JURISTAS E ENTIDADES DEFENDEM A REVOGAÇÃO
DA LEI SOBRE ALIENAÇÃO PARENTAL
Legislação
surgiu no Brasil em 2010 para proteger crianças em processos de separação.
Segundo especialistas, porém, tem sido usada contra mulheres que denunciam
homens por violência doméstica ou abuso sexual dos filhos. Conceito não tem
lastro científico e foi proibido na Espanha e na Colômbia.
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Desde 2010, o Brasil
tem uma lei sobre alienação parental, criada para evitar possíveis abusos
emocionais de crianças e adolescentes durante processos de divórcio.
A aplicação dessa
norma, porém, tem sido contestada por peritos da Organização das Nações Unidas
(ONU), do Ministério Público Federal (MPF), do Ministério dos Direitos Humanos
e da Cidadania, do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente (Conanda), além de especialistas e parlamentares.
Segundo os críticos, a
lei tem sido usada contra mulheres que denunciam homens por violência doméstica
ou abuso sexual dos filhos. O objetivo é deslegitimar a palavra das mães e,
muitas vezes, tirar delas a guarda de crianças.
“A lei desconsidera os
dados empíricos da realidade brasileira, de violência estrutural [1 mulher foi
morta a cada 6 horas no Brasil em 2022, segundo dados do Monitor da Violência,
e 45 mil menores de idade sofrem violência sexual no país por ano, de acordo
com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)], promovendo a entrega
de crianças de tenra idade a pais agressores. Ignora o elevado peso cultural
que o machismo e a misoginia possuem no Brasil”, diz Romano José Enzweiler,
juiz do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Três projetos de lei
foram protocolados nos últimos anos para revogar a Lei da Alienação Parental
(lei 12.318/2010), única do tipo no mundo, segundo o Ministério Público
Federal (saiba mais abaixo).
Embora a norma preveja
que tanto o pai quanto a mãe podem ser considerados alienadores, é sobre as
mulheres que essa acusação tem recaído com mais frequência e com mais peso,
segundo a procuradora da República aposentada Ela Wiecko, que orienta pesquisas
sobre o assunto na Universidade de Brasília (UnB).
“As sanções que [as
mães] recebem são mais graves comparativamente aos casos em que os homens foram
considerados alienadores, as análises que sobre elas incidem são bem mais
depreciativas do que as que incidem sobre homens."
O g1 ouviu
cinco mães que passaram ou estão passando por essas situações.
<<<< O que
é alienação parental?
A ideia de uma
"síndrome de alienação parental" foi criada pelo psiquiatra e perito
judicial americano Richard Gardner, que já escreveu que “há um pouco de
pedofilia em cada um de nós” e que mulheres com “sexualidade aumentada” reduzem
o risco de pais abusarem das filhas.
Em casos de disputa de
guarda, ele considerava frequente o uso de “campanhas de difamação” e acusações
“falsas” de abuso, em geral por parte das mães contra os pais, para afastá-los
dos filhos. Isso produziria na criança o que ele chamou de “síndrome de alienação
parental”.
Na teoria do
americano, o diagnóstico se basearia nos sintomas exibidos pela criança e
exigiria diferentes respostas, inclusive do Judiciário, como ameaça de perda da
guarda.
As observações de
Gardner, no entanto, não eram revisadas por pares e não se baseavam em dados
empíricos.
A síndrome, que jamais
foi aceita pela Associação Americana de Psiquiatria, chegou a ser reconhecida
como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que voltou atrás e a
retirou da CID (Classificação Internacional de Doenças) em 2020.
No Brasil, as ideias
de Gardner foram incorporadas em meados dos anos 2000 por organizações de pais
e mães separados e integrantes do Judiciário, e o tema ganhou uma lei própria
em 2010.
A justificativa do
projeto que originou a lei brasileira traz o trecho de um artigo que cita
Richard Gardner diretamente e afirma que a ruptura do casamento pode gerar nas
mães uma “tendência vingativa”.
·
O que diz a lei brasileira sobre alienação
parental?
A lei define alienação
parental como a “interferência na formação psicológica” da criança ou do
adolescente visando prejudicar o vínculo com o pai ou a mãe e a produção de
repúdio contra um deles.
Conforme a
justificativa da norma, a alienação parental "merece reprimenda
estatal" por ser uma "forma de abuso no exercício do poder familiar,
e de desrespeito aos direitos de personalidade da criança em formação".
Além de atos
declarados pelo juiz ou constatados em perícia, são entendidos como alienação:
- dificultar o contato dos filhos com pai/mãe ou o direito de
visita;
- “realizar campanha de desqualificação da conduta” de um dos
pais no exercício da paternidade/maternidade;
- “omitir deliberadamente informações pessoais relevantes”
sobre os filhos;
- “mudar o domicílio para local distante, sem justificativa”;
- e “apresentar falsa denúncia” contra um dos pais para
“dificultar a convivência”.
Em casos de indício de
alienação, o juiz pode determinar uma perícia psicológica e social, que envolve
entrevistas com os envolvidos e avaliações psicológicas e psiquiátricas.
Constatados tais atos
de alienação, o juiz pode, a depender da gravidade do caso:
- fazer uma advertência ou estipular multa ao alienador;
- ampliar o regime de convivência em favor da parte
considerada alienada;
- determinar acompanhamento psicológico;
- mudar o regime de guarda -- seja invertendo totalmente a
guarda ou determinando guarda compartilhada;
- determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou do
adolescente.
Segundo o autor do
texto, Régis de Oliveira, então deputado federal pelo PSC e hoje professor da
Universidade de São Paulo (USP), o objetivo é proteger crianças de serem usadas
por qualquer um dos pais como instrumento de vingança.
"A lei deu
instrumentos ao juiz para que em casos específicos de pais que tentam usar seus
filhos, ele possa tomar a decisão adequada. Agora, se a lei está sendo mal
utilizada, isso é outra coisa", afirmou Oliveira, que admite ajustes, mas
é contra a revogação da lei.
·
Como a lei de alienação parental é usada no
Brasil?
Segundo o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 4,5 mil ações de alienação parental foram
apresentadas à Justiça a cada ano nos últimos 5 anos. O volume cresceu durante
a pandemia de Covid (veja no infográfico abaixo). Em 2023, até outubro, foram 5.152
processos de alienação -- casos de divórcio litigiosos somam 148.995 no
período.
Pesquisas feitas em
tribunais do país mostram que, em regra, o alvo da acusação de alienação
parental é a mãe.
As pesquisadoras da
USP Fabiana Severi e Camila Villarroel avaliaram 1.478 processos de alienação
dos tribunais de Justiça de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Elas
descobriram que a mãe foi o alvo da acusação de alienação em 80% dos processos
que envolvem violência doméstica contra a mãe e em 70% nos que envolvem abuso
sexual contra as crianças.
Os casos de alienação
parental têm tramitação prioritária. Assim, a mãe pode perder a guarda do filho
para o pai denunciado por ela antes de uma eventual investigação criminal sobre
os abusos ser concluída.
O coletivo Mães na
Luta, que reúne mulheres que já passaram ou estão passando por processos de
litígio de guarda, estima ter atendido desde 2016 ao menos 700 mães que tiveram
a guarda de seus filhos ameaçada com base nessa acusação.
Em 2019, um
levantamento das situações processuais de mães atendidas pelo grupo mostrou que
a guarda foi revertida em prol do pai acusado em 81% dos casos com denúncias de
abuso sexual.
“Os tribunais de
família rejeitam regularmente as alegações de abuso sexual das crianças
apresentadas pelas mães contra pais ou padrastos, desacreditando e punindo as
mães, incluindo através da perda dos direitos de custódia dos seus filhos”,
afirmaram os peritos da ONU em carta enviada ao governo brasileiro em 2022
pedindo a revogação da lei.
De acordo com a
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF, os depoimentos das
mulheres são cruciais, pois situações de abuso — que não têm testemunhas e não
deixam vestígios — "dificilmente serão provadas judicialmente”.
“Para esses casos, o
relato das mães, das crianças e dos adolescentes vítimas pode ser ferramenta
útil na tomada de decisão de medidas para a interrupção e reparação dos efeitos
do abuso. A Lei da Alienação Parental se mostra, então, como uma ameaça para
essas providências, pois formaliza a desconfiança frequente que paira sobre as
denúncias de mulheres”, escreveu a Procuradoria em nota técnica de 2020.
O fato de, em geral,
os processos correrem em sigilo (por envolverem menores de idade) joga contra
as mães e as crianças, avalia a procuradora da República aposentada Ela Wiecko.
“Paradoxalmente, o
sigilo previsto para preservar o direito à intimidade de crianças, adolescentes
e de mulheres pode operar em desfavor delas ao acobertar também violências
institucionais”, diz Ela.
Atualmente, o CNJ está
elaborando um protocolo para a realização da escuta de crianças e adolescentes
envolvidos em ações de alienação parental.
Em entrevista por
escrito ao g1, a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy
Andrighi, coordenadora do grupo responsável pelo protocolo, afirmou que
o objetivo do trabalho é dar uma resposta concreta a essas críticas e
“definir um protocolo que venha a ser observado, de forma uniforme, pelos
juízes, juízas e demais atores do sistema de justiça, com o escopo de evitar
eventuais revitimizações”.
·
Como é em outras partes do mundo?
Uma análise de
processos judiciais nos Estados Unidos envolvendo denúncias de abuso
e alienação ao longo de um período de 10 anos (2005-2014) mostrou que, quando
acusadas de alienação, as mães têm o dobro de chance de perder a guarda de seus
filhos na comparação com pais acusados de praticarem alienação.
Em 2023, a relatora
especial da ONU sobre violência contra mulheres e meninas colheu exemplos em
vários países, com casos de separação dos filhos das mães e entrega a pais
considerados abusivos na Colômbia, Austrália, Áustria, Alemanha e Reino Unido
-- além do Brasil.
A gravidade da
aplicação do conceito de alienação parental em casos envolvendo
violência já levou países a barrarem totalmente seu uso.
Em janeiro, a Suprema
Corte da Colômbia proibiu a utilização do termo “ferir os direitos de crianças
e adolescentes, reproduzir estereótipos de gênero e gerar eventos de
discriminação”.
Na Espanha, a
legislação também impede que a teoria da "síndrome de alienação
parental" seja levada em consideração pelo poder público.
·
O que diz quem defende a lei?
Na avaliação da
advogada Renata Nepomuceno e Cysne, diretora nacional do Instituto Brasileiro
de Direito de Família (IBDFAM), "eventuais deficiências e má aplicação da
lei" devem ser identificadas e corrigidas, mas revogá-la significaria
enfraquecer a rede de proteção infantil.
"É primordial
identificar as omissões que a eventual revogação da lei deixará", disse
ela em entrevista ao portal do IBDFAM, que apoiou a criação da legislação.
Procurada, Cysne aceitou dar entrevista, mas depois não respondeu mais às
tentativas de contato da reportagem.
Regis de Oliveira,
autor do texto em 2010, também é contra a revogação. Segundo ele, a lei atendeu
a uma determinada situação em determinada época, mas se hoje ela se mostra
insuficiente, o texto poderia ser reformulado. "A essência da lei que não
pode ser mudada, de despir do pai e da mãe qualquer instinto vingativo",
disse.
·
Como estão as discussões no Congresso?
Atualmente, três
projetos pela revogação da lei brasileira estão sob análise de comissões no
Congresso, dois no Senado — um de iniciativa popular e outro do senador Magno
Malta (PL-ES) — e um na Câmara dos Deputados, proposto pelas deputadas do PSOL
Fernanda Melchionna (RS), Sâmia Bomfim (SP) e Vivi Reis (PA).
“Nós temos hoje mais
de 40 mães escondidas com ordens judiciais para devolver os filhos aos
abusadores”, afirmou o senador Magno Malta, em agosto do ano passado, na
Comissão de Direitos Humanos, ao defender seu projeto.
Em setembro, o
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil se posicionou pela
revogação da lei brasileira em uma audiência da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos -- um dos órgãos do Sistema Interamericano, da Organização dos
Estados Americanos (OEA), que visa garantir os direitos humanos nas Américas.
Órgãos como o Conselho
Nacional de Saúde (CNS) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda) também já se manifestaram pela revogação da norma.
Para o juiz Romano
José Enzweiler, organizador de um livro sobre o assunto, e para a procuradora
da República aposentada Ela Wiecko, não há necessidade de uma lei específica
sobre alienação parental. Na avaliação deles, o Código Civil já é suficiente
para resolver eventuais conflitos entre os pais a respeito dos filhos durante
processos de divórcio.
"Ele [o Código
Civil] fornece uma série de alternativas, conferindo ao juiz amplos poderes
para resolver o litígio de maneira equânime, de modo a preservar especialmente
os filhos do casal", explicou Enzweiler.
Na avaliação dele,
além de revogar a lei, o Brasil precisaria de uma providência como a da lei
espanhola.
“A ideia da alienação
parental já se instalou. É difícil bani-la, porque ela atende a interesses
poderosos e ao populismo punitivo”, afirmou Wiecko.
Outra providência
destacada é a implementação efetiva do Protocolo para Julgamento com
Perspectiva de Gênero, publicado pelo CNJ em 2021, que alerta para o uso da
alegação de alienação parental como “uma estratégia utilizada por homens que
cometeram agressões e abusos”.
“A tese de legítima
defesa da honra não existe no nosso ordenamento jurídico desde 1830 e mesmo
assim nós tivemos que ir ao Supremo Tribunal mostrar que algo que não existe
desde o século 19 continuava sendo contra mulheres no Judiciário”, explica a
jurista e advogada Soraia Mendes.
“A inexistência de uma
norma não significa que não exista a cultura. Precisamos mudar a cultura
jurídica”, disse ela.
Fonte: g1
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