Celso Amorim: pressão pró-Israel contra
Lula vem “mais da mídia brasileira” do que de qualquer outro lugar
O assessor especial da
Presidência da República para assuntos internacionais, Celso Amorim, com 81
anos, compartilha sua visão um tanto pessimista sobre as possibilidades de
diálogo com o governo de Israel, a menos que, segundo ele, Tel Aviv pare com a
‘matança’ na Faixa de Gaza.
“Na situação atual não
há como negociar”, ele diz. Enquanto conselheiro do presidente Lula, o
diplomata também rotula a ofensiva israelense em Gaza como genocídio e critica
“uma estranha aliança” entre Israel e a extrema direita brasileira.
Em resposta à
exigência de que Lula se desculpe com Israel por comparar as ações em Gaza aos
métodos de Hitler, Amorim é direto. “Vai ficar pedindo. Se é que ele está
insistindo mesmo. Não sei se ele [Binyamin Netanyahu] faz isso por demagogia
interna ou por qualquer outra razão, mas certamente se ele está esperando isso
não vai receber. Não posso falar pelo presidente, mas eu não vejo nada, não
vejo razão para o presidente se desculpar”.
>>>> Abaixo,
alguns trechos da entrevista:
·
Passada uma semana desde a declaração do
presidente Lula, o senhor acredita na possibilidade de reaproximação com o
governo de Israel?
Nunca estivemos
afastados do povo judeu, nem sequer do Estado de Israel, cuja existência nós
defendemos. O problema é que esse governo, além do que ele está fazendo em
Gaza, comportou-se de uma maneira diplomaticamente inadmissível.
Nunca vi nem na Guerra
Fria o Khrushchev [União Soviética] dizer que o Kennedy [Estados Unidos] era
uma persona non grata ou vice-versa. A maneira como o nosso embaixador foi
tratado também foi lamentável. Fizeram um espetáculo público.
·
O sr. acha que foi uma armadilha?
Foi uma armadilha
porque eles fizeram um circo. Então são duas coisas. Uma é a relação mais
profunda Brasil-Israel que é uma relação boa. O presidente Lula foi o primeiro
presidente brasileiro a visitar Israel. Como é que podem dizer que ele negou o
Holocausto? É um absurdo, é mentira.
Agora, a condição mais
importante [para reaproximação com Israel] é parar a matança. Muito difícil
negar que é genocídio. Atiraram bomba para matarem cem, porque talvez tenha uma
pessoa do Hamas. Não sou eu que estou dizendo isso. Há uma medida cautelar da
Corte Internacional de Justiça.
·
Não tem possibilidade de diálogo com o
governo Netanyahu?
Eu acho praticamente
impossível. Pode ser que mude de atitude; eu sou um pouco pessimista.
Obviamente esse governo não quer que exista a Palestina, nem em Gaza nem na
Cisjordânia. Uma das declarações citada pela África do Sul, mas repetida pela
Corte, é de que não há inocentes. Se não há inocentes, é preciso eliminar todo
mundo. Diferenciar isso de genocídio é muito difícil.
Claro que nada é
comparável diretamente ao Holocausto pelo número, pela quantidade, por uma
série de coisas, mas ninguém também tem um monopólio do sofrimento.
·
O sr. diz que numericamente não dá para
comparar a ofensiva a Gaza ao Holocausto. Mas o presidente o fez.
Mas a essência é
igual. Não vejo diferença. Claro que você vai analisar cada caso. Todo mundo
não disse que Ruanda é um genocídio? Ouvi isso do próprio secretário de Estado
americano. Uma coisa que claramente se dirige contra todo um povo, toda uma
população, não vejo outra maneira de definir.
·
O próprio líder do governo no senado,
Jaques Wagner, falou que o presidente pode ter passado do ponto nessa
declaração.
Discordo do meu
querido amigo Jaques Wagner. Acho que não passou do ponto. A declaração do
presidente ajudou a sacudir a opinião pública mundial. Fala-se muito de guerra
do Israel com Hamas. Não é; é guerra de Israel com a Palestina. Só que antes
era uma guerra em câmera lenta.
E, de repente, por
causa do atentado terrorista, que nós condenamos obviamente —porque [houve]
morte de civis, adolescentes, uma coisa bárbara, ninguém vai passar o pano em
torno disso— tomou uma proporção maior.
·
O Netanyahu ainda insiste em um pedido de
desculpas.
Vai ficar pedindo. Se
é que ele está insistindo mesmo. Não sei se ele faz isso por demagogia interna
ou por qualquer outra razão, mas certamente se ele está esperando isso não vai
receber. Não posso falar pelo presidente, mas eu não vejo nada, não vejo razão
para o presidente se desculpar.
Tenho certeza que essa
pressão é mais da mídia brasileira do que de qualquer outro lugar. Ele não
recebeu nenhuma pressão. Por exemplo, Antony Blinken [secretário de Estado
americano] nem de longe sugeriu a ideia de pedido de desculpas. Ele fez uma
referência ao Holocausto de maneira muito sutil. Ficamos com a opinião da Corte
Internacional. É um genocídio. Não sei qual vai ser a decisão definitiva da
corte, mas o que existe hoje é o seguinte: há uma plausibilidade na acusação de
genocídio.
·
O sr. diz que só vai melhorar a relação se
parar a matança. O sr. acredita nisso?
A pressão
internacional vai aumentar. Nas resoluções da ONU, por exemplo, países aliados
dos Estados Unidos todos têm votado a favor do cessar-fogo. Sabe aquela
história que você está numa estrada, na contramão e começa a ver os carros. São
milhares de pessoas na contramão e só você está na mão certa?
·
Quando o presidente se manifesta de uma
maneira tão enfática ele não acaba sendo descredenciado como um negociador?
Há momentos em que
você deve negociar e há momentos em que você deve denunciar. Na situação atual
não há como negociar. Tem que parar a matança. E aí sim, pode negociar.
Como nós negociamos
várias vezes. O próprio Netanyahu; não gosto do que ele falou com relação ao
Brasil e que ele tenha a ação que ele tem. Mas ele mudou. Quando o Lula esteve
lá, por exemplo, ele pediu que ajudássemos numa retomada de negociação com a Síria.
Parecia querer negociar. Hoje em dia não quer. Acho que ele está jogando com o
eleitorado interno.
Não vamos agir contra
Israel. Não tem nada disso. Mas também não podemos apagar uma aliança estranha
que existe entre o governo de Israel e a extrema direita brasileira.
·
Há muitas evidências do governo de Israel
com a direita brasileira?
O embaixador de Israel
teve uma conversa lá com o pessoal ligado ao [ex-presidente] Jair Bolsonaro.
Não é com a direita moderada. Obviamente vamos esperar acabar o julgamento.
Coloco essa ressalva sempre. Mas estão acusados de golpe. Não é qualquer direita.
·
Parece que na sua opinião, então, Israel
poderia fazer um pedido de desculpas ao Brasil por tentar intervir na política
interna.
Não estou preocupado
que eles peçam desculpas. Acho melhor que eles parem de intervir. O importante
é ter clareza que nós não temos nada por que nos desculpar. Quem tem que se
desculpar é o Estado de Israel, perante a humanidade, perante o mundo, pelas
barbaridades que acontecem. Não é pelo Brasil, nem pelo governo brasileiro.
·
Há uma crítica de que Lula não tenha sido
igualmente duro com o governo de Vladimir Putin em relação à Guerra da Ucrânia.
Desculpe, mas não tem
comparação. Você pode condenar. E nós condenamos. O uso da força, a quebra da
integridade territorial da Ucrânia pela força, sem diálogo. Somos contra. Agora
não se pode dizer que seja um genocídio como está sendo praticado [em Gaza].
Fui recentemente a uma
reunião sobre Ucrânia, convidado pelos ucranianos. Citaram como uma coisa
absurda —eu concordo que seja um absurdo— 500 crianças ucranianas que morreram.
Eu fico espantado que as 10 mil crianças da Palestina não mereçam uma reunião
do tamanho. Não dá para comparar. Toda guerra é condenável.
Ø
Lula, o PT e a Palestina: a história de uma
aproximação e suas controvérsias
Uma crise recente nas
relações entre Brasil e Israel foi causada por uma fala de Lula durante
entrevista na Etiópia, após a Cúpula da União Africana. Lula chamou a atenção
para o que está acontecendo na Faixa de Gaza, comparando a situação às práticas
de perseguição de judeus por parte da Alemanha nazista.
Ao equiparar as ações
de Israel em Gaza às práticas do regime nazista, Lula, que passou a receber
diversos ataques da oposição e mesmo de parte da mídia, teve seu posicionamento
acolhido por seu círculo mais próximo. Gleisi Hoffmann, presidente nacional do
Partido dos Trabalhadores (PT), saiu em defesa de Lula, criticando a
truculência de Benjamin Netanyahu e a reação de Israel às palavras do
presidente brasileiro. Hoffmann e a liderança do PT afirmaram que Lula não deve
recuar em suas declarações quanto à equiparação das mortes em Gaza ao
Holocausto. Ao longo dos anos, vale lembrar, o PT procurou estabelecer relações
próximas com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), no sentido da
formação de uma aliança política que pudesse fazer caminhar as reivindicações
dos palestinos no Oriente Médio. O entorno de Lula, portanto, constitui-se de
pessoas e de forças sociais que advogam em prol da causa palestina. Lula e a
diplomacia brasileira, ademais, há anos defendem uma solução de dois Estados na
região, um judeu e um árabe, de modo a que ambos possam conviver em paz nessa
que é uma das áreas geopoliticamente mais conturbadas do planeta.
Voltando ao contexto
nacional, outra força política próxima do PT, o MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra) enviou mais de 13 toneladas de alimentos para
Gaza somente no final do ano passado, como forma de ajuda humanitária aos
palestinos. Em novembro de 2023, por sua vez, diversas entidades da esquerda
brasileira lançaram um manifesto pelo fim do que consideravam um
"genocídio em Gaza". Não obstante, manifestações pró-Palestina
começaram a ocorrer em diversas partes do Brasil. Do outro lado do espectro
político brasileiro, influenciadores de direita e apoiadores incondicionais de
Israel começaram a tachar os manifestantes como "simpatizantes do
terrorismo", dada a presença de algumas pessoas vestidas com camisas do
Hamas, por exemplo. Todo esse contexto serviu apenas para acirrar os ânimos em
torno dos acontecimentos em Gaza, outra das muitas questões políticas a causar
polarização em praticamente todo o Ocidente. Seja como for, desde outubro o
número de vítimas resultante da retaliação israelense já soma mais de 30 mil
palestinos, o que causou demasiada comoção internacional.
Durante os primeiros
dias do conflito, Lula condenou os ataques do Hamas a Israel e, na sequência,
direcionou suas críticas às operações do Exército de Netanyahu em Gaza.
Contudo, até recentemente, Lula ainda não tinha feito um discurso que
provocasse tamanho alarido nas autoridades israelenses, nem tamanho
desconforto, como foi o caso de sua fala realizada no dia 18 de fevereiro em
Adis Abeba. Entretanto, tudo o que vem acontecendo em Gaza durante os últimos
meses é sim motivo de grande preocupação não só para Lula, como para a
comunidade internacional. Há anos os palestinos lutam para (re)conquistar o
direito à obtenção de um Estado nacional, e hoje essa possiblidade parece ficar
a cada dia mais e mais distante. Lula, ao proferir severos julgamentos contra
Israel, não deixou de evidenciar suas preocupações com a questão palestina e
com as perdas humanas em Gaza, muito embora suas declarações referentes ao
Holocausto tenham sim causado uma ressonância negativa para a diplomacia
brasileira.
No mais, acusações de
que funcionários de agências da Organização das Nações Unidas (ONU) em Gaza
tivessem ajudado o Hamas na deflagração dos ataques de 7 de outubro carecem de
melhor investigação, de acordo com o mandatário brasileiro. Diversos países do
Ocidente coletivo — apoiadores incondicionais de Israel — decidiram, no
entanto, cancelar o financiamento a essas agências, mais uma vez evidenciando
as linhas divisórias que hoje separam o Ocidente do chamado Sul Global. Falando
em Sul Global, o Brasil se manifestou em apoio a um processo iniciado pela
África do Sul junto à Corte Internacional de Justiça que visa julgar as ações
de Israel em Gaza, no sentido de enquadrá-las como práticas de genocídio. Em
meio a tudo isso, Lula e a liderança do PT vêm participando de uma verdadeira
troca de farpas com autoridades de Israel, em uma crise diplomática que parece
escalar a cada dia. No Congresso Nacional, desde que voltou ao Brasil de sua
viagem pela África, Lula também precisou lidar com um pedido de impeachment
levantado pela oposição, a interpretar que as palavras do mandatário brasileiro
na Etiópia atravessaram a "linha vermelha".
Seja como for, seria o
caso de dizer que a política internacional do Brasil sofreu um processo de
partidarização em função da liderança de Lula no governo? A resposta pode estar
na verdade na década de 1990. Afinal, desde o período de Fernando Henrique Cardoso
(1995–2002) à frente da Presidência que a diplomacia brasileira tem sofrido
maior influência por parte do chefe de Estado. Com isso, cresceram os efeitos e
os impactos que o presidente do Brasil exerce sobre as relações exteriores do
país. Não à toa, passaram então a ganhar mais importância os discursos e os
posicionamentos das lideranças políticas à frente do Estado (seja Fernando
Henrique, Lula, Dilma ou Bolsonaro), bem como suas visões de mundo e do papel
do Brasil nas relações internacionais. O meio político do qual Lula se origina,
assim como o próprio Partido do Trabalhadores e qualquer outro partido,
certamente possui percepções próprias sobre os interesses nacionais e sobre
como o Brasil deve ser conduzido e se posicionar a respeito desse ou daquele
assunto.
Lula, em particular,
fez sua carreira política em torno de discursos que enfatizavam as contradições
existentes entre os poderes econômicos estabelecidos e os segmentos
desprivilegiados da sociedade, em especial os trabalhadores. Para Lula, ao
estender esse mesmo raciocínio para o âmbito dos conflitos internacionais, fica
claro que o segmento menos favorecido hoje no Oriente Médio são justamente os
palestinos quem está em flagrante desvantagem. É natural que as crenças e as
formas de interpretar o mundo motivem chefes de Estado a posicionar-se contra
ou a favor de determinadas lutas políticas. O que não é natural é esperar que o
conflito em Gaza seja avaliado exclusivamente de modo frio e emocionalmente
distanciado. Até hoje, nenhum ser humano, nenhum partido político, nem nenhum
líder mundial foi capaz de dar esse passo.
Fonte: O Cafezinho/Sputnik
Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário