Tecnologias
de guerra e exploração midiática da violência viram trampolim político no
Brasil
Virou
meme: prefeitos de Macaé, Nova Friburgo, João Pessoa e Belo Horizonte isolados
em um bunker em Israel. A comitiva, composta por servidores e autoridades
locais, clamava ao governo brasileiro ajuda para sair do local, em meio às
agressões bélicas escaladas após ataques de Israel ao Irã. Nas redes sociais,
uma pergunta predominou: o que eles foram fazer lá?
A
indústria da guerra movimenta a economia de Israel – de acordo com seu
Ministério das Finanças, o país gastou o equivalente a US$31 bilhões em 2024
para manter os ataques contra a população de Gaza e no Líbano. Os “gastos”, no
entanto, são vistos como investimentos, afinal boa parte dos recursos é usado
para produzir “tecnologias de morte” que são exportadas para outros países. Foi
isso que a comitiva de políticos brasileiros foi aprender em Israel: quais as
armas e os equipamentos de guerra mais modernos para serem usados em suas
cidades.
Na
bagagem, políticos brasileiros costumam trazer um discurso pró-guerra para
justificar “soluções fáceis” para a segurança pública: mais armamento, mais
tecnologia de vigilância, mais violações de direitos humanos. É quando Israel e
Brasil se encontram. Nos trópicos, a famigerada “guerra às drogas” está no
centro do debate político e no cotidiano da população brasileira. No Oriente
Médio, estão as armas e tecnologias israelenses para serem escoadas ao redor do
mundo. Como afirma a comunicadora popular Gizele Martins: “as mesmas armas que
matam os palestinos são as armas que matam nas favelas cariocas”.
Portanto,
a visita da comitiva brasileira a Israel vai muito além de um passeio promovido
pelo lobby da indústria armamentista e revela algumas camadas da política de
segurança pública nos municípios e estados brasileiros. Para se ter uma ideia,
desde o final de 2023 até o primeiro semestre de 2025, estima-se que mais de 50
mil palestinos foram mortos durante ataques israelenses. Já no Brasil, de
acordo com o Ministério da Justiça, 38 mil pessoas foram assassinadas em 2024,
enquanto mais de 45 mil foram mortas em 2023. Se, no lado israelense, a guerra
traz oportunidades de negócios e lucros milionários para a indústria
armamentista, no Brasil a violência vira palco, audiência e voto para
políticos, agentes de segurança pública, emissoras e comunicadores.
• Quem está na mira?
No
Brasil, não é difícil encontrar estados com contratos milionários com a
indústria israelense para adquirir fuzis e metralhadoras. O armamento é usado,
sobretudo, em bairros periféricos da cidade, marcados pela segregação racial.
Nesses territórios, direitos constitucionais são violados e corpos são tombados
sob a justificativa de um suposto “combate ao tráfico”. De acordo com o
Relatório Dhesca: “Missão letalidade policial e impacto nas infâncias negras na
Bahia e no Rio de Janeiro”, publicado em 2024, a atuação do Estado é mais um
componente que gera violência nas comunidades, onde a liberdade de expressão, o
direito à privacidade, a presunção de inocência e à vida são ignoradas pela
atuação policial – crianças são revistadas de forma hostil, celulares
desbloqueados e vasculhados, casas invadidas sem mandado e balas “perdidas” que
sempre encontram os mesmos corpos. Segundo o relatório Dhesca, com dados do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 6.393 pessoas foram vítimas da
letalidade policial em 2023, sendo 70% crianças, adolescentes e jovens, e 82%
eram negras.
Nos
estados brasileiros, independente da coloração partidária dos governadores, o
discurso e a prática se assemelham: defendem mais violência e uma política mais
dura para – eles seguem prometendo – vencer a “guerra às drogas”. Sob essa
narrativa, elevam-se os gastos com armamento e, cada vez mais, com as
tecnologias de “segurança”. De Israel, por exemplo, vem drones e softwares
invasores, de espionagem e monitoramento. No Brasil, as mais popularizadas são
as tecnologias para reconhecimento facial.
De
acordo com o projeto O Panóptico, desenvolvido pelo Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania, atualmente o Brasil possui 408 projetos que utilizam
técnicas de reconhecimento facial e mais de 87 milhões de pessoas
“potencialmente vigiadas”. De acordo com o pesquisador Paulo Victor Melo, o uso
desse monitoramento não passa de um “espetáculo punitivista” com viés racista
que “tem como alvo corpos que sempre foram vigiados, segregados e
criminalizados”.
Diversos
estudos apontam que a tecnologia de reconhecimento facial gera altos custos
para os estados e funcionam muito mais para os governadores se promoverem em
cima de eventuais prisões do que, de fato, coibir a violência. Seu uso também
reforça o modelo racista de segurança pública, visto que os alvos são
predominantemente negros e diversos casos de erros e falhas do monitoramento
atingiram justamente pessoas negras.
• Violência como trampolim político
Se, por
um lado, a narrativa da guerra às drogas é justificada para prefeitos e
governadores elevarem gastos com armas e tecnologias de vigilância, por outro,
aspirantes a cargos políticos também se valem desse discurso para se projetarem
– muitas vezes de braços dados com emissoras de rádio e TV ou com as redes
sociais geridas pelas big techs.
Uma
pesquisa realizada pelo Intervozes identificou 91 candidatos “policialescos”
disputando as eleições municipais em 2024. Dentre eles, 66 candidaturas eram
ligadas a comunicadores de programas policialescos de rádio e TV e 25
“influenciadores” que utilizam, em seus canais e redes sociais, o discurso
armamentista, pró-violação de direitos humanos e, não raro, a exploração de
imagens com violência explícita. O levantamento aponta o uso dos meios de
comunicação para promoção política a partir da pauta da segurança pública.
Um
fenômeno apontado pela pesquisa do Intervozes é o uso de programas
policialescos em rádio e TV como trampolim político. Programas locais, que
seguem um padrão “Brasil Urgente” e “Balanço Geral” exploram a violência nas
cidades a partir de um viés sensacionalista e com promoção pessoal dos seus
apresentadores caricatos. Nas eleições – como indica a pesquisa – eles se
candidatam e tentam transformar a audiência em votos. É o caso de Jorge Araújo
(PP), vereador mais votado de Salvador em 2024, com 36.065 votos. Ou, quando
não se candidatam, apoiam: em Vitória (ES), por exemplo, o prefeito eleito foi
Lorenzo Pazolini (Podemos), que contou com o apoio de Amaro Neto
(Republicanos), deputado e apresentador do Balanço Geral (TV Vitória/Record).
Na
internet, também foi observado o crescimento de um discurso que se assemelha
aos tradicionais programas policialescos da TV. Muitos desses “influenciadores”
aproveitaram sua visibilidade nas redes para disputar as eleições. Em 2024, o
quarto vereador mais votado de São Paulo foi o Sargento Nunes (PP) que utiliza
o Instagram e participações em podcasts para difundir um discurso pró-violência
policial. Já em Guarulhos (SP), o Delegado Gustavo Mesquita (Republicanos) se
tornou o vereador mais bem votado da história da cidade – o “influencer”
utiliza o Instagram e o TikTok para simular operações policiais e se apresenta
favorável à “família”, “porte de arma para o cidadão de bem” e contra o
“pancadão” e a “linguagem neutra e a ideologia de gênero”.
A
pesquisa realizada pelo Intervozes também identificou que boa parte desses
influenciadores são agentes de segurança e produzem conteúdos enquanto estão em
serviço, numa estética similar à cobertura de operações policiais feitas pelos
programas de TV. Da mesma forma que a violência é utilizada nas redes para
caçar cliques e aumentar o alcance das publicações, na radiodifusão a pauta da
segurança pública com a “estética policialesca” faz aumentar a audiência e
reforçar um discurso único que aponta a violência policial como solução para os
problemas na segurança pública, incluindo crimes e violações de direitos
cometidos pelos próprios agentes.
• E a Justiça?
Nos
programas policialescos da televisão, a narrativa pró-violência também converge
com discursos de ódio. Um caso emblemático é o do apresentador Sikêra Jr., alvo
de diversas denúncias por promover ataques LGBTfóbicos e contra mulheres.
Recentemente, Sikêra Jr. e a Rede TV foram condenados pelo Tribunal de Justiça
do Amazonas pelas falas do apresentador durante o programa Alerta Nacional, em
2021: classificou gays como “raça desgraçada” e questionou “já pensou ter um
filho viado e não poder matar?”.
No
entanto, de acordo com a jornalista Mabel Dias, há uma morosidade do sistema
judiciário para punir essas violações cometidas em programas policialescos. No
artigo “Caso Sikêra Jr.: até quando a Justiça ficará de olhos vendados para as
violações na mídia?”, a jornalista cita outros processos e ataques envolvendo o
apresentador, incluindo uma denúncia feita junto ao Ministério Público da
Paraíba por conta de falas de Sikêra Jr. de caráter misógino e racista.
Segundo
Mabel, há uma lentidão para o julgamento desses casos e, quando há uma resposta
do judiciário, esta costuma ser tardia e não repara os danos imediatos causados
pelos programas. A jornalista também acusa o Ministério das Comunicações de ser
omisso diante desses casos, “por não cumprir as suas obrigações enquanto ente
fiscalizatório, regulatório e sancionador sobre a empresa de radiodifusão que
atua por concessão pública”.
*Perseguição
a jornalistas
Se, por
um lado, os órgãos de Justiça são criticados pela ineficiência para impedir as
diárias violações cometidas pelos programas policialescos, por outro, entidades
da sociedade civil denunciam o uso do aparelho judiciário para perseguir e
silenciar jornalistas. Segundo o Monitor de Assédio Judicial Contra
Jornalistas, mantido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo
(Abraji), entre 2008 e 2024 foram identificados 84 casos de assédio judicial,
somando 654 processos.
Em maio
de 2024, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a prática de “assédio judicial”
como cerceador da liberdade de expressão, incluindo a estratégia de ajuizamento
de diversas ações, sobre o mesmo caso, em comarcas diferentes, com o evidente
intuito de “constranger o jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua
defesa ou torná-la excessivamente onerosa” e indicou medidas para coibir essa
prática, como a responsabilização civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa
apenas em “casos inequívocos de dolo ou culpa grave” e a possibilidade de o
jornalista denunciado requerer a reunião de todas as ações em sua comarca de
domicílio.
Um caso
emblemático é o do escritor João Paulo Cuenca. Em 2020, ele usou o Twitter para
criticar Bolsonaro e pastores da Igreja Universal do Reino de Deus. Em uma ação
coordenada, pastores da igreja, de diferentes estados, ingressaram com ações
contra Cuenca – ao todo foram 144 processos e, até 2023, o escritor havia
vencido 126. Em 2025, o Ministério Público Federal processou a Igreja Universal
por assédio judicial contra Cuenca. Algo semelhante ocorreu com a repórter
Elvira Lobato que, após publicar na Folha de São Paulo uma reportagem sobre a
Universal, foi alvo de centenas de processos, em diferentes regiões do país.
Outro
caso emblemático que se arrasta é o que envolve o jornalista Cristian Góes,
condenado pelo Tribunal de Justiça de Sergipe pela publicação da crônica Eu, o
coronel em mim – mesmo sem citar nomes, o texto incomodou o desembargador Edson
Ulisses, que lhe condenou a mais de 7 meses de prisão. Além da condenação, o
jornalista enfrentou prejuízos financeiros por conta do processo e teve a
carreira profissional prejudicada. Desde 2015, o Intervozes e a Artigo 19
denunciam o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que só foi
reconhecido formalmente pelo órgão em 2023. No ano seguinte, as organizações
apresentaram os argumentos de defesa do jornalista e agora aguardam uma
definição.
Além
dos casos de “assédio judicial”, outras violações costumam atingir, sobretudo,
jornalistas mulheres – alvos de assédio moral e sexual, violências de gênero e
ataques misóginos. A pesquisa “Meios sem Violência: a urgência de políticas de
abordagem e prevenção”, realizada pela Asociación Civil Comunicación para la
Igualdad, da Argentina, investigou a questão em 14 países da América Latina e
do Caribe, incluindo o Brasil. O estudo aponta que 75% dos jornalistas
entrevistados conhecem pelo menos um caso de violência de gênero contra colegas
ou que já tenham sofrido.
No
artigo “Informar sob ameaça: os perigos de ser jornalista na América Latina”, a
jornalista Maryellen Crisóstomo destacou os recortes de gênero e raça nos
episódios de perseguição a jornalistas. A comunicadora também trouxe
iniciativas da sociedade civil para resistir a esse cenário, a exemplo da Rede
de Jornalistas Pretos (Rede JP), que vem estabelecendo parcerias para ações de
proteção jurídica às jornalistas negras. Outra frente atuante é o Observatório
da Violência contra Jornalistas e Comunicadores, instituído pelo Ministério da
Justiça e Segurança Pública.
Quem
também monitora os casos de violência contra jornalistas é a Federação Nacional
dos Jornalistas (Fenaj) que, em 2024, registrou 144 casos de agressões a
profissionais de imprensa. De acordo com Samira de Castro, presidente da Fenaj,
em entrevista para a Agência Brasil, os números são altos e cresceram a partir
de 2019 quando, segundo ela, a violência contra jornalistas foi
“institucionalizada durante aqueles quatro anos” de governo Jair Bolsonaro, ao
“proferir discursos que desacreditavam jornalistas e atacar veículos de
imprensa”.
Os
dados divulgados pela Fenaj constam no Relatório da Violência contra
Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil 2024. O documento também cita o
contexto global, chamando atenção para a morte de 122 jornalistas, a maioria
palestinos em Gaza. Portanto, as armas de guerra que Israel exporta para o
Brasil alimentar a sua “guerra às drogas” também são usadas para assassinar
jornalistas na Palestina.
Em
terras brasileiras, o armamentismo converge com o discurso de apresentadores e
influenciadores policialescos que lucram com a audiência e usam suas redes
sociais, rádio e TV como trampolim político. Em terras palestinas, as armas de
Israel seguem dizimando a população local e o alinhamento midiático em muitos
países e a conivência das big techs impõem uma narrativa que usa e abusa da
desinformação para justificar o genocídio. Sem jornalistas vivos, sem liberdade
e sem segurança, fica ainda mais difícil para os palestinos disputarem a
“guerra de narrativas”. Sem direitos humanos e constitucionais respeitados,
segue sendo um desafio para os jovens negros das periferias sobreviverem,
enquanto seus corpos e suas faces seguem na mira das armas e das câmeras.
Fonte:
Por Alex Pegna Hercog, no Le Monde

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