Os ex-escravizados que voltaram para a
África e fundaram comunidade que segue tradições brasileiras
O 13 de maio entrou
para a história do Brasil como o dia em que a Lei Áurea foi assinada. O ano era
1888 - ou seja, há exatos 135 anos - e, no papel, foi decretado: "É
declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil".
Mas antes mesmo da
assinatura do documento, milhares de homens e mulheres arrancados à força de
suas terras natais começaram um processo pouco conhecido de retorno às suas
origens.
Ao todo, estima-se que
entre 3 mil e 8 mil afro-brasileiros tenham retornado ao continente africano
durante o século 19.
Eles implantaram o
único exemplo, até então, de cultura brasileira exportada no mundo em
comunidades na costa da África Ocidental, em territórios que hoje fazem parte
de países como Benin, Togo, Nigéria e Gana.
Neste último, os
retornados ficaram conhecidos como "tabom" por se comunicarem em
português e usarem com frequência a frase "tá bom".
"Há duas versões
para esse nome", explica a historiadora Monica Lima e Souza, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"A primeira é que
como muitos deles não falavam bem a língua local, respondiam 'tá bom' para tudo
que não entendiam. Já a segunda é que o 'tá bom' era usado com frequência como
uma saudação, uma forma de saber se a outra pessoa estava bem."
A comunidade que
floresceu nos arredores do que hoje é Acra, a capital de Gana, ainda existe.
Apesar de pouco
numerosas, algumas famílias ainda carregam sobrenomes luso-brasileiros e
realizam cerimônias com danças que misturam a tradição local à brasileira.
Além disso, também é
possível encontrar pratos típicos brasileiros, como a feijoada, sendo servidos
em encontros da comunidade.
• O retorno
Historiadores se
baseiam nos poucos documentos da época e principalmente na história oral para
reconstruir a história dos retornados.
Considera-se que os
primeiros brasileiros a chegar à área da Costa Ocidental da África
desembarcaram antes da década de 1830 e eram traficantes de escravos ou pessoas
próximas.
"Mas a partir da
década de 1830 muitos retornos passaram a ter relação com as rebeliões e
insurgências que aconteciam no Brasil, em especial a Revolta dos Malês em
Salvador, na Bahia", explica Monica Lima e Souza.
Segundo a
historiadora, muitos dos escravizados libertos passaram a ser vigiados e
perseguidos após esses movimentos e viram o retorno à África como uma
alternativa. Muitos dos envolvidos também foram deportados à força.
É neste contexto que
alguns historiadores incluem a chegada a Acra, nas primeiras décadas do século
19, de um pequeno grupo de escravizados que conquistou sua liberdade em
território brasileiro e viajou de navio a Gana.
Posteriormente, a
partir da década de 1850, uma nova leva de pessoas, motivadas principalmente
pelo fim do tráfico de escravizados no Brasil, abolido por lei nesse mesmo ano,
passou a retornar à África. "O objetivo principal delas era promover uma atividade
comercial livre e combater o tráfico atlântico ou interno que ainda
acontecia", diz Souza.
Também há indícios de
que um grupo significativo de retornados chegou a Gana vindo da Nigéria em um
barco oferecido pelo governo inglês.
A viagem supostamente
deveria ser apenas para visita, mas eles foram tão bem recebidos pelos chefes
das comunidades locais que resolveram ficar.
• Vida em Gana
A historiadora da UFRJ
explica que muitos dos escravizados que decidiram deixar o Brasil eram nascidos
na África que, após terem seus laços com suas comunidades originais cortados à
força, acabaram se familiarizando mais com a cultura brasileira e o português
do que com suas próprias tradições.
Após conquistarem sua
liberdade e um certo conforto financeiro, decidiram voltar em busca de
oportunidades na área comercial. "No litoral da região que hoje é Acra
existiam três grandes fortes - um holandês, outro britânico e outro dinamarquês
- e em torno deles se desenvolveu a ocupação", explica.
Antes da abolição do
tráfico, os fortes eram usados pelos europeus para comércio de ouro e
escravizados.
"Quem retornava
eram os libertos com condições financeiras melhores, seja porque conseguiram
reunir dinheiro por meio do seu trabalho ou porque a família ou conhecidos
bancavam a viagem", diz Souza.
Segundo a professora,
os custos da travessia eram altos e incluíam não só a passagem de navio como
contratos para alimentação e segurança.
Já em solo africano,
os registros dão conta de que os brasileiros foram bem recebidos pelas
comunidades e pelos holandeses que controlavam a região, recebendo terras para
se estabelecer.
Em seu livro Sou
brasileiro: história dos tabon afro-brasileiros em Acra, Gana, os autores
Alcione Meira Amos e Ebenezer Ayesu afirmam que alguns dos afro-brasileiros
ainda chegaram com habilidades profissionais e dinheiro, recursos que eram bem
recebidos pela população local.
"Entre eles, de
acordo com documentos encontrados, havia pedreiros, carpinteiros, alfaiates,
ferreiros, ourives, escavadores de poços de água potável e famílias com
habilidades no cultivo agrícola", diz a obra.
Ainda segundo os
historiadores, a comunidade formada pelos recém-chegados cresceu rapidamente e
suas casas passaram a contrastar com as residências da população local -
enquanto os afro-brasileiros edificaram prédios com pedra, como haviam
aprendido no Brasil, os locais cobriam suas moradias com sapé.
"Especialmente os
retornados que chegam da década de 1880 em diante tinham uma visão sobre suas
próprias comunidades muito baseada na ideia de que eles eram mais
ocidentalizados, mais educados e até mais brancos", diz Monica Lima e
Souza.
E apesar de terem
vivido alguns anos no Brasil, muitos dos primeiros tabom a chegarem em Gana
eram muçulmanos. Mas segundo os registros, a grande maioria logo se converteu
ao cristianismo, em especial ao anglicanismo e ao metodismo, devido à
influência europeia na região.
• Os tabom e a escravidão
Mas mesmo após o fim
do tráfico e apesar de suas origens, muitos tabom ainda mantiveram uma relação
com a escravidão após deixarem o Brasil e, além de manterem escravizados em
casa, atuavam no comércio.
Segundo conta em
alguns livros de história, em 1845, o governador dinamarquês Edward Carstensen
reportou que "a Acra holandesa tem sido há algum tempo o centro de
comerciantes de escravos, especialmente os negros brasileiros emigrados".
O governador
Carstensen continuou afirmando que, três meses antes, um desses traficantes
brasileiros tinha sido preso no interior do país conduzindo dois escravos para
a costa para serem vendidos.
Quase vinte anos
depois, em 1864, era ainda relatado que os afro-brasileiros de Acra estavam
controlando "um florescente comércio de escravos do território Ewe para
Acra".
No entanto, em Gana e
na África Ocidental em geral, a escravatura naquele momento diferia em natureza
daquela que existiu no Brasil e nos Estados Unidos. Os escravizados eram
considerados parte da família e do clã de seus captores e por isso poderiam até
mesmo chegar a ocupar uma posição de autoridade.
"Regras sociais e
costumes [...] protegiam muito da dignidade do escravo [...] escravidão nativa
em Gana não era [racial]", define Akosua Perbi, professora de história na
Universidade de Gana e estudiosa do tema.
• A comunidade hoje
Não há uma estimativa
oficial do total de descendentes do povo tabom que ainda vivem hoje em Gana,
uma vez que não existe um censo específico para isso, mas especula-se que a
comunidade esteja em torno de 5 mil pessoas.
Eles estão organizados
como sempre estiveram desde o seu retorno à África, com um sistema de chefia
tradicional equivalente ao do Gana, com um Mantse (chefe ou rei). O Mantse Nii
Azumah 5º é o atual líder da comunidade.
Mas segundo
historiadores que se debruçaram sobre o tema, diferente da experiência dos
ex-escravizados que retornaram para o Benin ou Nigéria, os tabom de Gana não
possuem mais uma forte influência da cultura brasileira.
Nem todos mantêm uma
ligação com as tradições brasileiras, sabem detalhes de sua ascendência ou
sabem falar português. Ainda é possível escutar trechos em português de músicas
cantadas em celebrações religiosas e culturais, mas segundo pesquisadores que estudam
as comunidades seus integrantes na maioria das vezes não sabem o que as
palavras significam.
Para Alcione Meira
Amos e Ebenezer Ayesu, essa perda da identidade "pode estar relacionada ao
fato de que alguns dos imigrantes muçulmanos que chegaram da Bahia a Acra nas
décadas iniciais do século 19, não tenham ficado no Brasil por muito tempo".
Além disso, segundo os
autores, os tabom acabaram se fundindo de forma mais intensa com a comunidade
local e acabaram, por vezes, deixando de lado a cultura que haviam trazido do
Brasil.
Ainda assim, muitos de
seus descendentes ainda vivem em uma área que fica de frente para o mar e
próxima ao antigo porto de Acra chamada Jamestown.
Lá há uma rua chamada
Brazil Lane, onde está localizada a primeira casa que abrigou os tabom, a
Brazil House, e que hoje funciona também como museu e acervo.
Fonte: BBC News Brasil
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