O brasileiro que busca último indígena de
povo isolado da Amazônia
Jair Candor consegue
ler a floresta melhor do que qualquer outra pessoa.
Ele dedicou quase toda
a vida a percorrer as partes mais remotas da floresta Amazônica, procurando
povos indígenas que vivem isolados. Sua intenção é proteger essas pessoas.
Candor é indigenista e
trabalha na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Seu trabalho é
demonstrar a existência dessas comunidades isoladas para proteger legalmente
suas terras.
Muitas vezes, sua
tarefa é uma corrida contra outras pessoas, como agricultores e madeireiros,
que têm seus próprios interesses sobre as terras indígenas.
Candor percorre a
floresta em busca de pistas que indiquem a localização das comunidades
indígenas. Se o lugar tiver chão de barro ou areia, ele procura as pistas no
solo. Se o lugar for seco, a busca é feita nas árvores.
Mas existe uma pessoa
que detém mais conhecimento sobre a floresta do que Candor. Seu nome é Tamanduá
– o único indígena Piripkura que continua vivendo como nômade na Floresta
Amazônica. Tamanduá passa a vida caminhando com um facão e uma tocha.
Apenas três membros
continuam vivos de um povo que, um dia, reuniu centenas de pessoas. E dois
deles decidiram se estabelecer em um local fixo.
Esta é a história de
como Jair Candor se tornou rastreador de povos isolados. Sua jornada levou anos
até que ele encontrasse os Piripkura – nome que significa
"borboleta", pela agilidade com que eles percorrem a floresta.
• Crescer no Amazonas
Candor se consagrou
como expedicionário, em parte, porque ele próprio cresceu em meio à floresta.
Sua família se mudou do Paraná para a região amazônica quando ele ainda era
criança, com seis anos de idade.
"Havia um
programa do governo para explorar a Amazônia", ele conta. "Meus pais
eram agricultores e as terras que tínhamos no Paraná eram muito pequenas."
Os pais de Candor
sonhavam em ter uma grande plantação de café. E este sonho ia ao encontro dos
planos da ditadura militar (1964-1985), que pretendia levar sua própria visão
de desenvolvimento para a Amazônia: infraestrutura e agricultura.
Na época, o controle
do Brasil sobre o vasto território da Amazônia era muito limitado. Afinal, a
floresta engolia as estradas muito mais rápido do que a manutenção feita pelas
autoridades.
Por isso, viajar era
muito difícil. A família de Candor, por exemplo, levou nove dias para chegar do
Paraná até Rondônia.
Milhares de outras
famílias também se mudaram para a Amazônia naquela época. Mas a façanha de
construir a vida em meio à floresta não era tarefa fácil.
"Todos os dias,
havia gente morrendo de malária, febre amarela...", recorda Candor.
Quando criança, Candor
foi ensinado que os indígenas "eram perigosos, que matavam, eram canibais
e odiavam a gente".
• Questão de sobrevivência
A tentativa da família
de ter uma vida melhor na Amazônia logo fracassou. A mãe de Candor morreu e seu
pai vendeu a terra três anos depois da chegada.
A família se
desintegrou e cada um precisou tentar sobreviver isoladamente. E, com apenas
nove anos de idade, Jair Candor começou a procurar trabalho nas plantações de
café.
"Às vezes,
trabalhávamos em troca da comida, porque o dono não tinha como nos pagar",
relembra ele. "Eles me davam um prato de comida, outro para levar e assim
foi."
Mais tarde, ele
conheceu um grupo de seringueiros. Na época (meados dos anos 1970), os
seringueiros já trabalhavam há pelo menos um século nas profundezas da
floresta.
Candor conta que
encontrou uma comunidade entre os seringueiros.
"Como eles me
tratavam muito bem, eu me adaptei a viver com eles", ele conta. "Foi
ali que eu comecei a entender e aprender como sobreviver na Amazônia."
"Aprendi a caçar.
Aprendi a pescar. Aprendi sobre umas pequenas larvas que vivem dentro dos cocos
do babaçu e são muito nutritivas e saborosas."
E aprendeu a gostar
daquela vida.
"O trabalho não
era muito pesado", ele conta. "Eu trabalhava na sombra das árvores e
ganhava algum dinheiro. Para mim, estava tudo bem."
• O encontro
Trabalhando como
seringueiro, Jair Candor encontrou uma daquelas comunidades indígenas que ele
tinha sido ensinado a evitar. Candor morava perto de um grupo indígena gavião.
"Nós começamos a
nos comunicar com eles", conta o indigenista. "Eu fui à aldeia,
joguei futebol com eles, comi com eles."
"Comecei a
perceber que nós é que estávamos invadindo o território deles e não eles, o
nosso."
Os indígenas viviam na
Amazônia desde muito tempo antes dos forasteiros.
Mas a chegada de
famílias como a de Candor, vindas de outras partes do Brasil, significou
deslocamentos para os indígenas, no melhor dos casos. E, em muitos outros,
comunidades indígenas inteiras foram massacradas.
Candor aprendeu a
falar um pouco do idioma dos indígenas gaviões. Ele também aprendeu a caçar e
pescar como eles.
"Aprendi que eles
são pessoas que vivem sem nada", relembra ele. "Não são como o homem
branco, que quer tudo."
Assim como a postura
de Jair Candor frente aos indígenas, a forma como o governo abordava aquelas
comunidades também mudou com o passar do tempo.
A Funai foi criada em
1967, depois que um relatório devastador revelou os maus-tratos sofridos pelos
povos indígenas no Brasil – desde assassinatos e torturas até exploração sexual
e roubo de terras.
Para proteger os
indígenas e, especialmente, resguardar suas terras contra os interesses de
madeireiros e agricultores, a entidade precisava determinar quem vivia em qual
lugar. E esta não era uma tarefa fácil, já que algumas comunidades são nômades
e vivem em enormes extensões de terra.
Por isso, a Funai
precisava de pessoas que pudessem rastrear e monitorar esses grupos. E foram os
amigos indígenas de Candor que o recomendaram para essa função.
Mas rastrear
comunidades que não querem ser encontradas traz um dilema.
"Nós só entramos
em contato em caso de risco iminente, se há um conflito com uma população
indígena contatada ou com agricultores ou garimpeiros, alguma coisa
assim", explica Candor. "Caso contrário, nosso trabalho é só de
monitoramento."
"Os povos
isolados não têm ninguém que fale por eles, eles precisam de alguém que lute
por eles, que os proteja. Senão, amanhã ou depois de amanhã, só conheceremos a
história de mais um grupo de indígenas não contatados que, como tantos outros,
foi massacrado."
• Um ano caminhando
Jair Candor e outros
homens empreenderam uma expedição pelo Estado de Mato Grosso em 1988, em busca
dos Piripkura. Eles sabiam que, antes, existiam centenas deles, mas na época já
restavam apenas alguns poucos.
No meio da viagem, o
chefe de Candor ficou doente, com gripe.
"Se nós
estivermos com gripe, encontrarmos um grupo de indígenas e um deles for
infectado, é provável que muitos morram, porque eles não têm imunidade",
explica ele.
Por isso, a expedição
ficou nas suas mãos.
"Éramos apenas
quatro", ele conta. "Eu, outro homem branco e dois indígenas."
"Caminhamos por
todo o ano de 1988. Vimos muitos dos caminhos deles, muitos acampamentos, mas
não encontrávamos nada."
Até que, um dia, em
meio a uma intensa chuva, eles ouviram os indígenas.
"Nós nos
aproximamos. Um deles estava subindo em uma árvore e o outro estava no
chão", relembra Candor. O homem que estava no chão saiu correndo e o outro
suplicava para que não o matassem.
Candor e sua equipe
precisaram de um bom tempo para convencê-lo de que eram amigos. "Depois de
duas horas, ele se acalmou."
Os dois homens eram
Pakyi (também conhecido como Baita) e Tamanduá.
Existem fotografias
desse encontro. Algo chama imediatamente a atenção: Candor parece gigante ao
lado dos dois homens Piripkura.
"Eles medem no
máximo 1,40 metros. São muito baixinhos", explica Candor. E também são
muito ágeis, rápidos e inteligentes.
Pakyi e Tamanduá se
tornariam pessoas especiais para Candor.
• Casado com a floresta
Jair Candor passou
anos repetindo esta missão com muitos outros povos indígenas e ficou conhecido
como um dos melhores rastreadores da Amazônia.
Ele começou a se
sentir mais em casa nas profundezas da floresta do que na sua própria cidade.
Ou, pelo menos, a Amazônia se tornou a prioridade da sua vida, o que não foi
muito bom para suas relações pessoais.
"Acabei perdendo
meu próprio casamento", ele conta. "Tínhamos tudo marcado. Eu disse:
'bem, vou trabalhar, mas vou voltar a tempo'. Mas a expedição demorou muito e
acabei chegando uns 15 dias depois da data do casamento."
"De qualquer
forma, foi bom porque acredito que [o casamento] não teria dado certo."
Mesmo assim, Candor
conheceu outra pessoa e se casou. Ele tem dois filhos e uma neta.
Candor vê sua família
cerca de cinco vezes por ano, quando vai para casa. Sua vida é assim desde que
os filhos eram pequenos. Ele também perdeu o nascimento de um deles – e
reconhece que sua esposa precisou ser mãe e pai dos seus filhos.
"Sou mais casado
com a floresta do que com a minha esposa", diz.
• Ameaças e doenças
O trabalho de Jair
Candor é perigoso. Muitas pessoas com trabalhos parecidos acabaram assassinadas
por agricultores ou madeireiros.
"Sou ameaçado,
muito ameaçado na região onde trabalho", afirma ele. "Sei que o risco
é grande, mas não tenho medo."
Em 2019, Candor
sobreviveu a um tiroteio, durante uma invasão à base onde ele ficava.
"Nós trocamos
disparos e eles acabaram perdendo", ele conta. Os invasores eram
supostamente relacionados a um grupo de madeireiros.
Desde então, a Força
Nacional de Segurança Pública protege a base 24 horas por dia. Mas este não é o
único risco enfrentado por Candor.
"No ano passado,
eu completei 45 malárias", ele conta. "Hoje, para mim, é até
normal."
• Os Piripkura
Dentre todas as
comunidades isoladas que foram monitoradas por Candor ao longo de mais de 30
anos, sua relação com os Piripkura é a que tem mais importância para ele. Os
encontros foram poucos, mas sua relação com eles já dura décadas.
Existe um vídeo da
última vez em que eles se encontraram, depois de uma longa busca. Candor não os
via há anos e precisava comprovar que eles estavam vivos para proteger suas
terras.
Depois de muita
procura, de repente, eles encontraram duas figuras nuas, Pakyi e Tamanduá.
Foi um encontro entre
amigos. Os dois indígenas estavam felizes por encontrá-lo e também precisavam
dele: sua tocha havia apagado.
"Eles haviam
acendido sua tocha uma vez, acho que em 1998", explica Candor. "E ela
só apagou em 2017. Eles cuidam do fogo com muito cuidado."
Os Piripkura são o
menor grupo indígena do Brasil. Apenas três integrantes permanecem vivos:
Tamanduá, Pakyi e uma mulher chamada Rita.
Pakyi recorda que,
anos atrás, uma embarcação dos Piripkura foi interceptada por seringueiros.
Eles foram levados para a margem e decapitados. Esta é uma das razões que
levaram o povo a ficar tão reduzido.
É claro que já não
existe a possibilidade de reprodução física dos Piripkura.
• Vida ou morte
Jair Candor tenta não
interferir demais na vida dos grupos que monitora. Mas ele interferiu uma vez,
quando Pakyi e Tamanduá precisavam de assistência médica com urgência.
"Em uma das
expedições, nós os encontramos na floresta e Tamanduá não conseguia
caminhar", ele conta.
"Nós o trouxemos
para a base em uma maca e o médico descobriu que ele precisava ser operado da
cabeça. Ele tinha um coágulo na cabeça. Precisava ir para São Paulo."
"Eles já haviam
ouvido o som de um avião sobrevoando quando estavam na floresta, mas não sabiam
que ele servia para transportar as pessoas", relembra Candor. "Foi
meio complicado [levá-los para São Paulo], mas nós conseguimos."
Pakyi e Tamanduá
passaram mais de um mês em São Paulo, em tratamento médico.
"Foi traumático
para eles", relembra Candor. "Eles saíram de viver na floresta para
viver em uma floresta de cimento, sem árvores, nem rios para pescar, nem
castanhas para colher."
Assim que voltaram
para a Amazônia, Pakyi e Tamanduá fugiram o mais rápido que puderam. Mas, desde
esse episódio, os encontros entre os Piripkura e Candor passaram a ser mais
frequentes.
"Com certeza,
temos amizade", prossegue ele. "Eles me contam histórias da floresta.
Que fugiram da onça, que a onça fugiu deles. Nós trocamos ideias."
Pakyi passou a morar
perto da base de Candor. Ele já não vive de forma independente.
Mas Tamanduá anda
sozinho pela floresta. É o último Piripkura nômade. Ele não é visto há mais de
um ano, mas eles têm bastante certeza de que continua vivo.
Jair Candor tem hoje
63 anos e é difícil para ele pensar em aposentadoria.
"Esta é outra
briga que tenho comigo mesmo", ele conta. "Eu também tento decidir me
aposentar, mas sei que não será fácil para mim."
"Por enquanto,
vou fazer o que fiz no meu casamento. Vou perder a minha aposentadoria."
Fonte: BBC News Brasil
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