Vale
a pena ser o grande celeiro do mundo?
O
presidente Lula lançou nesta terça-feira o Plano Safra Empresarial 2025/2026,
destinando mais de meio trilhão de reais (R$ 516,2 bilhões) para o crédito
rural. Trata-se de um valor recorde, e, na cerimônia de lançamento, Lula se
vangloriou: “Nós batemos mais um recorde de valores disponíveis para esse Plano
Safra empresarial, mas queremos dar um passo além. Queremos elevar ao máximo os
ganhos que esses recursos podem gerar para os empresários, para a sociedade e,
sobretudo, para o nosso país. Nosso objetivo é consolidar o papel do Brasil
como celeiro do mundo”.
Para o
Plano Safra da agricultura familiar, os valores são mais modestos, mas não
insignificantes: R$ 89 bilhões em crédito para os produtores. As taxas de juros
para o custeio de produção de alimentos são de 3% para a maioria dos produtos e
2% para produtos da sociobiodiversidade, agroecologia e orgânicos.
Há
pontos bastante interessantes nos dois projetos. Como divulgado pela Agência
Brasil, “o plano estimula a produção sustentável, amplia o acesso ao crédito e
facilita a renegociação de dívidas, beneficiando tanto pequenos quanto grandes
produtores”. Também foram ampliadas medidas para o financiamento de insumos. O
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ressaltou que o Plano Safra integra uma
estratégia para fortalecer o campo, aliando justiça social, geração de empregos
e sustentabilidade. Também destacou que o agronegócio brasileiro vai ganhar com
a reforma tributária.
Tecnicamente,
este programa está em linha com o que estamos assistindo, que é um
aprimoramento gerencial do Estado brasileiro. Depois dos anos Temer-Bolsonaro,
isso não é pouca coisa. O país voltou a ter algum planejamento, a organizar
operações complexas por parte do Estado e a apontar caminhos mais sólidos para
algumas políticas de médio prazo.
Ou
seja, voltamos a ter governo. Isso é bom, mas resolve nosso problema? E,
retomando a frase de Lula: será que vale mesmo a pena ser celeiro do mundo?
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Vantagens e desvantagens de ser o celeiro do mundo
O
Brasil é um dos celeiros do mundo há cinco séculos. Desde 1532, quando Martim
Afonso de Souza plantou alguns pés de cana na Baixada Santista — perto do atual
campo do Jabaquara Futebol Clube —, exportar produtos agrícolas é o que importa
no lado de baixo do Equador das Américas. Cana, café, soja, algodão, carnes,
frutas: nunca deixamos de mandar comida para o mundo, mesmo que nem todos os
brasileiros se alimentem bem. Mais recentemente, demos até para exportar ovo.
Em
2024, as exportações do setor agropecuário atingiram US$ 164,4 bilhões, quase
metade das exportações brasileiras. A soja e seus derivados responderam por
32,8% do total exportado; as carnes, 15,9%; produtos da cana, 12%; produtos
florestais, 10,5%; e café, 7,5%. Só para a China, foram exportados quase US$ 50
bilhões em produtos, pouco mais de 30% do total.
Todo
esse mundo agrícola foi forjado com exploração intensiva e violenta de mão de
obra, primeiro escravizada e depois sub-remunerada — violências estas
acompanhadas da expulsão de indígenas e camponeses (descendentes de indígenas,
quilombolas e imigrantes pobres) de pequenos quinhões de terra.
Ser o
celeiro do mundo garante um certo lugar no mundo e certa autonomia dentro do
próprio território: as potências estrangeiras, aqui, raramente se metem
diretamente; por outro lado, sempre encontram sócios brasileiros para
representar, se preciso à mão de ferro, seus interesses. É nossa estranha
dependência…
Ser
celeiro do mundo não é exatamente a pior tarefa no concerto das nações —
especialmente para aqueles que mandam no país —, mas seguramente não é uma
estratégia de desenvolvimento sustentável e de promoção social — pelo
contrário.
O Plano
Real, nos anos 1990, foi, em grande medida, um grande acordo nacional que rifou
nossa indústria desatualizada tecnologicamente e fortaleceu dois setores da
economia: o agropecuário e o sistema financeiro. O país passou por várias
crises desde a adoção da nova moeda em 1994, mas esses dois setores viveram um
crescimento de fazer inveja aos chineses, enquanto a miséria crescia nas ruas.
Ou
seja, o Brasil deixou de ser um fazendão com boa produtividade para ser um
fazendão de ponta. Os ganhos de produtividade e os investimentos em tecnologia
para a grande produção agrícola foram imensos, enquanto retrocedíamos em outras
pontas da vida econômica e social.
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Um fazendão chamado Brasil
O setor
agrícola cresceu tanto e se modernizou tanto nas últimas décadas que pode até
escolher um novo nome: rebatizou-se de agronegócio, palavra mágica que escondeu
um novo processo de concentração de capitais no campo e sumiu com a categoria
pejorativa de latifúndio.
Governar
o Brasil é governar esse “fazendão”. O problema é que, num certo sentido, a
equação foi invertida: não é o Brasil que governa o fazendão; é o fazendão que
governa o Brasil.
E aí
temos o grande nó: como transformar esse imenso capital em motor do
desenvolvimento de todo o país? Como desmontar o pacto firmado nos anos FHC,
para que possamos viver décadas de desenvolvimento menos desigual? Como
transformar, ao fim e ao cabo, soja em produção industrial e, não menos
importante, mais igualdade social?
O
governo Lula já comemora uma certa inversão da curva. O índice de Gini (medida
estatística que varia de 0 a 1, onde 0 representa perfeita igualdade de renda e
1 representa a máxima desigualdade) fechou 2024 com o seu melhor resultado:
0,506. Além disso, em 2024, a renda domiciliar per capita no Brasil também
atingiu um recorde, chegando a R$ 2.020,00 por mês. O gráfico acima mostra um
consistente crescimento da renda média do brasileiro.
Esse
crescimento certamente está ancorado em microgestões em diferentes áreas, ações
que são fundamentais para recolocar o país numa rota de crescimento.
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O que fazer com o excedente do setor agrícola?
Falta,
ainda, no entanto, uma mudança estratégica, que seria a capacidade de
transformar o excedente produzido por esta agricultura pujante, da qual não
podemos abrir mão, no combustível para um desenvolvimento amplo da economia
brasileira.
A
divulgação do atual Plano Safra, nesse sentido, aponta positivamente para
algumas direções. Parece haver intenção do governo, por exemplo, de reconstruir
a indústria de fertilizantes, fundamentais para a produção agrícola
empresarial, hoje dependente de importações.
Não fez
parte do anúncio de ontem — e talvez por isso seja até mais importante, porque
mostra uma política combinada —, mas em abril, por exemplo, o Conselho de
Administração da Petrobras aprovou um acordo com a empresa Unigel para a
retomada da produção de fertilizantes em Camaçari (BA) e Laranjeiras (SE),
cujas atividades haviam sido paralisadas em 2023.
Este é
apenas um dos casos em que a produção agrícola pode servir de estímulo à
reindustrialização — para fortalecer o próprio setor agrícola.
A
questão, no entanto, precisa ir além: como constituir fundos e projetos que se
apropriem de parte da renda abundante das exportações e os apliquem na montagem
de novas cadeias produtivas — nas áreas de energia, medicina e tecnologia
digital, por exemplo. Como mobilizar os recursos excedentes para que aumentem
nossa independência econômica e política — por exemplo, na construção e gestão
de grandes servidores de dados que sirvam o Estado e empresas estratégicas.
Recursos que promovam uma reforma agrária nas cercanias das grandes cidades,
ampliando a produção de alimentos para reduzir os gastos do trabalhador com
comida.
Hoje,
por meio de isenções de impostos generosas e acesso a crédito diferenciado, o
setor agrícola suga recursos do resto do país. Nossa necessidade estratégica é
virar o jogo, sem deixar de produzir.
Ou
seja, ser celeiro do mundo pode ser bom, desde que, na fazenda, não haja só
celeiro.
Fonte:
Por Haroldo Ceravolo Sereza, em Opera Mundi

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