Como disputa sobre linguagem neutra virou
guerra cultural no Brasil
Quando anunciou no
Instagram no fim de junho que ainda estavam disponíveis "últimes
entrades" para um show, o cantor Djavan sofreu duras críticas.
Imaginando que o
músico havia alterado o final das palavras para neutralizar o gênero delas,
muitos o ridicularizaram nas redes sociais.
"Mais fácil
aprender japonês em braile", escreveu um comentarista, citando uma letra
célebre do cantor alagoano.
Alguns então esclareceram
que aquele show de Djavan seria em Barcelona - e que o post fora escrito na
língua local, o catalão. "Últimes entrades", em catalão, significa
"últimas entradas".
Era tarde demais.
Djavan já havia sido arrastado para uma das grandes batalhas culturais do
Brasil atual: a batalha em torno do que vem sendo descrito como "linguagem
neutra", ou "linguagem não binária".
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A língua como campo de
batalha
Há décadas, muitas
mulheres denunciam o que consideram um viés masculino na linguagem.
Esse movimento fez com
que hoje muitos evitem termos masculinos para se referir a grupos de pessoas de
gêneros distintos. Por exemplo: em vez de usar os termos "médicos" ou
"professores" para se referir a coletivos de pessoas, essas pessoas
optam pelas expressões "a classe médica" ou o "corpo
docente".
Mas a busca por uma
linguagem mais neutra só se tornou realmente controversa quando foi associada a
uma proposta de mudança mais radical - e que foi abraçada principalmente por
parte da esquerda.
A ideia era abrir
espaço na língua para pessoas que se declaram não binárias, pois não se
identificam como homens nem como mulheres, podendo também se identificar com as
duas categorias ao mesmo tempo.
Para isso, seria
preciso alterar o final das palavras pra neutralizar o gênero delas. Alguns
propuseram que essa metamorfose se desse pela substituição da letra “o” no
final das palavras pela letra “x”, e outros sugeriram o emprego da @.
Outros ainda
defenderam o uso da letra “e” - que é a fórmula que tem prevalecido. Foi assim
que surgiram termos como "todes" e "bem-vindes".
Mas nem todos acharam
as propostas bem-vindas.
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Projetos de lei contra
a linguagem neutra
O site da Câmara dos
Deputados lista 25 projetos de lei em tramitação que são contrários ao uso da
linguagem neutra em escolas e/ou concursos públicos.
Os primeiros projetos
surgiram em 2020. Desde então, o interesse dos deputados pelo tema vem
crescendo. Só nos seis primeiros meses de 2023 foram apresentados dez projetos
relacionados ao assunto.
A maioria das
propostas é de deputados aliados de Jair Bolsonaro.
“O conceito de
'linguagem neutra' é fruto da ideologia de gênero, a qual ensina que o sexo
biológico não é o suficiente para definir a sexualidade humana. Sendo que
meninos podem ser meninas e meninas podem ser meninos", diz a
justificativa de um projeto de lei contra a linguagem neutra da deputada
federal Dani Cunha, do União Brasil do Rio de Janeiro.
A deputada diz ainda
que, se a linguagem neutra for ensinada nas escolas, "estaria se dizendo
para os jovens que o gênero é uma abstração social e que esse jovem pode
escolher o que ele quer ser à mercê das próprias vontades".
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Sexo X gênero
Os argumentos para o
projeto de lei mostram como o debate sobre a linguagem neutra se relaciona com
outra batalha cultural em curso: o embate entre gênero e sexo como o que
determina oficialmente se alguém é um homem ou uma mulher.
A partir de 1960, com
o surgimento da segunda onda do feminismo, alguns grupos começam a questionar
as noções tradicionais de gênero e sexo.
Segundo os adeptos
dessas ideias, o gênero é uma construção social e deve ter primazia sobre a
biologia.
Para esse grupo,
gênero é algo relacionado a um senso pessoal de identidade: pode ter a ver com
as roupas que a pessoa gosta de vestir, com os trejeitos que usa para se
expressar ou outros códigos sociais que são normalmente associados a um gênero
ou outro.
É uma visão que gera
discussões acaloradas entre as próprias feministas e que se choca com a noção
histórica de que o gênero é determinado pelo sexo biológico e pela composição
dos cromossomos de cada um.
·
'Crises de identidade
cromossômica'
Numa audiência em 2021
que debateu outro projeto de lei contra a linguagem neutra em materiais
didáticos em escolas, proposto pela deputada Chris Tonietto (PL-RJ), o embate
entre gênero e sexo também foi evocado.
Presente na audiência,
o escritor Sidney Luiz Silveira da Costa disse que o projeto de lei em
discussão buscava impedir pessoas de "torcer a língua para fazê-la dizer o
que ela não diz naturalmente porque A, B ou C têm crises de identidade
cromossômica".
"Ninguém aqui
está defendendo a imposição de nada, e sim apenas que a natureza siga seu
curso, a natureza da língua", prosseguiu.
Sidney Silveira é um
dos mais ativos integrantes do movimento contrário à linguagem neutra. Nos últimos
dois anos, ele foi convidado a falar sobre o tema nas Câmaras Municipais de
Belo Horizonte e de Niterói, na Assembleia Legislativa do Rio e na Câmara dos
Deputados em Brasília.
Ele já foi descrito
como um “intelectual católico” por Olavo de Carvalho, um dos gurus da direita
brasileira.
E, assim como Olavo,
Silveira é monarquista, começou a carreira escrevendo para jornais e dá cursos
sobre filosofia mesmo sem ter formação acadêmica na área.
O escritor é formado
em Comunicação e trabalhou vários anos como jornalista, mas hoje se define em
sua página no Instagram como um “estudioso da escolástica”, uma corrente
filosófica da Idade Média.
Contatado pelo podcast
Brasil Partido com um pedido de entrevista, ele não respondeu até a veiculação
do episódio.
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Preservação da norma
culta
Outra pessoa engajada
no movimento contra a linguagem neutra é Tânia Manzur, professora de Relações
Internacionais da Universidade de Brasília. Ela também já participou de
audiências sobre o tema no Congresso.
Manzur explica ao
podcast Brasil Partido por que se envolveu com o assunto.
"Porque a língua
portuguesa é um patrimônio e eu vejo como uma necessidade de ser preservada das
modas."
Ela faz uma crítica
bastante citada por opositores da linguagem neutra: a de que ela criaria
dificuldades de comunicação para muitas pessoas.
"Se a gente parte
do pressuposto de que a linguagem neutra estaria incluindo as pessoas do grupo
LGBTQIA+, eles, pela contagem mais recente, perfariam algo em torno de 3% da
população brasileira. Mas o que essa linguagem neutra faria com os surdos que
fazem leitura labial? Excluiria, e os surdos correspondem a mais ou menos cinco
5% da população brasileira", afirma.
É frequente a queixa
de que a linguagem neutra prejudicaria não só surdos que fazem leitura labial,
mas também cegos que usam aplicativos de leitura e disléxicos, que são pessoas
com dificuldade pra ler.
O movimento
pró-linguagem neutra reconheceu a pertinência dessas críticas no caso de cegos
e disléxicos. Por isso, muitos ativistas hoje defendem que se use a letra “e”
pra neutralizar o gênero das palavras, e não a letra “x” nem a @, que podem
criar dificuldades na leitura.
No caso dos surdos, a
coisa é mais complexa.
Há nas redes sociais
vários surdos que expressam opiniões contrárias à linguagem neutra. Algumas
dessas pessoas argumentam que a linguagem neutra realmente criaria problemas
para os surdos oralizados - que são aqueles que leem lábios e fazem oralização
pra se comunicar.
Mas há divergências.
Leo Viturinno, que é surdo, gay e professor de Libras, a Língua Brasileira de
Sinais, diz ao podcast que surdos oralizados podem se adaptar perfeitamente à
linguagem neutra, e que opositores dessa causa podem estar usando os surdos em
seu ativismo.
Pra ele, esses
críticos deveriam expor suas opiniões sem mencionar pessoas com deficiência,
porque não falam em nome delas.
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Bom dia a 'todes'
Se hoje predominam no
Congresso propostas contrárias à linguagem neutra, em partes do Executivo e do
Judiciário parece existir uma abertura maior à causa.
No governo federal,
alguns ministérios têm usado o termo "todes" na abertura de discursos
e eventos oficiais.
"Boa tarde a
todas, todos e 'todes'", afirmou o ministro das Relações Institucionais,
Alexandre Padilha, na cerimônia em que assumiu o posto, em janeiro.
O termo
"todes" também já foi citado em eventos dos ministérios da Fazenda,
Igualdade Racial e Direitos Humanos, entre outros.
E, no Judiciário, uma
decisão recente do Supremo Tribunal Federal pôs um freio às iniciativas
legislativas contrárias à linguagem neutra.
Em fevereiro, a corte
considerou inconstitucional uma lei contra a linguagem neutra aprovada pela
Assembleia Legislativa de Rondônia. A lei proibia as escolas de citar a
linguagem neutra na grade curricular e em materiais didáticos.
Ou seja, não era
apenas uma questão de evitar que professores dissessem “bom dia a 'todes'”, mas
de impedir que o tema fosse mencionado aos alunos.
O relator da ação,
ministro Edson Fachin, decidiu que a lei era inconstitucional porque legislar
sobre normas gerais de ensino é uma atribuição da União, e não de Estados.
Fachin também disse
que proibir a linguagem neutra violaria a liberdade de expressão nas escolas e
atentaria contra o direito à igualdade sem discriminações.
O ministro também
disse que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade e a
expressão de gênero”, e que cabe ao Estado reconhecer a identidade de gênero
manifestada por cada pessoa.
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Divisões entre
linguistas
Engana-se quem pensa
que, entre os linguistas, há uma posição unânime sobre a linguagem neutra.
Se parte da categoria
rejeita a causa, há também quem simpatize com ela na academia.
Cecilia Farias, que
faz doutorado em Linguística na USP, pertence ao segundo grupo.
Pesquisadora sênior do
Museu da Língua Portuguesa, ela diz acreditar que o tema mobilize tantas
paixões por "mexer com as certezas das pessoas".
Ela se refere
principalmente a pessoas "que têm uma visão que separa o mundo por gênero,
e uma visão biológica de gênero muito forte também, que atribui o papel
masculino e o papel feminino como se fosse algo inerente àquela constituição
física, sem pensar no quanto isso é social, na verdade".
"Na hora que você
questiona essas certezas, essas estruturas que as pessoas tomam há séculos como
fundantes do mundo... Não custa nada falar um pronome tal, uma palavra com 'e'
no final. Não vai cair minha língua, mas desestabiliza uma visão de mundo",
opina.
Farias rejeita o
argumento de que a linguagem neutra seria uma ameaça ao idioma.
"Uma língua que
não muda é uma língua que já está morta. Qualquer língua que continuar sendo
falada, ela vai continuar mudando."
"Então, uma
defesa de preservação da língua, de manter o nosso legado, é balela. É uma
justificativa para não querer que o mundo mude, de certa forma."
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Qual a posição do MEC?
A BBC procurou o
Ministério da Educação para saber a posição da pasta sobre o ensino da
linguagem neutra e se existe algum levantamento que meça o quanto - e como - o
tema tem sido abordado em escolas brasileiras.
O diretor de Políticas
e Diretrizes da Educação Integral Básica do MEC, Alexsandro do Nascimento
Santos, afirmou ao podcast Brasil Partido que o ministério não tem nenhum
levantamento medindo o uso da linguagem neutra nas escolas.
Disse também que todas
as diretrizes sobre o ensino da língua portuguesa nas escolas brasileiras foram
estabelecidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que teve
suas últimas versões aprovadas em 2017 e 2018, no governo Michel Temer.
Segundo Santos, a BNCC
orienta que os currículos da educação básica precisam discutir com os
estudantes as diferentes formas de uso da língua.
"O fenômeno
social da linguagem neutra é mais um desses fenômenos que se manifestam nos
usos da língua", diz o diretor do MEC.
"Esses fenômenos
precisam ser estudados na escola como objetos de conhecimento de uma ciência,
que é a linguística (...) O que não significa dizer que haverá qualquer tipo de
orientação sobre se este ou aquele fenômeno linguístico é mais correto ou menos
correto", afirmou.
Embora considere que
os professores de português devam discutir a linguagem neutra com os alunos, o
diretor do MEC defende que o ensino da língua nas escolas priorize a norma
culta.
"Porque talvez,
para muitos estudantes, esse será o único lugar em que ele terá acesso a esse
registro de variação linguística", justificou.
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Movimento queer
Em vários países, o
ativismo pró-linguagem neutra tem sido encabeçado pelo movimento queer.
Queer é um termo que
abarca várias identidades sexuais e de gênero.
Por exemplo: um homem
que sente atração por homens e mulheres mas só desenvolve relacionamentos com
outros homens pode escolher se definir como queer por sentir que os termos gay
ou bissexual não se aplicam fielmente a ele. Mas há vários outros motivos que
podem levar alguém a se identificar como queer.
Muitos nesse movimento
acreditam que o gênero de alguém é construído no dia a dia pela maneira como
nos comportamos, vestimos, gesticulamos e, principalmente, pela linguagem que
nós usamos.
Por esse raciocínio,
quando chamamos uma pessoa de homem ou mulher, nós estaríamos ajudando a
torná-la um homem ou uma mulher.
Por isso que a
linguagem é um ponto tão importante pro movimento queer: o movimento defende
ajustes na língua para que pessoas que não se veem nem como homens nem como
mulheres não sejam forçadas a adotar uma dessas identidades.
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'Provocação do sistema
linguístico'
Esse é um tema que
mobiliza Pri Bertucci desde o início da década passada. Naquela época, Bertucci
- que é uma pessoa não binária e se define como pertencente ao "gênero
queer" - tentava adaptar para o português brasileiro propostas que o movimento
queer dos Estados Unidos vinha fazendo para a língua inglesa.
Bertucci então
elaborou com a psicóloga Andrea Zanella o que chamaram de “Manifesto pela
inclusão do gênero não binário na língua portuguesa”, publicado em 2015.
O manifesto tinha duas
propostas principais: a invenção do pronome "ile" para quem não se
sentisse representado pelos pronomes “ele” e “ela”, e a substituição da letra
“o” no final das palavras pela letra “e” como alternativa ao masculino genérico.
"Meu desejo era
provocar esse sistema linguístico e fazer uma marcação muito específica da
existência de pessoas não binárias", diz Bertucci ao podcast Brasil
Partido.
"O desafio é como
é que a gente tira as pessoas da zona de conforto sem perder os interlocutores
nessa conversa", afirma.
Mas a estratégia tem
funcionado? Um simples “todes” pode gerar uma enxurrada de críticas nas redes
sociais, e muita gente argumenta que a pauta não seria prioritária num país com
tantas mazelas sociais.
Além disso, políticos
populares na direita têm usado o tema para mobilizar seus apoiadores.
É o caso do deputado
federal mais votado última eleição para o Congresso - o bolsonarista Nikolas
Ferreira (PL-MG) -, autor de um dos vários projetos contra a linguagem neutra
apresentados em casas legislativas em anos recentes.
·
Contra 'leituras
binárias do mundo'
Será que o ativismo
pró-linguagem neutra não poderia estar fortalecendo o campo político contrário
à causa?
"Eu acho que não
fortalece", diz Pri Bertucci. "Isso é uma pauta da humanidade, não é
uma pauta da direita ou da esquerda."
Bertucci afirma que,
quando começou a tratar do tema, 12 anos atrás, "não tinha quase ninguém
querendo me ouvir".
"Esse nível de
crítica que a gente vê hoje, lá atrás era muito maior."
Segundo Bertucci, seu
movimento tem tido sucesso e busca os seguintes objetivos:
"Em primeiro
lugar, reconhecimento, inclusão. Eu quero fazer parte da sociedade, eu quero
poder circular, pegar um voo, ir ao médico e ser 'reconhecide' por quem eu
sou".
"Não havíamos,
enquanto sociedade, parado para pensar que essas pessoas existem, porque a
colonização apagou as identidades não binárias dessa conversa."
Quando cita a
colonização, Bertucci expõe outra bandeira cara a uma parte do movimento queer.
Para essas pessoas, a luta pra transformar a linguagem é parte de uma batalha
bem maior: uma batalha contra leituras do mundo que o movimento considera
binárias, e contra conceitos e convenções culturais que, segundo eles, se
espalharam pelo planeta com o colonialismo.
"Minha proposta é
que sair da binaridade não só da questão linguística e de gênero vai abrir um
novo portal de consciência para que a gente possa perceber o que está para além
dessa polarização", afirma.
Bertucci afirma que,
hoje, boa parte da sociedade está presa a polarizações do tipo "preto ou
branco, homem ou mulher, direita ou esquerda".
"Mas existem
outras camadas aqui, entre uma coisa e outra, que precisam ser examinadas. E,
se a gente não parar e entender onde a gente está dentro desses processos, vai
ficar muito difícil a gente criar uma sociedade um pouco mais sustentável, inclusiva
e evoluída", defende.
Fonte: BBC News Brasil
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