Vinicius
de Moraes seria cancelado hoje? O lado machista do poeta que foi expulso do
Itamaraty
"Sou
um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher/ Mas com singular delicadeza.
Não sou bom/ Nem mau: sou delicado."
"Formosa,
não faz assim/ Carinho não é ruim/ Mulher que nega não sabe, não/ Tem uma coisa
de menos no seu coração/ A gente nasce, a gente cresce/ A gente quer amar/
Mulher que nega/ Nega o que não é para negar."
"Deus
fez primeiro o homem/ A mulher nasceu depois/ E é por isso que a mulher/
Trabalha sempre pelos dois/ O homem acaba de chegar, tá com fome/ A mulher tem
que olhar pelo homem / E é deitada, em pé/ Mulher tem é que trabalhar."
Ao
olhar contemporâneo, esses três trechos de poemas soam machistas e misóginos e
seriam facilmente cancelados. Pois são respectivamente fragmentos de Elegia ao
Primeiro Amigo, de 1943, Formosa, de 1965, e Maria Moita, obras escritas por
Vinicius de Moraes (1913-1980), morto em um 9 de julho há 45 anos.
Para
leitores atuais, já são motivos suficientes para classificar a criação do
famoso "poetinha", alcunha que ele tomou para si, como exemplos
problemáticos da literatura e da música brasileira.
Com sua
voz mansa, seu andar arrastado e o jeito de quem parecia estar sempre com um
copo na mão — e uma mulher no pensamento —, fato é que Vinicius é parte
incontornável da cultura brasileira.
Escritor,
poeta, compositor, dramaturgo e diplomata, está entre os fundadores da bossa
nova — é dele a letra de Garota de Ipanema, música de Tom Jobim (1927-1994) que
também é vista hoje como machista por objetificar a mulher — e acabou
personificando, em vida, o estilo boêmio e mulherengo dentro do estereótipo de
uma elite da malandragem carioca.
Seu
legado segue celebrado. Mas, hoje, é observado sob novas lentes.
"Com
nosso olhar contemporâneo identificamos nele uma visão machista. Este nosso
olhar nos faz perceber com bastante clareza, por exemplo, a objetificação
feminina em Garota de Ipanema", comenta à BBC News Brasil a professora e
pesquisadora de literatura Lígia Menna, docente da Universidade Presbiteriana
Mackenzie.
"Todo
escritor e toda escritora é fruto de sua circunstância. A fase pop,
principalmente, de Vinicius coincide com o desejo de criar uma mitologia
nacional para vender o Brasil no exterior. É a idade de ouro da bossa nova.
Naquele contexto, criar uma imagem da mulher ideal, na visão do turista,
influenciou a construção dos preconceitos que podem ser apontados em sua
obra", contextualiza à BBC News Brasil o escritor e professor Miguel
Sanches Neto, reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
"Ele
também viveu como um personagem, o do macho latino-americano, do malandro
carioca. São armadilhas do momento. Hoje também somos capturados por outras
armadilhas, que a posteridade denunciará."
Brasileiro
radicado em Portugal, o músico Luca Argel lançou em maio um projeto chamado
Meigo Energúmeno — Notas Para uma Leitura Antimachista de Vinicius de Moraes.
Ele,
que é mestre em literatura pela Universidade do Porto, propõe uma reflexão ao
legado do poeta brasileiro, com um disco que traz releituras de clássicos da
obra de Vinicius e um livro que problematiza, à luz atual, as vozes machistas
presentes no legado artístico deixado por ele.
"A
obra de Vinicius continua muito viva, pois ainda tem um enorme público leitor e
ouvinte. Da mesma forma, continuam vivos muitos dos estereótipos e 'receitas'
de mulher, e de homem, as fórmulas patriarcais das posições que cada um deve,
idealmente, ocupar numa relação e na sociedade. Existem muitos textos e letras
de Vinicius que reforçam esses lugares onde o machismo se manifesta, às vezes
de forma sutil, ou até meiga, romântica", explica Argel à BBC News Brasil.
"Do
tempo de Vinicius pra cá nós avançamos bastante em termos de igualdade e de
mais autonomia e voz para as mulheres, mas muita coisa continua enraizada. É um
trabalho que ainda demora algumas gerações para se consolidar", completa.
"Vinicius,
por continuar um autor relevante até hoje, e por ter falado muito sobre o amor
e sobre a mulher, pode nos ajudar a identificar exatamente onde certos
problemas persistem, e como identificá-los. Se estivesse vivo hoje, tenho
certeza que ele seria o primeiro a revisitar e renovar sua própria linguagem,
como tantas vezes ele fez ao longo da vida."
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Primeiros passos
Marcus
Vinícius da Cruz de Mello Moraes nasceu na Gávea, bairro no Rio, em 19 de
outubro de 1913, filho de um funcionário público, violonista e poeta e de uma
pianista amadora. Desde a infância, demonstrava talento para escrever versos.
Nos
anos 1930, estudou na então Faculdade de Direito da Rua do Catete, hoje parte
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na mesma época, chegou a
flertar com o movimento brasileiro nacionalista conhecido como integralismo,
sendo filiado à Ação Integralista Brasileira.
Conforme
descreve o site oficial mantido por seus herdeiros, em 1932 o poeta publicou
seu primeiro poema, nas páginas da revista A Ordem, editada pelo escritor,
professor e intelectual católico Alceu Amoroso Lima (1893-1983). Seu primeiro
livro, O Caminho para a Distância, sairia no ano seguinte.
Em 1936
foi contratado como censor cinematográfico do governo federal. Logo depois,
ganhou uma bolsa para estudar inglês em Oxford e lá passaria cerca de um ano.
No
retorno ao país, passou a atuar como crítico de cinema no jornal A Manhã. A
essa altura, Vinicius planejava se tornar diplomata. Em sua segunda tentativa,
foi aprovado no concurso seletivo do Ministério das Relações Exteriores e
ingressou no Itamaraty.
Ele
atuou em missões diplomáticas em Los Angeles, Paris e Montevidéu, mas em 1969
foi aposentado compulsoriamente pelo regime militar.
"Após
uma ordem direta do presidente Arthur da Costa e Silva, Vinicius é exonerado do
Itamaraty", registra o site oficial.
"Vinicius
foi um diplomata relapso, que tinha pouca presença burocrática onde serviu.
Estava totalmente dedicado à poesia, à música e depois ao cinema. Era uma
espécie de diplomata-troféu, que doava seu nome à carreira", comenta
Sanches Neto.
"Criou
muitos embaraços por isso. A ditadura militar aproveitou o perfil boêmio dele,
acrescentou a acusação de comunista, para exonerá-lo. Ele representava um
Brasil que o poder ditatorial não queria divulgar. Um Brasil dionisíaco,
enquanto os milicos, como toda ditadura, queriam um Brasil apolíneo."
Na
época, o que se ventilou foi que os agentes do regime viam em Vinicius alguém
que representava má influência moral e ideológica.
A essa
altura, o poeta era próximo dos intelectuais e artistas vistos como "de
esquerda" e, portanto, oposição à ditadura militar que governava o país.
Desde
1942, na verdade, Vinicius já vinha sendo influenciado por ideias comunistas e
tinha se afastado completamente do integralismo que iconizava a faceta fascista
do Brasil.
"Vale
a pena lembrarmos que Vinicius de Moraes era de esquerda, se posicionou contra
o regime militar e era bastante irreverente", ressalta Menna.
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Embaixador póstumo
Sanches
Neto escreveu o capítulo O Poeta da Proximidade no livro Embaixador do Brasil —
que o Ministério das Relações Exteriores lançou em 2010 buscando fazer justiça
à relevância do poetinha para o Itamaraty.
Naquele
ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promoveu Vinicius postumamente ao
cargo de embaixador, em um desagravo público simbólico frente ao ato da
ditadura que demoveu o diplomata do seu posto.
Então
ministro das Relações Exteriores, o diplomata Celso Amorim escreveu na
apresentação do livro que a aposentadoria prematura de Vinicius, então
primeiro-secretário da carreira diplomática brasileira, havia sido uma
"injustiça perpetrada pelo regime militar" como "parte do
movimento de 'caça às bruxas' no serviço público".
"O
secretário Vinicius — poeta e compositor de renome — não se encaixava
exatamente no modelo de funcionário público imaginado pelos donos do poder em
tempos de AI-5", anotou Amorim.
"Embora
fosse um diplomata competente, que cumpria suas funções no Itamaraty com
esmero, foi vítima da intolerância característica do regime."
Na
prática, a exclusão do corpo diplomático permitiu que Vinicius se dedicasse
mais intensamente à vida artística. É desse período suas parcerias mais
populares com Toquinho e suas turnês internacionais, incluindo shows em que
subia ao palco embriagado — algo que na época era visto com romantismo, mas que
hoje geraria críticas.
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Vida intensa
O
álcool era sua companhia constante. Atribui-se a ele a frase de que o uísque
seria o "cachorro engarrafado", aludindo à ideia de que a bebida
seria a melhor amiga do homem.
Quando
foi destituído da carreira, Vinicius já era artista consagrado. Publicava
livros de poemas com apelo popular, circulava entre os intelectuais e boêmios,
compunha canções de sucesso. E, como inveterado apaixonado pelas mulheres,
colecionava relacionamentos.
Ao
longo da vida, foi casado por nove vezes — sua última mulher, 38 anos mais
jovem, foi a jornalista Gilda Mattoso. Eles dividiram o mesmo teto nos dois
últimos anos da vida de Vinicius.
"Casou-se
nove vezes em busca de uma paixão eterna. A grande angústia é que ele sabia que
não ia encontrar", afirmou o músico Toquinho, seu parceiro, no
documentário Vinicius, dirigido por Miguel Faria.
O poeta
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) dizia que Vinicius era o único poeta
brasileiro que vivia como um poeta.
"Vinicius
se multiplicou por ele mesmo muitas vezes. Como diplomata, morou em vários
cantos do mundo, teve nove casamentos, quatro filhos, dezenas de parceiros
musicais, publicou 13 livros, gravou dezenas de discos, escreveu cerca de 400
poemas, sobreviveu a dois graves acidentes — um de avião, outro de carro — e a
duas guerras mundiais", sintetizou, em 2008, texto publicado pela revista
Bravo!, da editora Abril, em especial dedicado ao poetinha intitulado O Poeta
da Vida.
"Ao
mesmo tempo, foi um homem dividido por ele mesmo: viveu entre o terno e a
gravata da diplomacia e a roupa branca e os pés descalços da poesia; entre a
euforia da paixão e a tristeza profunda da separação; entre as festas do
Itamaraty e as 'comidinhas de bêbado' dos bares cariocas; entre o coro da
igreja e o batuque do candomblé; entre os amigos tradicionalistas e os irmãos
sambistas; entre a contemplação e a inquietação", prossegue o texto.
"Ninguém
chegou tão perto da vida cotidiana, do prosaico", disse o jornalista e
romancista brasileiro Antonio Callado (1917-1997) no documentário Vinicius.
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O Neruda brasileiro
Para
Sanches Neto, a totalidade da obra de Vinicius tem um peso irregular,
"porque foi um poeta que produziu muito".
"O
interessante nele é que começou com uma literatura velha, formalmente falando,
mística, influenciada pelos escritores católicos, e despaisada. Depois ele
descobre o Brasil, moderniza as formas de expressão e ganha um lugar entre os
grandes poetas modernos", diz.
"Mas
o seu desejo de chegar à multidão o leva à música, o que o torna uma figura
pop. Fez a carreira de jovem poeta velho para um velho poeta jovem. Rompeu o
circuito meramente intelectual. Sua melhor poesia traz a soma destas três
fases."
"Nas
artes, ele foi capaz de aliar a tradição à modernidade. Rompeu com padrões
pré-estabelecidos até então", enfatiza Menna.
"Vinicius
dessacralizou a literatura, assim como fizeram outros de sua geração."
A sua
face poética que, revisitada, parece soar mais problemática é justamente a que
escancarou seu aspecto devoto à mulher — mas uma mulher quase sempre submissa,
sensual e pronta para servir ao homem.
Suas
metáforas de amor submisso, que à primeira vista parecem românticas, hoje são
discutidas como reflexo de uma estrutura patriarcal e machista.
Menna
lembra que o poetinha era amigo do chileno Pablo Neruda (1904-1973) e,
"assim como ele, Vinicius desenvolveu uma poesia que podemos chamar de
sensual, do amor".
"Ele
atualizou o gênero do soneto, deu uma nova linguagem mais real, moderna e
cotidiana [ao formato]. Seus versos se tornaram populares em diferentes camadas
sociais", afirma a professora, citando como exemplos sentenças como
"de repente do riso fez-se o pranto", de Soneto da Separação', e de
"que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto
dure", de Soneto da Fidelidade.
Mas a
especialista frisa que outras fases do poetinha também são de "grande
contribuição para a literatura brasileira", como seus poemas de cunho
social.
Desta
lavra, são exemplos A Rosa de Hiroxima — que depois ganhou o mundo na voz de
Ney Matogrosso — e O Operário em Construção.
Ao
mesmo tempo, Menna lembra que os olhares atuais não devem "passar o
pano" para os aspectos problemáticos de sua obra.
"Infelizmente,
o machismo tem marcado muitas gerações há tempos. E nos anos 1950, 1960, e
1970, essas questões eram pouco discutidas", ressalta.
"Atualmente,
avançamos muito, a passos lentos, em diferentes pautas feministas. E precisamos
ficar atentos e atentas ao sexismo, à misoginia, à violência contra as mulheres
e a objetificação de seus corpos", argumenta.
E
resistiria ele à contemporânea cultura do cancelamento das redes sociais? No
caso de Vinicius de Moraes, isso significa revisitar sua obra com lentes
contemporâneas, sem anacronismos fáceis, mas também sem condescendência.
Reconhecer
que sua poesia ajudou a redefinir a sensibilidade brasileira — e que, ao mesmo
tempo, cristalizou imagens de mulher, de raça e de amor que hoje soam
ultrapassadas.
"Artista
com uma produção tão rica e intensa como a de Vinicius contribuíram
consideravelmente para as artes. Por outro lado, trazem, a partir do nosso
olhar contemporâneo, questões polêmicas que precisam ser discutidas sem
desmerecer seu grande valor", reflete Menna.
"Nunca
podemos jogar o bebê com a água do banho. A obra de Vinícius precisa ser lida,
apreciada e criticada a partir de nosso olhar contemporâneo, com consciência,
analisando e trazendo os problemas para o debate."
Talvez
o próprio verso mais citado de Vinicius nos ajude a compreender seu legado.
"O
amor é eterno enquanto dura" — porque também o encanto dos mitos culturais
não é eterno. Ele dura, resiste, se transforma, e, se for forte o suficiente,
sobrevive até à crítica. Como o poetinha.
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Cancelamento?
"Ele
podia ser cancelado? Acredito que sim. Não só ele como vários artistas de sua
geração", analisa Menna. "Mas como progressista que ele era, acredito
que hoje em dia ele próprio iria rever seu posicionamento, sua obra, se
adaptar."
Argel
argumenta ser possível problematizar a obra de Vinicius sem cair no
cancelamento.
"Eu
acho que a crítica quando é feita com muito rigor, dedicação e honestidade, é a
maior homenagem que se pode fazer a um artista. É a maior prova de que ele foi
levado a sério, lido e ouvido com toda a atenção", diz.
"A
crítica que faço à obra do Vinicius em nada diminui a importância dele, ninguém
teria esse poder. Eu, e acho que qualquer pessoa que leia o meu livro,
continuará admirando a enorme beleza das canções, dos poemas, das peças, das
crônicas... Mas vai ganhar uma ferramenta a mais de leitura, uma camada que
antes estava invisível, passa a ficar visível. É uma estratégia de crítica, na
minha opinião, bem mais rica e eficaz do que o cancelamento."
Viúva
de Vinicius, a jornalista Gilda Mattoso diz que no âmbito pessoal o poetinha
não era machista.
"Eu
não o definiria como machista porque ele tinha muito respeito pelas mulheres. E
admiração, mesmo", afirma ela à BBC News Brasil.
"Mas
ele era de 1913. A gente tem de considerar isso. Então dava a impressão de ser
machista. Mas no trato, não era não", complementa.
Mattoso
conta que suas lembranças do convívio com Vinicius são "as melhores
possíveis" de uma rotina "muito harmoniosa".
"Vinicius
levava a vida com bastante leveza e, enfim, o dia a dia era de um casal
normal", relata. "Ele sempre foi muito atencioso e delicado comigo e
com as pessoas que, de um modo geral, estavam em nossa casa, que frequentavam a
nossa casa."
A viúva
do poetinha comenta que, a despeito da diferença grande de idade, ela era
"mais mãe dele do que ele meu pai".
"Ele
era muito atirado, sem limites, sem freio. Eu era mais contida. Então eu era
quem botava um pouco de disciplina na parada", recorda.
Fonte:
BBC News Brasil

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