sexta-feira, 4 de julho de 2025

Tecnologias de guerra e exploração midiática da violência viram trampolim político no Brasil

Virou meme: prefeitos de Macaé, Nova Friburgo, João Pessoa e Belo Horizonte isolados em um bunker em Israel. A comitiva, composta por servidores e autoridades locais, clamava ao governo brasileiro ajuda para sair do local, em meio às agressões bélicas escaladas após ataques de Israel ao Irã. Nas redes sociais, uma pergunta predominou: o que eles foram fazer lá?

A indústria da guerra movimenta a economia de Israel – de acordo com seu Ministério das Finanças, o país gastou o equivalente a US$31 bilhões em 2024 para manter os ataques contra a população de Gaza e no Líbano. Os “gastos”, no entanto, são vistos como investimentos, afinal boa parte dos recursos é usado para produzir “tecnologias de morte” que são exportadas para outros países. Foi isso que a comitiva de políticos brasileiros foi aprender em Israel: quais as armas e os equipamentos de guerra mais modernos para serem usados em suas cidades.

Na bagagem, políticos brasileiros costumam trazer um discurso pró-guerra para justificar “soluções fáceis” para a segurança pública: mais armamento, mais tecnologia de vigilância, mais violações de direitos humanos. É quando Israel e Brasil se encontram. Nos trópicos, a famigerada “guerra às drogas” está no centro do debate político e no cotidiano da população brasileira. No Oriente Médio, estão as armas e tecnologias israelenses para serem escoadas ao redor do mundo. Como afirma a comunicadora popular Gizele Martins: “as mesmas armas que matam os palestinos são as armas que matam nas favelas cariocas”.

Portanto, a visita da comitiva brasileira a Israel vai muito além de um passeio promovido pelo lobby da indústria armamentista e revela algumas camadas da política de segurança pública nos municípios e estados brasileiros. Para se ter uma ideia, desde o final de 2023 até o primeiro semestre de 2025, estima-se que mais de 50 mil palestinos foram mortos durante ataques israelenses. Já no Brasil, de acordo com o Ministério da Justiça, 38 mil pessoas foram assassinadas em 2024, enquanto mais de 45 mil foram mortas em 2023. Se, no lado israelense, a guerra traz oportunidades de negócios e lucros milionários para a indústria armamentista, no Brasil a violência vira palco, audiência e voto para políticos, agentes de segurança pública, emissoras e comunicadores.

•        Quem está na mira?

No Brasil, não é difícil encontrar estados com contratos milionários com a indústria israelense para adquirir fuzis e metralhadoras. O armamento é usado, sobretudo, em bairros periféricos da cidade, marcados pela segregação racial. Nesses territórios, direitos constitucionais são violados e corpos são tombados sob a justificativa de um suposto “combate ao tráfico”. De acordo com o Relatório Dhesca: “Missão letalidade policial e impacto nas infâncias negras na Bahia e no Rio de Janeiro”, publicado em 2024, a atuação do Estado é mais um componente que gera violência nas comunidades, onde a liberdade de expressão, o direito à privacidade, a presunção de inocência e à vida são ignoradas pela atuação policial – crianças são revistadas de forma hostil, celulares desbloqueados e vasculhados, casas invadidas sem mandado e balas “perdidas” que sempre encontram os mesmos corpos. Segundo o relatório Dhesca, com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 6.393 pessoas foram vítimas da letalidade policial em 2023, sendo 70% crianças, adolescentes e jovens, e 82% eram negras.

Nos estados brasileiros, independente da coloração partidária dos governadores, o discurso e a prática se assemelham: defendem mais violência e uma política mais dura para – eles seguem prometendo – vencer a “guerra às drogas”. Sob essa narrativa, elevam-se os gastos com armamento e, cada vez mais, com as tecnologias de “segurança”. De Israel, por exemplo, vem drones e softwares invasores, de espionagem e monitoramento. No Brasil, as mais popularizadas são as tecnologias para reconhecimento facial.

De acordo com o projeto O Panóptico, desenvolvido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, atualmente o Brasil possui 408 projetos que utilizam técnicas de reconhecimento facial e mais de 87 milhões de pessoas “potencialmente vigiadas”. De acordo com o pesquisador Paulo Victor Melo, o uso desse monitoramento não passa de um “espetáculo punitivista” com viés racista que “tem como alvo corpos que sempre foram vigiados, segregados e criminalizados”.

Diversos estudos apontam que a tecnologia de reconhecimento facial gera altos custos para os estados e funcionam muito mais para os governadores se promoverem em cima de eventuais prisões do que, de fato, coibir a violência. Seu uso também reforça o modelo racista de segurança pública, visto que os alvos são predominantemente negros e diversos casos de erros e falhas do monitoramento atingiram justamente pessoas negras.

•        Violência como trampolim político

Se, por um lado, a narrativa da guerra às drogas é justificada para prefeitos e governadores elevarem gastos com armas e tecnologias de vigilância, por outro, aspirantes a cargos políticos também se valem desse discurso para se projetarem – muitas vezes de braços dados com emissoras de rádio e TV ou com as redes sociais geridas pelas big techs.

Uma pesquisa realizada pelo Intervozes identificou 91 candidatos “policialescos” disputando as eleições municipais em 2024. Dentre eles, 66 candidaturas eram ligadas a comunicadores de programas policialescos de rádio e TV e 25 “influenciadores” que utilizam, em seus canais e redes sociais, o discurso armamentista, pró-violação de direitos humanos e, não raro, a exploração de imagens com violência explícita. O levantamento aponta o uso dos meios de comunicação para promoção política a partir da pauta da segurança pública.

Um fenômeno apontado pela pesquisa do Intervozes é o uso de programas policialescos em rádio e TV como trampolim político. Programas locais, que seguem um padrão “Brasil Urgente” e “Balanço Geral” exploram a violência nas cidades a partir de um viés sensacionalista e com promoção pessoal dos seus apresentadores caricatos. Nas eleições – como indica a pesquisa – eles se candidatam e tentam transformar a audiência em votos. É o caso de Jorge Araújo (PP), vereador mais votado de Salvador em 2024, com 36.065 votos. Ou, quando não se candidatam, apoiam: em Vitória (ES), por exemplo, o prefeito eleito foi Lorenzo Pazolini (Podemos), que contou com o apoio de Amaro Neto (Republicanos), deputado e apresentador do Balanço Geral (TV Vitória/Record).

Na internet, também foi observado o crescimento de um discurso que se assemelha aos tradicionais programas policialescos da TV. Muitos desses “influenciadores” aproveitaram sua visibilidade nas redes para disputar as eleições. Em 2024, o quarto vereador mais votado de São Paulo foi o Sargento Nunes (PP) que utiliza o Instagram e participações em podcasts para difundir um discurso pró-violência policial. Já em Guarulhos (SP), o Delegado Gustavo Mesquita (Republicanos) se tornou o vereador mais bem votado da história da cidade – o “influencer” utiliza o Instagram e o TikTok para simular operações policiais e se apresenta favorável à “família”, “porte de arma para o cidadão de bem” e contra o “pancadão” e a “linguagem neutra e a ideologia de gênero”.

A pesquisa realizada pelo Intervozes também identificou que boa parte desses influenciadores são agentes de segurança e produzem conteúdos enquanto estão em serviço, numa estética similar à cobertura de operações policiais feitas pelos programas de TV. Da mesma forma que a violência é utilizada nas redes para caçar cliques e aumentar o alcance das publicações, na radiodifusão a pauta da segurança pública com a “estética policialesca” faz aumentar a audiência e reforçar um discurso único que aponta a violência policial como solução para os problemas na segurança pública, incluindo crimes e violações de direitos cometidos pelos próprios agentes.

•        E a Justiça?

Nos programas policialescos da televisão, a narrativa pró-violência também converge com discursos de ódio. Um caso emblemático é o do apresentador Sikêra Jr., alvo de diversas denúncias por promover ataques LGBTfóbicos e contra mulheres. Recentemente, Sikêra Jr. e a Rede TV foram condenados pelo Tribunal de Justiça do Amazonas pelas falas do apresentador durante o programa Alerta Nacional, em 2021: classificou gays como “raça desgraçada” e questionou “já pensou ter um filho viado e não poder matar?”.

No entanto, de acordo com a jornalista Mabel Dias, há uma morosidade do sistema judiciário para punir essas violações cometidas em programas policialescos. No artigo “Caso Sikêra Jr.: até quando a Justiça ficará de olhos vendados para as violações na mídia?”, a jornalista cita outros processos e ataques envolvendo o apresentador, incluindo uma denúncia feita junto ao Ministério Público da Paraíba por conta de falas de Sikêra Jr. de caráter misógino e racista.

Segundo Mabel, há uma lentidão para o julgamento desses casos e, quando há uma resposta do judiciário, esta costuma ser tardia e não repara os danos imediatos causados pelos programas. A jornalista também acusa o Ministério das Comunicações de ser omisso diante desses casos, “por não cumprir as suas obrigações enquanto ente fiscalizatório, regulatório e sancionador sobre a empresa de radiodifusão que atua por concessão pública”.

*Perseguição a jornalistas

Se, por um lado, os órgãos de Justiça são criticados pela ineficiência para impedir as diárias violações cometidas pelos programas policialescos, por outro, entidades da sociedade civil denunciam o uso do aparelho judiciário para perseguir e silenciar jornalistas. Segundo o Monitor de Assédio Judicial Contra Jornalistas, mantido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), entre 2008 e 2024 foram identificados 84 casos de assédio judicial, somando 654 processos.

Em maio de 2024, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a prática de “assédio judicial” como cerceador da liberdade de expressão, incluindo a estratégia de ajuizamento de diversas ações, sobre o mesmo caso, em comarcas diferentes, com o evidente intuito de “constranger o jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa” e indicou medidas para coibir essa prática, como a responsabilização civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa apenas em “casos inequívocos de dolo ou culpa grave” e a possibilidade de o jornalista denunciado requerer a reunião de todas as ações em sua comarca de domicílio.

Um caso emblemático é o do escritor João Paulo Cuenca. Em 2020, ele usou o Twitter para criticar Bolsonaro e pastores da Igreja Universal do Reino de Deus. Em uma ação coordenada, pastores da igreja, de diferentes estados, ingressaram com ações contra Cuenca – ao todo foram 144 processos e, até 2023, o escritor havia vencido 126. Em 2025, o Ministério Público Federal processou a Igreja Universal por assédio judicial contra Cuenca. Algo semelhante ocorreu com a repórter Elvira Lobato que, após publicar na Folha de São Paulo uma reportagem sobre a Universal, foi alvo de centenas de processos, em diferentes regiões do país.

Outro caso emblemático que se arrasta é o que envolve o jornalista Cristian Góes, condenado pelo Tribunal de Justiça de Sergipe pela publicação da crônica Eu, o coronel em mim – mesmo sem citar nomes, o texto incomodou o desembargador Edson Ulisses, que lhe condenou a mais de 7 meses de prisão. Além da condenação, o jornalista enfrentou prejuízos financeiros por conta do processo e teve a carreira profissional prejudicada. Desde 2015, o Intervozes e a Artigo 19 denunciam o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que só foi reconhecido formalmente pelo órgão em 2023. No ano seguinte, as organizações apresentaram os argumentos de defesa do jornalista e agora aguardam uma definição.

Além dos casos de “assédio judicial”, outras violações costumam atingir, sobretudo, jornalistas mulheres – alvos de assédio moral e sexual, violências de gênero e ataques misóginos. A pesquisa “Meios sem Violência: a urgência de políticas de abordagem e prevenção”, realizada pela Asociación Civil Comunicación para la Igualdad, da Argentina, investigou a questão em 14 países da América Latina e do Caribe, incluindo o Brasil. O estudo aponta que 75% dos jornalistas entrevistados conhecem pelo menos um caso de violência de gênero contra colegas ou que já tenham sofrido.

No artigo “Informar sob ameaça: os perigos de ser jornalista na América Latina”, a jornalista Maryellen Crisóstomo destacou os recortes de gênero e raça nos episódios de perseguição a jornalistas. A comunicadora também trouxe iniciativas da sociedade civil para resistir a esse cenário, a exemplo da Rede de Jornalistas Pretos (Rede JP), que vem estabelecendo parcerias para ações de proteção jurídica às jornalistas negras. Outra frente atuante é o Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores, instituído pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Quem também monitora os casos de violência contra jornalistas é a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) que, em 2024, registrou 144 casos de agressões a profissionais de imprensa. De acordo com Samira de Castro, presidente da Fenaj, em entrevista para a Agência Brasil, os números são altos e cresceram a partir de 2019 quando, segundo ela, a violência contra jornalistas foi “institucionalizada durante aqueles quatro anos” de governo Jair Bolsonaro, ao “proferir discursos que desacreditavam jornalistas e atacar veículos de imprensa”.

Os dados divulgados pela Fenaj constam no Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil 2024. O documento também cita o contexto global, chamando atenção para a morte de 122 jornalistas, a maioria palestinos em Gaza. Portanto, as armas de guerra que Israel exporta para o Brasil alimentar a sua “guerra às drogas” também são usadas para assassinar jornalistas na Palestina.

Em terras brasileiras, o armamentismo converge com o discurso de apresentadores e influenciadores policialescos que lucram com a audiência e usam suas redes sociais, rádio e TV como trampolim político. Em terras palestinas, as armas de Israel seguem dizimando a população local e o alinhamento midiático em muitos países e a conivência das big techs impõem uma narrativa que usa e abusa da desinformação para justificar o genocídio. Sem jornalistas vivos, sem liberdade e sem segurança, fica ainda mais difícil para os palestinos disputarem a “guerra de narrativas”. Sem direitos humanos e constitucionais respeitados, segue sendo um desafio para os jovens negros das periferias sobreviverem, enquanto seus corpos e suas faces seguem na mira das armas e das câmeras.

 

Fonte: Por Alex Pegna Hercog, no Le Monde

 

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