O lance de Bolsonaro e a urgência de
esquerda
Qual o impacto na
conjuntura da manifestação pública convocada por Jair Bolsonaro neste domingo
(25) na avenida Paulista?
Estive no ato e andei
ao longo de toda sua extensão, indo e vindo, por duas vezes. Fiquei
impressionado. Eram quatro quadras apinhadas de gente. Havia pontos, no
quarteirão onde se encontrava o caminhão de som, em que a compactação tornava
quase impossível a passagem. Numa apreciação impressionista, arrisco dizer que
pouco mais de dois terços da massa era composta por gente de classe
média-média, branca. O restante parecia ser de classe média baixa (pobres), com
presença significativa de pretos e pardos. Não era um protesto de grã-finos dos
Jardins. Havia quatro governadores e algumas dezenas de parlamentares no
palanque. Tarcísio de Freitas reforçou o policiamento e há notícias de que
teriam vindo caravanas do interior e de outros estados. Dinheiro parece não ter
faltado.
Qual a métrica para se
avaliar o evento? Há pelo menos três essenciais: A). Saber se havia um público
em volume expressivo; B) O que Bolsonaro pretendia com a iniciativa e C).
Compará-lo com as possibilidades organizativas da esquerda.
Examinemos a primeira
variável. Mesmo que não tenha colocado no asfalto os 700 mil que alguns de seus
apoiadores chegaram a alardear – é possível que tenham comparecido pouco menos
de 200 mil -, a soma não é desprezível. Acima de tudo, vale a foto aérea de uma
Paulista apinhada de gente.
Tudo indica que
Bolsonaro queria dar uma demonstração de força e retirar as acusações que
enfrenta do terreno jurídico – que lhe é desfavorável – e deslocá-las para a
seara política, na qual pode obter bom resultado. Cercado de processos, o
ex-mandatário está absolutamente correto em buscar as ruas. Uma possível
prisão, assim como foi a de Lula, depende da criação de um ambiente político
que enfraqueça sua legitimidade e o torne vulnerável aos tribunais. O petista
só foi encarcerado depois de anos de impiedosa campanha midiática, de acusações
infundadas por parte da Lava Jato, de opções desastrosas do PT no governo e do
golpe de 2016.
O marido de dona
Michelle se fortaleceu na ensolarada tarde paulistana. Passa o recado de que
não é carta fora do baralho, mesmo sendo inelegível. Mais do que tudo mostra
que o peso político da extrema-direita brasileira não é pequeno.
Se a meta de mostrar
apoio de multidões foi atingida, o segundo objetivo tem poucas chances de se
concretizar. Como assinala Valter Pomar, Bolsonaro propõe um acordo que livre
sua cara e isso ficou explícito em seu discurso. Antes de entrar no mérito do que
o ex-presidente externou ao microfone, é preciso focar brevemente na direção do
espetáculo, ou na coreografia de palco.
Os principais oradores
foram três, além de Bolsonaro. Puxando a fila estava Michelle, a demonstrar
fidelidade ao marido – ela cancelou uma viagem aos EUA – e pregar uma chorumela
emotiva, pretensamente religiosa. Em seguida, tivemos Tarcísio de Freitas, anfitrião
e possível herdeiro do espólio político do chefe, a garantir sua retidão de
caráter. E por último e o mais importante, Silas Malafaia, misto de espertalhão
e guru espiritual, para quem Bolsonaro terceirizou a saraivada de ataques ao
Supremo, ao TSE, a Lula, ao PT, a Alexandre de Moraes e a quem mais estivesse
pela frente. No meio do fraseado, destacou em tom quase apocalíptico: “Jair
Messias Bolsonaro é o maior perseguido político da nossa historia.
Limpo o terreno, o
indigitado ficou livre para tentar um caminho sem agressões e baixarias, quase
um Jairzinho paz e amor. E se revelou tremendamente defensivo e vulnerável. Em
22 minutos de uma oratória surpreendentemente articulada para os padrões do ex-capitão,
ele falou de sua infância, da vida no Exército, contou da experiência
parlamentar, de seus feitos na presidência, atacou o comunismo, a ideologia de
gênero, o aborto e listou um rosário de lugares-comuns do fascismo pátrio que
faz a alegria de seu eleitorado. Destacou ainda a importância do pleito
municipal e negou ter tramado um golpe. De cambulhada, aproveitou para insistir
no vitimismo: “Levo pancada desde antes das eleições de 2018”.
Depois da pieguiece,
vamos ao que interessa: buscar o que chama de conciliação e pacificação. “É
passar uma borracha no passado. É buscar maneiras de nós vivermos em paz. É não
continuarmos sobressaltados”.
A arenga vai em
frente: “Agora, nós pedimos a todos os 513 deputados e 81 senadores um projeto
de anistia para que seja feita justiça em nosso Brasil”. E cita os possíveis
beneficiários, “Esses pobres coitados que estavam lá no 8 de janeiro de 2023”.
Mas o altruísmo do ás das motociatas logo revela o verdadeiro objetivo: “Também
quero dizer que nós não podemos concordar que um poder tire do palco político
quem quer que seja. A não ser que seja por um motivo extremamente justo”.
Aqui, o ex-presidente
manda as sutilezas às favas. Sua meta enfim é revelada por inteiro: sair liso –
juntamente com o alto comando do golpe – de quase vinte acusações judiciais,
transformando o caso em disputa política, apelando ao Congresso – que tem as
prerrogativas constitucionais para isso – e não ao STF. O projeto do ato tem,
assim, início, meio e fim. Nessa tentativa de mostrar força, é possível que
busque realizar manifestações semelhantes em outras capitais.
O comportamento da
mídia, ao longo do dia, foi cauteloso. Mesmo o Fantástico, principal atração
dominical da Globo, enquadrou a notícia numa reportagem de 3 minutos, quase ao
final do programa, na qual não faltaram menções às acusações que pesam sobre Bolsonaro.
Como as corporações de comunicação têm sido atendidas em quase todas as suas
demandas junto ao governo federal – arcabouço fiscal, verbas publicitárias,
predomínio de fundações privadas na Educação, não reversão de privatizações e
reformas de Temer e Bolsonaro – possivelmente seus dirigentes avaliem não ser
esse o momento de romper com a atual gestão.
Finalmente, do ponto
de vista da esquerda, convém não subestimar a força da extrema-direita. Desde a
posse de Lula III, o que se entende genericamente por progressismo não colocou
contingente equivalente em praça pública. Apesar da defensiva, Bolsonaro age
com competência ao buscar mudar o terreno de seu enfrentamento da Justiça para
o Congresso. É difícil que conquiste a anistia, mas também é pouco provável que
seja preso no curto prazo. Há um objetivo secundário nessa trama toda: o mais
ilustre morador do condomínio Vivendas da Barra tenta coesionar e unificar
nacionalmente os aliados com vistas às eleições de outubro.
Falta uma última peça
nesse quebra-cabeças. Até aqui não há uma campanha vigorosa da esquerda contra
a extrema-direita. Ao contrário: o bolsonarismo está no governo e no Congresso,
negociando cargos e prebendas. Sobra soberba, desleixo e falta de rumo nos
campos progressistas. A celebração do 8 de janeiro no palácio do Planalto se
resumiu a um convescote destinado a passar o pano geral para o andar de cima do
golpe. Seguimos depositando todas as expectativas no Xandão. A esquerda acaba
fazendo um lawfare com sinal trocado ao bater às portas dos tribunais diante de
qualquer controvérsia. Embora Lula tenha subido o tom na política externa, seu
comportamento não é acompanhado pela maioria de seu partido ou das agremiações
aliadas. Com raras exceções, ministros, senadores e deputados do PT evitam se
posicionar nessa questão.
Não basta reclamar,
xingar, fazer piadas, desqualificar, ofender e dirigir vitupérios ao fascismo
made in Brazil. É preciso enfrentá-lo politicamente, retirá-lo do governo,
assumir o real comando das forças armadas e definir melhor quem são aliados e
inimigos. Sei que falar é fácil, mas não há outro jeito.
Ø
Jair na Paulista. Desprezar é perigoso. Por
Eliara Santana
Domingo de sol
brilhando em São Paulo, e parte da Avenida Paulista estava tomada pelos
verde-amarelos da terra plana. Todos respondiam à convocação do ex-presidente e
agora inelegível Jair Bolsonaro para uma manifestação “pacífica” e “pela
democracia”. No trio elétrico, Michelle Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, Romeu
Zema, Nikolas Ferreira e vários outros garantiam a diversão e animavam a
plateia. Há quatro dias, Bolsonaro ficou calado no depoimento que prestou à PF
sobre a armação para dar um golpe e impedir Lula de governar. Mas, no domingo,
ele soltou a voz, falou aos corações e mentes verde-amarelos, tirou a armadura
e calçou as sandálias da humildade.
A guerra é midiática,
estamos em ano eleitoral da maior importância, e produzir belas imagens e
acontecimentos de impacto é uma estratégia muito importante nos momentos de
conflito e nos momentos de eleição. Não foi uma megamanifestação, com certeza;
havia buracos de concentração na Paulista. Mas isso não é o elemento definidor.
Na guerra de narrativas, a PM paulista do governador Tarcísio de Freitas –
aliado de Bolsonaro que discursou na manifestação – deu a informação, ainda na
noite de domingo, de que havia entre 600 mil e 750 mil pessoas na
Paulista durante o ato. Com tantos buracos e poucos quarteirões ocupados, nem
os defensores da Terra plana iriam acreditar nos números – mas os jornais
da grande imprensa reproduziram o dado, pois a fonte é fidedigna e tem
autoridade para informar o que informou; se isso é verdade, não importa muito.
É um detalhe na guerra de narrativas, e os números serão reproduzidos nas
centenas de imagens que mostram a Paulista cheia e que já estão circulando
amplamente. Em tempos de domínio da desinformação, é assim que funciona.
O grupo de pesquisa
“Monitor do debate político”, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH)
da USP, coordenado por Pablo Ortellado e Márcio Moretto, informou que havia 185
mil pessoas na Avenida Paulista acompanhando o inelegível ex-presidente Jair
Bolsonaro. Apesar de bem menor do que os dados divulgados pela PM, é um número
expressivo, não nos enganemos. Bolsonaro não é mais presidente, está sendo
investigado pela PF sob acusação de ter participação na trama golpista para
impedir a posse de Lula, está sendo investigado pela participação na arruaça do
8 de Janeiro em Brasília, fez uma gestão miserável da pandemia de Covid,
deixando um legado de 700 mil mortos, arrasou o Estado brasileiro, emporcalhou
completamente a economia, e, mesmo assim, reuniu 185 mil pessoas num
domingo de sol na Avenida Paulista – e antes que me dirijam comentários
irritados, é claro que nada foi espontâneo, as pessoas não aderiram
simplesmente, elas foram convocadas e convencidas e financiadas (muitas delas)
pelos apoiadores de Bolsonaro. Espontaneidade, sobretudo em algumas questões, é
algo cada vez mais raro (se não inexistente), tudo precisa precisa ser cativado
e cultivado – e a extrema direita sabe bem como fazer isso.
Na Paulista, Jair
Bolsonaro mudou o discurso de enfrentamento e adotou o personagem “perseguido”,
a vítima que sofre perseguição porque tem uma missão importante: defender a
justiça e a liberdade no Brasil. O discurso e o personagem são mobilizadores e
capazes de ganhar eleição, como já ocorreu no passado, depois da facada.
Feito o preâmbulo,
quero salientar alguns aspectos que me parecem relevantes sobre o ato na
Paulista:
1 O ato foi
muito importante para manter as narrativas da pauta da extrema direita em
circulação e para manter a base mobilizada. Temas como liberdade do
indivíduo, defesa da Pátria, defesa da família, missão… tudo isso ganha muito
corpo
2 Apesar do discurso
calculadamente humilde, Bolsonaro não está sepultado
3 O bolsonarismo foi
bastante abalado, mas não está enterrado, morto e sepultado. Pelo contrário,
está ativo e reciclando formas de atuação e reeditando os discursos quando
convém
4 A situação jurídica
dele não se abala, mas cria-se uma “camada” de instabilidade
5 Coloca o tema da
anistia na pauta e no imaginário das pessoas, referindo-se aos “pobres
coitados”, com “filhos órfãos de pais vivos”; isso cria uma disposição
favorável, não se enganem
6 Reforça o papel de
Michelle Bolsonaro, que é presidente do PL Mulher, como nome relevante para
mobilizar o eleitorado feminino – que está sendo decisivo nas eleições no
Brasil. E aqui vai uma sugestão: pesquisam sobre as “tradwives”
7 Mais de 20
parlamentares da base do Governo Lula estiveram presentes ao ato na Paulista,
além de governadores, como o de São Paulo e o de Minas Gerais. Não é pouca
coisa.
Por fim, chego ao
ponto que quero reforçar nesta conversa a partir do evento de domingo (24/02)
na Paulista: o desprezo pelo opositor é perigoso, muito perigoso; seja na
política, seja nas paixões, seja na mistura dessas duas coisinhas que parece
ser o que dá o tempero do caldo político no Brasil. É perigoso porque revela a
arrogância daquele que despreza e implica um olhar turvo e distorcido em
relação à complexidade da realidade brasileira e também dos ressentimentos
acumulados. E isso importa muito.
Sobre ato, há
uma pergunta geral que apareceu em várias análises e diversos comentários que é
se o ato “funcionou”. A resposta tem a ver com a questão “funciona para quê?” –
não funciona para mudar a situação jurídica de Bolsonaro, mas funciona, e muito,
para manter as narrativas da extrema direita fortes e em circulação e a base
acesa e empolgada, mobilizada, o que é ouro em ano de eleição local.
Para fechar: o ato de
Jair Bolsonaro foi pauta no domingo e é pauta de destaque em todos os jornais e
sites da imprensa na manhã desta segunda-feira. Portanto, não deveria mesmo ser
tratado com desprezo arrogante.
Fonte: Por Gilberto
Maringoni, em Outras Palavras/Jornal GGN
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