetro
ético e, muitas vezes, até mesmo com parâmetros legais.
Se temos hoje um
parlamento dominado por setores que agem para “passar a boiada”, compondo o que
é chamado de “bancada do boi” (embora eu prefira deixar o boi fora dessa e
chamá-la de “bancada do trator”, “tratorando” nossos direitos mais básicos), é
graças à rede mafiosa que se formou para sustentar tamanha desproporção
representativa. Nossa população teria que ser formada por 117 milhões de
fazendeiros para que a atual Câmara dos Deputados fosse compatível com ela, já
que esta possui 58% das cadeiras na
casa. No caso do Senado, o número seria semelhante. É óbvio que são distorções
gigantescas da chamada “democracia representativa”, já que não há
representatividade de fato nos espaços legislativos que estão aí.
A pergunta chave é:
por que? A resposta envolve um termo muito mencionado no mundo do ativismo
socioambiental, mas que segue ausente no vocabulário do povão – o lobby.
·
Quem banca a bancada do veneno
Estrangeirismo de
difícil tradução na língua portuguesa, a palavra lobby é comum nos bastidores
de espaços de decisão, como Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas,
gabinetes de prefeitos e governadores e agências públicas reguladoras. A
tentativa de influenciar no que será decidido pelas pessoas responsáveis pela
condução das políticas públicas a nível local, regional ou nacional é um ato
inerente ao campo da política e é mais do que legítimo que grupos que militam
por uma determinada causa se organizem para que suas pautas sejam atendidas. Se
você é sensível à causa animal e tem disponibilidade para unir um conjunto de
pessoas que também têm essa sensibilidade e procurar um parlamentar para
reivindicar o fim da criação de galinhas em gaiolas ou a proibição do uso de
peles de animais selvagens na moda, tem todo o direito de fazer isso.
De fato, quando saímos
da esfera da democracia representativa e entramos na esfera da democracia
participativa, é natural que organizações da sociedade civil frequentem espaços
públicos de decisão e atuem vibrantemente para viabilizar o que acreditam ser
melhor para a coletividade. Nós, ativistas da Agroecologia, temos feito isso
constantemente e foi graças a esse protagonismo que pudemos avançar até hoje,
com conquistas como a Lei da Alimentação Escolar Orgânica no município de São Paulo e a Lei pela proibição da pulverização aérea no estado do
Ceará, conhecida como Lei Zé Maria do Tomé, em
homenagem ao líder comunitário que, em 2010, foi assassinado na Chapada do
Apodi. Então, podemos falar com a boca cheia que, sim, fizemos, fazemos e
faremos lobby enquanto houver algo pelo que lutar!
O problema é que, no
caso das organizações que representam setores como a indústria de agrotóxicos e
de transgênicos, há um elemento profundamente desequilibrante: o poder
econômico descomunal. Eu e você chegamos até a fazer vaquinha para imprimir os
materiais que levamos a vereadores e vereadoras da nossa cidade para tentar
convencê-los a agir em prol da nossa causa, não é? Já no mundo corporativo, a
escala de valores é outra e pode chegar à casa dos milhões de dólares.
Departamentos inteiros de advogados, publicitários e até cientistas financiados
por grandes empresas trabalham ininterruptamente para que os interesses de seus
“patrões” prevaleçam em decisões tomadas na esfera pública.
Sabe aquela
desproporção de que falamos em relação ao número de parlamentares que fazem
parte da “bancada do trator”? Pois é. Nada é por acaso. Eles só foram eleitos
desse modo desproporcional à população do país porque têm uma potente estrutura
econômica “bancando” suas bancadas e carreiras políticas. Além disso, boa parte
deles é – ou passa a ser quando entra nos parlamentos – dona de latifúndios.
No livro O Partido da Terra, o
jornalista Alceu Castilho apresenta um panorama das propriedades territoriais
de deputados e senadores e traz números chocantes, mostrando que o chamado
“coronelismo” segue imperando na política nacional. Portanto, como já deu para
perceber, ao promoverem mudanças nas leis que afrouxam as regras de proteção
social e ambiental, eles beneficiam-se duplamente. De um lado, ganham mais
liberdade para explorar suas próprias terras e seus trabalhadores. De outro,
contam com as benesses econômicas concedidas pelos poderosas empresas de
agrotóxicos, fertilizantes químicos e organismos geneticamente modificados,
agradecidas por se livrarem de leis mais restritivas.
·
A arte da persuasão
Podemos afirmar que o
que não faltam são comprovações de que o modelo produtivo praticado pelo
Agronegócio é totalmente insustentável. Ele não preserva a natureza. Ele não
traz riqueza para a população brasileira. Ele não mata a fome. Os dados estão
aí e podem ser conferidos em estudos, como O Agro não é tech, o Agro não é pop e muito menos tudo, produzido pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA)
e pela FES Brasil; em artigos, como As top 5 mentiras do agronegócio, disponibilizado pelo Greenpeace e em relatórios, como o Atlas dos Agrotóxicos – Fatos e dados do uso dessas substâncias
na agricultura, lançado há pouco tempo pela Fundação
Heinrich Böll.
Sendo assim, vale nos
perguntarmos: como é que a maior parte da sociedade acredita que esse setor é o
motor da economia, que produz de forma sustentável, que alimenta não só o
Brasil, mas boa parte do globo terrestre – chegando ao absurdo de propagar que
cerca de um bilhão de pessoas no planeta são nutridas por ele? A resposta está,
mais uma vez, na “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como canta
Caetano Veloso.
Sim, uma carteira
farta pode fabricar “verdades”. Está aí o mundo do marketing para provar como
isso pode ser feito. Fumar já foi considerado benéfico à saúde graças a essa
capacidade de distorcer a realidade. Com vultuosos maços de dólares destinados
a cientistas, governos e marqueteiros, foi possível popularizar os maços de
cigarros até em regiões remotas, como a Oceania. E a receita vem sendo seguida
com muito afinco pelo agronegócio. Quanto você acha que custa cada segundo de
anúncio na emissora de TV mais assistida do país? Não, nossas vaquinhas
ativistas não dão conta de entrar nesse páreo.
Imagens de fazendas
exuberantes, altamente tecnológicas, com trabalhadores sorridentes e rebanhos
saudáveis, acompanhadas de números muito bem selecionados para não mostrar
realmente tudo o que eles representam – deixando meticulosamente de lado as
chamadas “externalidades” -, surgem diante dos olhos dos espectadores nos
horários de maior audiência televisiva. Como não se orgulhar desse Agro Pop?
Por outro lado,
quantas pessoas sabem dizer que nosso país permite a utilização de vários
agrotóxicos que são proibidos na União Europeia devido
aos danos que causam em seres humanos e na natureza? Que os índices de abortos
espontâneos e malformações fetais são muito maiores em regiões de grandes
monoculturas? Que polinizadores essenciais ao cultivo de um imenso conjunto de
espécies comestíveis estão sendo dizimados pelos venenos agrícolas, como é o
caso das abelhas? Que nosso país utiliza o mesmo tanto desses biocidas que as
duas maiores potências globais, EUA e China, usam juntos, e a média por hectare
é de cerca de 5 vezes mais do
que é usado em cada um desses gigantes territoriais? Dossiê Abrasco, o que é
Dossiê Abrasco? Aliás, o que é mesmo que significa a palavra “dossiê”? É mais
fácil as pessoas recitarem dados detalhados sobre os artistas famosos do
momento ou frases inteiras ditas pelos pastores nas igrejas do que
compreenderem termos como “Dossiê Abrasco” ou “Atlas dos Agrotóxicos”.
A necessidade de
mostrar para a população que o Agro é tóxico foi um dos motivos da criação
da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, em 7 de abril de 2011. A data, Dia Mundial da Saúde, não foi
mero acaso, já que o envenenamento a que nosso povo está sendo submetido tem
feito explodirem os casos de distúrbios neurológicos, endócrinos e reprodutivos
– e até de câncer, inclusive junto ao público infantil. Ainda em 2013, escrevi
um artigo para o Relatório
dos Direitos Humanos no Brasil que
se chamava “O Envenenamento da Infância”, trazendo um alerta para o aumento da
ocorrência de carcinomas em crianças, o que se mostrou relacionado, com bem
demonstrou a Dra Silvia Brandalise, à exposição a determinados agrotóxicos,
inclusive aos inseticidas que são usados para controlar mosquitos. Nos 10 anos
que se passaram desde que escrevi o artigo, pouco se falou na mídia comercial
sobre essa tragédia, mostrando como o interesse de seus veículos pelos valores
que recebem dos anunciantes é maior do que pela saúde das meninas e meninos que
representam o futuro do país. Mas voltemos ao tempo da criação da Campanha…
Um dos instrumentos
mais poderosos usados por ela em seus primeiros meses de vida foi o filme
O Veneno está na Mesa, dirigido
por Silvio Tendler. Me lembro muito bem como era a reação das pessoas quando
fazíamos sessões nos mais diferentes lugares, sempre acompanhadas de debates,
através do nosso comitê paulista. Realmente, o poder que os vídeos têm de
impactar nossa reação é imenso e seria muito melhor se eles pudessem ser mais
usados para mostrar a realidade e como ela pode ser transformada rumo ao
equilíbrio, ao invés de virar uma ferramenta de lavagem cerebral, como a que é
feita pelos marqueteiros do Agro que é Tóxico.
·
Desde as sementes – inclusive de gente
Se a política e a
mídia, como já vimos, são massivamente usadas pela máfia do veneno como
instrumentos de perpetuação e ampliação de seus poderes, eles não são os
únicos. O trabalho de envenenamento cognitivo, assim como ocorre com o
envenenamento biológico, começa pelas sementes.
Um dos motivos pelos
quais não adianta lavar ou descascar os alimentos cultivados com agrotóxicos é
porque a contaminação deles é sistêmica. Isso significa que a planta toda é
atingida por essas substâncias tóxicas e remover a superfície de seus frutos pode
até aliviar um pouco a carga, mas não vai resolver o problema. De fato, o
(des)tratamento químico delas se dá desde as sementes e segue durante o tempo
em que viverem. Isso vale ainda mais no caso das que têm as sementes
geneticamente modificadas, já que, muitas vezes, elas “ganham” até a capacidade
de produzir por si mesmas uma toxina contra futuras “pragas”, conceito que,
vale sempre reforçar, não existe no modelo agroecológico de cultivo.
Assim, se você age
sobre uma semente, tem grandes chances de interferir na vida de um indivíduo de
uma espécie vegetal por toda a sua existência. Podemos dizer que isso pode
valer para a nossa espécie também. A indústria alimentícia é campeã em
direcionar sua publicidade para que ela atinja com precisão nossas sementes de
gente – as crianças -, no intuito de fazer com que, desde bem pequenas, elas
criem hábitos favoráveis à lucratividade de suas empresas. Acho que nem é
preciso dizer que tais hábitos são diametralmente opostos aos que seriam
favoráveis à saúde. Não é à toa que os anúncios publicitários de produtos
ultraprocessados utilizam personagens e outros recursos lúdicos para atrair a
atenção dos pequenos – o que é complementado por um lobby altamente agressivo
na esfera política, como o que têm dificultado a tributação de produtos nada saudáveis, como os refrigerantes.
É essa mesma rede
corporativa que assedia o ensino fundamental e chega a distribuir cartilhas
“educativas” às escolas públicas e privadas, disseminando conteúdos que
valorizam seus próprios produtos e mascaram os danos que eles podem causar. No
caso da indústria venenosa, isso também vem acontecendo, inclusive através de
movimentos “sociais” organizados pelo Agronegócio, como o Mães do Agro, que
coordena uma ação intitulada De Olho no Material Escolar.
Desde muito cedo, portanto, a população é levada a acreditar que o modelo
agroalimentar convencional é benéfico tanto no nível individual como no
coletivo.
Das creches às
universidades, o assédio vai se refinando e sabemos que, em cursos de
graduação, como o de agronomia, os estudantes são levados a acreditar que
precisam aprender a “receitar” (acho a palavra imprópria para essa ação, já que
agrovenenos não são remédios) todos os tipos de inseticidas, herbicidas,
fungicidas e biocidas sintéticos em geral, para poderem atuar
profissionalmente. Esse é um dos motivos em termos tanta dificuldade para levar
assistência técnica adequada a quem não quer plantar dentro do modelo
convencional envenenado e está em busca de uma forma agroecológica de cultivo.
Enquanto as faculdades de ciências rurais forem fábricas de receitadores de
agrotóxicos, as indústrias que fabricam essas substâncias vão seguir ampliando
seus lucros e deixando um rastro de sofrimento e destruição no país.
·
Jaleco envenenado
Se o lobby veneneiro
atinge em cheio os profissionais que vão orientar agricultores e agricultoras,
ele também vem sendo dirigido a setores que atuam em uma outra ponta do sistema
agroalimentar. Estamos deixando a esfera dos campos e entrando na esfera das
mesas. Como mostra matéria recente feita
por Mariana Costa para O Joio e o Trigo, nutricionistas brasileiros foram
considerados um alvo estratégico para o departamento marqueteiro-científico de
empresas líderes no setor, como a Bayer.
Pressionada pelo
efeito do aumento das preocupações da sociedade mundial em relação à crise
ambiental, a gigante agroquímica investiu em publicações digitais destinadas a
estudantes de nutrição e profissionais já graduados em nossa Terra Brasilis.
Alega que, aqui, o conhecimento sobre agricultura nos cursos de formação da
área é deficiente – o que, infelizmente, é mesmo uma realidade. Nestes anos de
militância na Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, temos
testemunhado uma falta expressiva da noção de como funciona o mundo rural tanto
em faculdades quanto em hospitais e consultórios. Isso se traduz em uma crença
de que alimentos cultivados de forma convencional são seguros e adequados para
a população, o que está a léguas de ser verdadeiro.
De fato, nós,
ativistas por uma alimentação saudável, também achamos que é necessário
preencher essa lacuna tão problemática, já que se trata da falta de saber por
parte justamente de quem vai recomendar o que as pessoas devem ou não comer. Se
profissionais da área da saúde, como é o caso de nutricionistas, dizem para
alguém que ele não deve ter receio de ingerir alimentos cultivados com
agrotóxicos – quando sabemos que a verdade é que há um conjunto de pesquisas
científicas sérias que provam o contrário -, a tendência é que essa pessoa
confie na orientação recebida, já que veio da parte de quem ela considera que
tem autoridade para falar sobre o assunto.
Sabemos que faz toda a
diferença quando alguém vestindo um jaleco em um consultório recomenda que a
gente faça ou não faça algo, não é? Supostamente, ele ou ela estudaram
exatamente para nos informarem do que é correto fazer. Só que, nas publicações que a Bayer produziu para evangelizar estudantes e profissionais de nutrição, o
termo agrotóxico, que é o correto de acordo com a legislação nacional, virou
“protetor de cultivos”; assim como seus níveis de permissão de uso no Brasil,
muitas vezes milhares de vezes maiores do que na Europa e totalmente
incompatíveis com a manutenção da saúde, foram enquadrados como seguros, já que
todas as substâncias autorizadas no país teriam passado por uma rígida
avaliação, de acordo com o conteúdo veiculado.
O resultado é que a
doutrina da Revolução Verde, que diz que somente com a adoção de imensas
monoculturas envenenadas e mecanizadas podemos nutrir o mundo e garantir a
segurança alimentar, vai seguir reinando na cabeça de muita gente. Da
colonização da mente ao cotidiano no prato, alimentos com agrotóxicos seguirão
sendo consumidos como se não fossem responsáveis por inúmeras doenças e por
desequilíbrios ambientais dramáticos. Ponto para o lobby do Agro.
·
Que os vetos não caiam
Mais de 2500 novos
agrotóxicos foram aprovados nos últimos 5 anos no Brasil. Isso representa cerca de metade do total das
substâncias permitidas no país. Um salto gigantesco em relação ao que foi
aprovado nos governos Lula e Dilma 1 e 2. O ponto em que se iniciou essa
aceleração pode ser facilmente localizado: o golpe de 2016. Uma das primeiras
ações realizadas por Michel Temer, ao sentar na cadeira de presidente do país,
foi autorizar a pulverização aérea nas cidades com o objetivo de combater os
mosquitos transmissores de doenças como a dengue. E, em sua gestão, assistimos,
pela primeira vez, à aprovação de mais de 400 novos agrotóxicos em um ano.
Durante os quatro anos
do governo Bolsonaro, a situação só piorou. Mais de 500 novos venenos liberados
anualmente, acompanhados de um boicote sistemático às políticas que favorecem a
Agricultura Familiar e a Agroecologia. Era a consolidação do que podemos chamar
de Agrofascismo, o reinado absoluto da bancada do trator, responsável pela
proposição de medidas agressivas contra a natureza e os povos tradicionais que
a protegem.
Nesse cenário de
terror, o Brasil se tornou um pária mundial, sendo eleito como o país que pior
lidou com a pandemia, ao deixar que ela vitimasse mais de 700 mil pessoas,
quando teria todas as condições de impedir boa parte dessas mortes. Como se não
bastasse matar a população com a negligência frente ao combate do vírus, o
governo da época se empenhou para que o chamado Pacote do Veneno tramitasse
na Câmara dos Deputados, onde foi aprovado e encaminhado à apreciação dos
senadores. No apagar das luzes do último ano da gestão Bolsonaro, o Senado
ameaçou aprovar o Projeto de Lei e detonar de vez nossa legislação reguladora
de agrotóxicos, mas o governo de transição, já que Lula havia sido eleito e se
preparava para tomar posse, entrou em cena e fez um acordo para adiar a votação
naquele momento.
Foi assim que tivemos
o desgosto de ver, alguns meses depois, sua aprovação em
pleno governo progressista, após uma jornada de tantas décadas pelo parlamento.
Fazia parte do que foi combinado e, nesse meio tempo, os partidos da base do
governo conseguiram modificar um pouco o PL, reduzindo modestamente sua
capacidade de causar danos à sociedade. E a bola foi passada para o poder
executivo, a quem cabe vetar ou sancionar o que vem do Congresso. Era hora da
rede de ativistas socioambientais pressionar o governo e o que não faltou foram
gritos de “Veta, Lula!” nas redes sociais e nos espaços de participação cidadã,
incluindo a divulgação de um manifesto assinado
por um conjunto expressivo de organizações.
No último dia de
prazo, dia 27 de dezembro de 2023, o governo federal decidiu por vetar 14
trechos da monstruosidade, sendo o mais importante o que diz respeito ao papel
da Anvisa e do IBAMA na decisão de aprovar ou não um novo agrotóxico, já que,
pelo PL aprovado, ambos seriam apenas consultivos e o poder se concentraria
mesmo no MAPA, historicamente dominado por representantes do Agronegócio. Fim
do ano, férias, recesso parlamentar, Carnaval e cá estamos nós. Com a volta dos
trabalhos no Congresso, cabe aos deputados e senadores manter ou derrubar os
vetos e à militância anti-veneno lutar contra a derrubada.
A Campanha Permanente
Contra os Agrotóxicos e Pela Vida reivindica a retomada do Programa Nacional de
Redução de Agrotóxicos (PRONARA), que depende do poder executivo e segue mobilizando a
sociedade para pressionar os membros da Câmara Federal e do Senado e evitar que
o estrago seja maior do que já foi, o que acontecerá caso os vetos caiam. Mais
uma vez, somos nós, com nossa coragem e esperança, na luta contra a bancada do
trator, sustentada pelo conglomerado financeiro da cadeia veneneira com seu
poder imensurável de comprar corações e mentes, seja via lobby direto ou
disfarçado de contribuição à educação de nossas crianças, nossos jovens e
nossos profissionais, dos campos às mesas, de norte a sul, de leste a oeste.
·
A Justiça não é surda
Se o trator do veneno
ganhar nas esferas legislativa e executiva essa queda de braços – tão desigual
do ponto de vista econômico -, resta a nós recorrer ao poder judiciário para
tentar que a corte declare que a lei é inconstitucional e ela não entre em vigor.
Sabemos que a Justiça está longe de ser surda em relação ao canto da sereia
entoado pelos poderosos e que ela já cedeu ao lobby corporativo várias vezes.
É preciso que nossas
vozes cantem mais alto do que cantam os donos da grana. Temos que ampliar e
afinar nosso coro, unindo nele todas as pessoas que acreditam que é possível
viver em um mundo que não seja intoxicado por substâncias cada vez mais letais;
que ainda sentem pulsar dentro de si a força das terras, das águas, das
florestas e dos seres vivos que formam a teia vibrante que faz da VIDA algo tão
maravilhoso; que ainda não tiveram sua sensibilidade entorpecida pela sedução
do consumo imediatista e insaciável e não se tornaram definitivamente parte do
que o Xamã David Kopenawa definiu como o povo da mercadoria; que sonham em
encontrar, como propõe Mestre Nêgo Bispo, um caminho de envolvimento, ao invés
de um caminho de desenvolvimento ambiental.
Se a Justiça não é
surda, cantemos juntos, juntas e juntes, nossa canção de amor e de luta. Que
nossas encantadas e nossos encantados, tremulando aos quatro ventos, abençoem e
amplifiquem o nosso canto, sacralizando nossa jornada.
Fonte: Por Susana
Prizendt, da Mídia Ninja / MST
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