terça-feira, 27 de fevereiro de 2024


 

Ana Fuentes: Gaza. O melhor cenário já é atroz

Mesmo que os ataques israelenses contra Gaza cessem agora, nos próximos meses morrerão pelo menos outros 6.500 palestinos devido à crise sanitária em que a Faixa está mergulhada. É um número assustador, que se soma aos 30.000 mortos em quatro meses e meio. O pior é que essa é a projeção mais otimista feita por pesquisadores independentes da London School of Hygiene and Tropical Medicine e da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos. Até maio, os especialistas atualizarão seus dados para três cenários possíveis: o primeiro, um cessar-fogo permanente e sem epidemias; o segundo, as coisas continuarem como estavam até janeiro passado. E o terceiro, que o conflito se agrave.

É difícil pensar que as vidas dos palestinos em Gaza possam piorar. Mas irão piorar se, como Netanyahu vem anunciando há semanas, o exército israelense atacar Rafah. Na última cidade do sul da Faixa, na fronteira com o Egito, mais de um milhão de deslocados estão superlotados. Vivendo, conforme relatam eles mesmos, como animais: em barracas ou barracos, sem água potável, remédios ou banheiros, com muitos amputados temendo que suas feridas se infectem porque há lixo por toda parte. Não há mais colheitas: os tratores israelenses as destruíram. E tudo isso sabemos graças a breves ligações que os habitantes de Gaza fazem para seus contatos no exterior, aos trabalhadores humanitários e aos repórteres locais que continuam arriscando suas vidas, porque Israel ainda não permite a entrada de meios de comunicação internacionais, exceto em ocasiões muito raras e sob a supervisão de seu exército.

Estamos nos encaminhando para o panorama mais trágico, no qual 75.000 gazatitas morrerão antes do final do verão, segundo os pesquisadores. Mesmo assim, a urgência não se reflete na política. Na União Europeia, os 27 não conseguem concordar em exigir um cessar-fogo, nem mesmo pausas humanitárias, devido ao veto da Hungria. Nem mesmo a ordem do Tribunal Internacional de Justiça para que Israel envie ajuda humanitária para a Faixa e previna atos de genocídio foi útil: o Programa Mundial de Alimentos deixou de entregar comida lá depois que cidadãos desesperados saquearam seus caminhões. Eles sofrem, disse um médico da OMS, uma combinação explosiva de fome e doença da qual será impossível sair enquanto o cerco continuar.

 

Ø  Gaza: parar a “carnificina” e restaurar a força do direito internacional. Por José Geraldo de Souza Júnior

 

O governo do Brasil afirmou, em manifestação na Corte Internacional de Justiça, em Haia, na Holanda, nesta terça-feira (20), que a comunidade internacional não pode normalizar a ocupação de territórios na Palestina por Israel. No espaço das audiências públicas para ouvir a posição dos países-membros das Nações Unidas sobre os 56 anos de ocupação de Israel em territórios palestinos, que a CIJ realiza, a avaliação do Brasil busca interromper o curso de uma resposta unilateral de Israel que, descolada da via jurídica do direito internacional, acaba levando a uma ação não de força, mas de pura violência, "desproporcional e indiscriminada", que não expressa uma disposição de justiça e se cobre de finalidade geopolítica, neocolonial.

A intensidade da ação militar na região havia levado o presidente Lula a classificá-la como "genocídio", na esteira das preocupações lançadas pela CIJ, a ponto de comparar a ofensiva como equivalente àquela infringida aos judeus na Alemanha nazista

A manifestação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, feita durante a 37ª Cúpula da União Africana, não foi um arroubo. Só a vê assim aqueles que, por posicionamento ou tática política de mobilização de interesses e de alianças, estão de acordo com a prepotência da intervenção de força para concretizar hegemonias de qualquer matiz, estratégica, econômica ou ideológica. No local ou no global, acaba difundido uma narrativa que esconde a intencionalidade de suas razões, deslocando a objeção que deveria se dirigir ao argumento, para desqualificar o oponente.

Note-se que a manifestação não é a de uma voz isolada. O Vaticano, pela palavra do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, também falou de uma resposta "desproporcional" em comparação com o ataque do Hamas. É preciso "parar a carnificina". O direito à defesa, o direito de Israel de garantir a justiça para os responsáveis pelo massacre de outubro, não pode justificar essa carnificina.

A posição do presidente Lula, desde o início do conflito, mantém-se coerente e firme, na chamada à mediação pelo direito internacional, como pela possibilidade mediadora de um conjunto de países, com assento na Assembleia Geral, mas que não têm seus interesses estratégicos envolvidos na região e no conflito, ou em sua ideologia.

Em minha participação, juntamente com Cristovam Buarque — os dois únicos sul-americanos convidados e presentes no Colóquio Internacional de Argel - Encontro de Personalidades Independentes sobre o tema "Crise du Golfe: la Derive du Droit", instalado exatamente em 28 de fevereiro de 1991, dia do cessar-fogo na chamada Primeira Guerra do Golfo, o que procuramos foi indicar, a partir da premissa de convocação do Colóquio, que a crise coloca o direito à deriva, tendo perdido o seu rumo no trânsito ideológico entre a "historicidade constitutiva dos princípios que consignam a sua força e força mesma, representada como Direito porque formalizada como norma de Direito Internacional".

Já então, uma inquietação com o emprego hegemônico de razões de fato, para que, em qualquer caso, principalmente quando há nítida disparidade entre forças, inclusive militares, que se deixem arrastar por um pretenso "direito de violência ilimitada", cuja resultante "sugere a cessação da beligerância pelo aniquilamento inexorável de toda forma de vida". Minhas razões completas estão no texto "A crise do Golfo: a deriva do Direito" (in SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Sociologia jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002, p. 133-144).

O que urge é "restaurar a humanidade incondicional em Gaza". Essa é afirmação de um médico sem fronteiras. O que assistimos aqui, diz ele, em matéria que me enviou o querido amigo Alessandro Candeas, o incansável e presente diplomata brasileiro, embaixador do Brasil na Palestina: é um "bombardeamento indiscriminado [que] tem de acabar. O nível flagrante de punição coletiva que está atualmente a ser aplicado ao povo de Gaza tem de acabar". É preciso "parar a carnificina". Resgatar o humano que se perde nesse drama. E restaurar a mediação dos verdadeiramente fortes, que confiam e aplicam a força cogente (Hannah Arendt) do direito internacional e dos direitos humanos.

 

Ø  “Em Gaza não está em curso um genocídio, mas também não são crimes do Hamas”. Entrevista com Etgar Keret

 

Etgar Keret não escreve, olha e pensa. A Faixa de Gaza fica a menos de uma hora de carro de Tel Aviv, logo ali. Há mais de três meses, a realidade de uma guerra sem precedentes o emudece, como também a muitos outros autores israelenses, acostumados a contar a complexidade de uma terra hoje reduzida a preto e branco.

>>>> Eis a entrevista.

·        Israel responde à acusação de genocídio perante a Corte Internacional de Justiça, a pior para o povo do Holocausto. Como se sente?

O processo de Haia é a representação da falta de comunicação que afeta o mundo hoje, duas partes contrapostas que contam duas histórias diferentes para um público que assiste a dois filmes paralelos. De um lado, estão os fatos de 7 de outubro, quase neutros, seguidos pelos crimes de um único agressor, ou seja, Israel, que propositadamente, friamente, mata mulheres e crianças palestinas. Do outro lado, está a reação a um ataque que tudo deveria justificar, até mesmo a morte de 1% dos habitantes de Gaza, incluindo as vidas perdida de civis, incluindo o racionamento de comida. Uma narrativa para cada um dos contendores, sem diálogo ou possibilidade de justiça. É deprimente. Há coisas intoleráveis ​​no modo como Israel combate a guerra e há outras igualmente intoleráveis no comportamento do Hamas antes e depois de 7 de outubro, mas falar de genocídio é extremo. A realidade não é ficção. Em vez disso, é como se para a África do Sul os palestinos fossem Harry Potter diante de Israel-Voldemort e para os outros o exato contrário, sem que ninguém possa explicar ou mudar de ideias. É maluco.

·        A África do Sul associou-se à Turquia, e o ministro do Exterior israelense, Israel Katz, respondeu-lhe que estava pensando no genocídio dos armênios.

Esse é o ponto. Os turcos denunciam Israel como o mal absoluto e Israel faz o mesmo com eles. Um círculo vicioso. Israel, acusado de bombardear as maternidades, acusa o Hamas de esconder nessas mesmas maternidades as armas e o Hamas responde com a necessidade de se defender numa guerra assimétrica. A Corte de Haia deve pronunciar-se sobre crimes de guerra numa situação complexa em que não se podem separar os bons dos maus. As últimas notícias falam de negociações em curso sobre os remédios a serem enviados aos palestinos, que só então os forneceriam aos reféns: mas como é possível ficar se questionando sobre remedos? Seria legítimo levar para Haia a privação de ajudas humanitárias à população civil, mas falar de genocídio por parte de Israel num processo em que no banco dos réus não está o Hamas nem as milícias a favor do Irã é ridículo: não há atrocidades num único lado.

·        O processo de Haia será, como afirma Naftali Bennet, o caso Dreyfus do século XXI?

Estamos assistindo à arenga de duas propagandas emocionais que evocam simultaneamente o genocídio. Mas o genocídio é a tentativa de exterminar uma população inteira e creio que o massacre de 7 de outubro não o seja, embora naquele dia os homens do Hamas quisessem matar todos os israelenses no seu caminho. Assim como não é genocídio responder a uma agressão feroz bombardeando Gaza até evacuar toda a população. Dreyfus? A acusação contra Israel é construída artificialmente, esquecendo, por exemplo, que há também 200 mil deslocados dos kibutzim atacados, mas não concordo nem mesmo com a teoria da nossa pura inocência porque você não pode escapar das responsabilidades por uma guerra em que já morreram mais de 10 mil mulheres e crianças. Existe uma cota de antissemitismo na Europa e no mundo islâmico, mas Israel não é Dreyfus e também não é Eichmann.

·        Israel também é criticado pela arrogância dos militares que, em Gaza, zombam das casas palestinas destruídas. Como se sente, na qualidade de democrático, por aquele vídeo?

A primeira vítima da guerra é a empatia. O inimigo é definido por epítetos que o desumanizam, não se mata Roberto, mas ‘um maldito bastardo’. Aqueles vídeos são o fruto envenenado do que o ministro extremista Itamar Ben Gvir vem semeando há anos. Lutamos uma guerra emotiva no nível máximo porque muitos soldados perderam pessoas queridas em 7 de outubro e isso coloca para o exército e para a sociedade o árduo desafio de se defender sem ceder à vingança e sem ceder impunidade para seus soldados. Os responsáveis ​​por aquele vídeo deveriam ir para a prisão imediatamente, mas é complicado proceder se um ministro os incita a humilhar o inimigo e outro devaneia com uma bomba atômica sobre Gaza.

·        Pode-se denunciar o massacre de Gaza, com suas mais de 22 mil vítimas, sem ser tachado ​​de antissemitismo?

O 7 de outubro foi um massacre porque os assassinatos foram intencionais, o ataque a Gaza não: é uma tragédia inaceitável na caça aos terroristas, mas não é um massacre. Infelizmente todas as discussões agora são binárias. Até o fato de ser tachado de antissemitismo por criticar Israel, ainda que com argumentos infundados, comprova essa rigidez. O mundo está cheio de ódio, antissemita, anti-islâmico, homofóbico: emoções fortes que se contrapõem sem resolver os problemas.

·        Há algo que escapa em relação a Israel ao Ocidente, nas ruas por Gaza e não por isso necessariamente antissemita?

Nas guerras é fácil tomar partido, mas não entender. O Ocidente realmente entende o que está acontecendo na Ucrânia? Em Israel há quem denuncie as crianças sequestradas nos kibutzim em 7 de outubro e quem apenas reconheça aquelas mortas em Gaza. Contudo, não é possível entender sem se esforçar para ver as responsabilidades das duas partes. Responsabilidades duplas: é uma serpente que se devora.

·        Há semanas olha-se para a fronteira libanesa, mas em vez disso a guerra alastrou-se para o Mar Vermelho. E a tão temida escalada?

Quanto mais penso em 7 de outubro, mais não encontro o seu sentido para os palestinos, era óbvio que iriam pagar o preço mais alto, foi uma tragédia. O cenário foi revelado com os ataques aos Houthis que, dirigidos contra Israel, atingiram na realidade os comércios egípcios e sauditas, respondendo ao interesse iraniano em prejudicar os principais aliados estadunidenses na região. Dessa vez é uma verdadeira guerra por procuração, onde as decisões não são e não serão tomadas localmente.

 

Ø  Hamas igual ao nazismo? Assim se ofende a memória. or Gad Lerner

 

Há alguns dias Paolo Mieli, divulgador de história na TV e amante de comparações sugestivas, vem repetindo que a carnificina perpetrada pelo Hamas dentro do território israelense em 7 de outubro de 2023 encontraria seu "precedente novecentista" na Kristallnacht de 9 de novembro de 1938 na Alemanha, quando os nazistas invadiram casas, sinagogas e instituições judaicas.

E Mieli lastima que, com a aproximação do Dia da Memória (próximo sábado), grande parte da opinião pública não perceba a analogia e manifeste incompreensão quanto ao duradouro sofrimento dos judeus. A incongruência de tal comparação histórica deveria resultar evidente: em 1938 Hitler estava no poder há 5 anos e já havia promulgado as famigeradas leis raciais de Nuremberg.

A ação terrorista do Hamas, ao contrário, foi lançada a partir de fora. Lembrar isso não implica absolutamente subestimar o atroz salto qualitativo numa guerra agora quase centenária. A luta contra o antissemitismo não se beneficiará em nada com tais saídas propagandistas.

O fanatismo nacional-jihadista do Hamas é algo diferente, tem outras raízes, do que o nazi-fascismo europeu. Tachar o inimigo de nazismo, como Putin faz com os ucranianos e como Erdogan faz com Netanyahu, não só é uma arma cega, mas banaliza a memória do Holocausto que hoje corre o risco de ser destruída ao fazer as contas com a tragédia da guerra de Gaza. A memória histórica é preciosa precisamente porque é incômoda.

Se seguir esse caminho, Mieli acabará acusando de antissemitismo também o Alto representante da política externa da UE, Josep Borrell, que ontem denunciava: “Vítimas civis, quando é demais é demais. Qual é a solução de Israel? Expulsar as pessoas de Gaza? Matar todos?". Quem se preocupa com o futuro de Israel e com o destino dos judeus, deve evitar a escolha suicida de uma guerra prolongada em eterno contra o “inimigo absoluto”.

 

Fonte: El País/Correio Braziliense/La Stampa/Il Fatto Quotidiano


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