Brasil-China: por uma nova parceria
Em setembro de 2023, o
Conselho de Estado da China publicou sua proposta para uma Comunidade Global de
Futuro Compartilhado. O novo conceito sistematiza três pronunciamentos feitos
por Xi Jinping em palcos internacionais a partir de 2013. O texto o apresenta
de forma discreta. Mas a ideia tem, quando decifrada, enorme capacidade de
transformar o cenário geopolítico atual, marcado pela hegemonia norte-americana
e suas crises.
Pequim questiona as
bases políticas e éticas da ordem internacional eurocêntrica, que domina o
mundo há cinco séculos. Relações tidas hoje como naturais – a aspiração à
condição de hegemon; a pressão dos países ricos sobre os pobres, para obter
vantagens; a competição como mola propulsora principal do progresso, entre
outras – são consideradas anacrônicas. Propõe-se, em contrapartida, as noções
de que a Terra é a “casa comum”, cujo cuidado precisa prevalecer sobre os
lucros e o exercício do poder; de que as riquezas devem ser partilhadas, pois a
prosperidade não é aceitável se for excludente; de que um sistema internacional
só será democrático se for menos hierárquico; de que as parcerias entre os
países podem ser mutuamente favoráveis, em vez de leoninas.
Os próximos parágrafos
destinam-se a um exercício de imaginação política. Brasil e China podem
estabelecer, a partir do Sul Global, uma parceria extremamente inovadora, caso
levem em conta os princípios apontados em 2023 pela liderança chinesa. Esta
cooperação seria uma alternativa às relações típicas do capitalismo
extrativista, que condena os países da periferia ao papel de eternos
exportadores de produtos primários. Ela daria ao Brasil bases para reverter o
ciclo de desindustrialização e reprimarização iniciado com a crise da dívida
dos anos 1980. E ofereceria à China condições mais favoráveis para enfrentar o
cerco econômico, geopolítico e militar que os Estados Unidos procuram lhe
impor, por temerem perder seu poder dominante. Eis algumas das dimensões que
ela poderia assumir.
·
1. Neoindustrialização do Brasil e espaço
seguro para empresas chinesas:
A China tornou-se, há
anos, a fábrica do mundo. Estima-se que seja, sozinha, responsável por 30% da
produção industrial do planeta. Mas seu crescimento tem sido ameaçado pela
imposição de barreiras tarifárias, pela tentativa dos EUA de negar-lhe acesso aos
chips de última geração e pelos processos de reshoring e friendshoring, por
meio dos quais o Ocidente busca relocalizar indústrias estratégicas em
territórios que vê como “seguros”. O Brasil precisa, ao contrário, superar a
desindustrialização mais dramática da história, ocorrida nas últimas quatro
décadas. O país, que reunia até os anos 1980 a indústria mais avançada e
diversa entre os países do Sul, é agora apenas o 16º produtor industrial do
planeta, com mero 1,2% do valor gerado.
O tema voltou à pauta
no governo Lula, com o lançamento do programa Nova Indústria Brasil. Mas os
recursos financeiros disponíveis ainda são muito limitados. Uma parceria
industrial estratégica com a China daria impulso novo ao projeto. Ela pode
assumir múltiplas formas: transferência de tecnologia, facilidade para
implantação de indústrias chinesas, sociedades entre empresas dos dois países.
O Brasil poderia, inclusive, apropriar-se da vasta experiência acumulada pela
China nas relações com o capital externo – cuja presença esteve sempre
condicionada a cumprir objetivos econômicos, sociais e ambientais fixados pelo
Estado.
·
2. SUS, Tecnologias da Saúde e Inteligência
Artificial:
O Brasil construiu,
com base em lutas sociais e em produção intelectual de décadas, o maior sistema
público de Saúde do mundo. O Sistema Único de Saúde (SUS) é um oásis de
igualdade e respeito à dignidade humana, num país ultra-hierárquico e às vezes
brutal. Porém, anos de subfinanciamento tornaram-no distante de sua concepção original
e desatualizado – em especial em relação às tecnologias da informação e à
inteligência artificial.
A China não tem um
SUS. Mas é extremamente eficaz e inovadora em tecnologias ligadas à Saúde.
Também empregou intensamente a Inteligência Artificial (IA) no esforço
vitorioso de superação da pobreza extrema. A possível parceria salta aos olhos.
O acesso às tecnologias chinesas contribuiria para revolucionar o SUS. E
examinar a experiência do sistema brasileiro – inclusive sua capacidade de
gerar postos de trabalho para as novas gerações –, em intercâmbio com
sanitaristas brasileiros, poderia ser muito inspirador para a China.
·
3. Biocivilização solidária na Amazônia:
No território
brasileiro está 60% da Amazônia, o bioma de maior biodiversidade do planeta. Há
cerca de dez anos, o economista Ignacy Sachs viu a região como um possível
laboratório de “biocivilização solidária nos trópicos”. A chave seria
substituir as relações predatórias de hoje por atividades econômicas ligadas à
manutenção da floresta em pé: produção de fármacos e cosméticos baseados no
patrimônio genético e nos saberes indígenas, turismo ecológico, aquicultura,
extrativismo sustentável e muitas outras.
Uma parceria entre os
dois países pode criar, pela primeira vez, as condições para a realização deste
projeto. O Brasil ofereceria à China acesso à região. Ele estaria ligado à
construção de novas relações humanas e com a natureza: desmatamento zero, consentimento
informado e participação ativa dos povos originários, condições de trabalho
dignas, políticas públicas de excelência, infraestrutura ligada à preservação
do bioma.
·
4. Transição energética:
A China é líder
mundial em geração e tecnologias de energia limpa. O território brasileiro tem
imenso potencial hídrico, solar e eólico – mas ele está subaproveitado ou, em
muitos casos, capturado por interesses privados. Por isso, o preço da energia é
extorsivo (o segundo mais alto do mundo) e sua produção está frequentemente
associada a pressões sobre comunidades camponesas.
Uma parceria com a
China pode mudar este cenário. Ela envolveria a Petrobras e uma Eletrobrás
reestatizada. Tecnologias avançadas, já existentes, permitiriam instalar
painéis solares móveis sobre os lagos das hidrelétricas e turbinas eólicas em
alto mar. Nas cidades, um programa de autogeração por placas solarse instaladas
sobre os tetos de casas e prédios poderia gerar milhões de ocupações dignas. O
Brasil, abundante em petróleo, pode pagar pela tecnologia assegurando à China
fornecimento estável do combustível, do qual a humanidade ainda necessitará por
algumas décadas. Será uma maneira muito efetiva de usar os combustíveis fósseis
para a transição rumo a energias sem carbono.
5. Na internet, a
superação das Big Techs:
O descaso pela
soberania digital tornou o Brasil particularmente submisso às Big Techs e à
vigilância dos Estados Unidos. As corporações norte-americanas controlam e
impõem seus algorítimos e suas lógicas à navegação dos brasileiros na internet.
Com um agravante: estão em poder destas empresas também os dados dos cidadãos
brasileiros, do Poder Executivo, da Justiça, das Universidades e muitos outros.
A China tem
corporações de internet tão desenvolvidas quanto as estadunidenses. O TikTok
tornou-se a rede social que mais cresce no mundo. O Alipay faz tantas
transações comerciais quanto a Amazon e a eBay juntas. O Wechat (da Tencent) e
o Baidu oferecem alternativas reais ao Whatsapp e ao Google. No entanto, exceto
o TikTok, nenhum deles tem a abrangência global de seus congêneres dos EUA.
Numa possível
parceria, as empresas chinesas forneceriam tecnologia para uma infraestrutura
de armazenamento de dados e de redes controlada pelo país e localizada em nosso
território. Talvez pudessem cooperar com a criação de plataformas próprias. Em
contrapartida, romperiam uma barreira que as limita ao terem, pela primeira
vez, acesso ao público de um país ocidental relevante e populoso.
* * *
Ideias como estas
podem transformar as relações entre China e Brasil. O comércio bilateral
multiplicou-se nos últimos anos e se aproximou de 150 bilhões de dólares em
2023. A China, sozinha, tornou-se o destino de mais de 40% das exportações
brasileiras. Mas quase 100% da pauta exportadora brasileira estão concentrados
em bens primários (soja e minério de ferro, sozinhos, compõem 56% das vendas).
A extração destes produtos – dado o ordenamento colonial da sociedade
brasileira – concentra riquezas, agrava a regressão econômica do país, elimina
ou precariza trabalho e devasta o ambiente.
Às alternativas acima,
poderiam ser acrescentadas inúmeros outros: por exemplo, na cooperação
científica, finanças, moedas internacionais (para superar a ditadura do dólar),
relações geopolíticas, forças armadas. As oportunidades para parcerias entre
Brasil e China são incontáveis – desde que a relação passe a ser presidida não
pelo interesse de lucro, mas pela vontade de construir, de forma consciente um
“futuro compartilhado”. Possível primeiro passo: o governo brasileiro deveria
aceitar o convite generoso feito pela China, e somar-se à Iniciativa do
Cinturão e da Rota.
Transformar as
relações internacionais está entre os desafios políticos mais árduos e
complexos. A fase mais recente da globalização criou uma esfera mundial de
poder para a qual não há, no momento, governança democrática. O novo conceito
proposto por Pequim é um primeiro passo, pois introduz a hipótese de parcerias
constituídas não a partir das lógicas mercantis, mas da reflexão sobre as
necessidades reais e desejos das sociedades fazem para seu futuro. A jornada
será longa. Mas como dizia Gautama, o Buda, “toda longa caminhada começa com um
primeiro passo”.
Fonte: Por Antonio
Martins, em Outras Palavras
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