Seriam
irrelevantes os leitores digitais?
A
pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2024, além de mostrar que há mais não
leitores (53%) do que leitores (47%) em nosso país, também aponta um aumento do
uso da internet no tempo livre dos brasileiros, superior a 80%. Diante dessa
transição para o digital, uma migração que já aconteceu na música e no cinema
há mais tempo, não seria o momento de nos perguntarmos também sobre como as
pessoas estão lendo no mundo digital? Quando fazemos as perguntas atuais (sem
dúvida necessárias e que precisam continuar a ser feitas), estamos nos
referindo à diminuição de leitores ou de leitores de livros? Para fazer um
paralelo com a música ou o cinema, isso não seria a mesma coisa que falarmos
sobre a diminuição de consumidores de discos ou CDs, ou do público que consome
cinema via DVD?
A
migração de leitores dos livros para o ambiente digital deveria nos fazer
perguntar sobre que tipo de leitura se pratica nas redes sociais e ambientes
digitais diversos. Novas perguntas são necessárias para a leitura em tempos de
profundas mudanças tecnológicas e de impactos nas formas (incluindo a
forma-livro). Afinal seria preconceito presumir, sem evidências, que se trata
apenas de uma leitura funcional ou passiva a que ocorre nesses ambientes.
Apesar do já medido declínio de leitores de livros, observa-se um crescente
número de clubes de leitura online (de livros físicos e digitais), além de
plataformas de compartilhamento de escritas e de leituras (no Brasil, Skoob,
Skeelo e a globalmente utilizada Whatpad). Pode haver nesses ambientes,
precisamos perguntar, também uma leitura cultural, crítica e ativa?
Questões
como essas estão presentes em pesquisas realizadas nos Estados Unidos1, Coreia
do Sul2 e China3. Nessas pesquisas, além de se perguntar sobre a leitura de
livros, tende-se a aprofundar questionários sobre novos formatos e tipos de
leitura, incluindo Webtoons (quadrinhos digitais com rolagem vertical),
Webnovels (Romances seriados publicados online, em capítulos diários/semanais),
Light Novels (mistura de texto e ilustrações), em plataformas como Webnovel
(China), KakaoPage (Coreia), Wattpad (global). Além desses formatos, os estudos
também mapeiam o crescente interesse dos leitores por audiobooks e podcasts
narrativos (histórias originais em formato de áudio-série), Visual Novels,
narrativas interativas com ramificações (escolhas do leitor alteram a
história), livros-jogo: que combinam texto com mecânicas de RPG, interativas e
atraentes para os nativos digitais. Esses formatos também estão sendo lidos no
Brasil?
No
artigo “A digitalização da leitura e o consumo de informações”, publicado no
Jornal da USP em 11 de dezembro de 2024, Leonardo Assis, pesquisador do
Laboratório de Cultura, Informação e Sociedade da Escola de Comunicações e
Artes da USP, defende a necessidade de a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil
não limitar a definição de leitura e de leitor ao objeto livro, o que, segundo
ele, “pode restringir a análise de um fenômeno muito mais amplo”.
“Definir
atualmente o que é um leitor é algo singular e desafiador. Essa questão tem
sido impactada por mudanças tecnológicas e culturais desde a popularização de
meios de comunicação como o rádio, o cinema e a televisão. Hoje, a internet e
as ferramentas de inteligência artificial tornam essa definição ainda mais
difusa e complexa. A pesquisa adota como parâmetro o acesso ao livro, seja ele
físico ou digital, mas será que isso basta para capturar a realidade da leitura
no contexto atual?”
Conforme
o autor, hoje o consumo de informação acontece em múltiplos formatos e
ambientes, com muitos lendo artigos em blogs, notícias em aplicativos,
postagens em redes sociais e mensagens em plataformas digitais.
Essas
formas de leitura, embora não estejam necessariamente vinculadas ao livro, têm
um papel significativo na maneira como nos conectamos com o mundo e adquirimos
conhecimento. Talvez seja o momento de ampliar os horizontes e reconsiderar
como definimos a prática da leitura.
A
desmaterialização dos suportes da arte é um dado importante do nosso tempo. O
vinil, o CD, o DVD deram lugar ao streaming, sem que possamos dizer que as
pessoas passaram a ouvir menos música hoje do que há duas décadas. As lojas de
disco praticamente não existem mais, assim como as locadoras de DVD e parece
evidente que essas mudanças tecnológicas também pressionam o número e a
distribuição territorial de nossas livrarias. Neste sentido, falar sobre a
diminuição de leitores de livros talvez seja a mesma coisa que falarmos sobre a
diminuição de consumidores de discos ou CDs, ou do público que consome cinema
via DVDs.
Diferentemente
do diagnóstico de Walter Benjamim (1892-1940), em seu clássico artigo “A obra
de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1936), o que temos hoje é a
obra de arte na época de sua infinita reprodutibilidade técnica. A escrita é
uma tecnologia de gravação da memória externa humana. Ela está presente desde
uma tábua de argila suméria até um tablet ou um celular, passando por tantos
outros suportes físicos, pedras, couros, papel, madeira etc. Todos esses
suportes carregam ou carregaram a escrita e a literatura e possibilitam a
leitura. E o suporte digital?
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O triunfo da informalidade
A
professora Eliana Yunes faz uma diferenciação entre leitura solidária e leitura
solitária, que interessa muito neste momento único da história da tecnologia. A
leitura solidária precede a escrita. É a leitura ao redor do fogo, circular,
coletiva. A leitura solitária, dos livros, é produto da invenção da imprensa e
que teve seu predomínio por cerca de 500 anos. Com o digital, voltamos a ver o
crescimento de uma leitura solidária, ou seja, articulada com outras leituras,
coletiva e em rede, pressionando não apenas a ideia de leitura solitária, como
também a de livro e a de autoria.
Junto
com isso, há o triunfo da informalidade, ou seja, a dissolução de fronteiras e
das legitimações do mundo analógico-formal-industrial. O símbolo máximo dessa
dissolução é a convergência tecnológica na figura de um smartphone, em que o
toca-discos, a máquina fotográfica, a câmera de cinema e o livro estão em um
produto (suporte) só, de base digital. Com essa convergência avassaladora, tudo
o que é formal se desmancha no ar do digital – para o bem e para o mal. O
grande risco que corremos é a hiperinformalidade destruir as legitimações e com
isso o lugar do livro e da educação. Até a democracia corre o risco de sucumbir
à ação direta e à hiperinformalidade.
Vivemos
um momento em que a última geração dos nascidos no mundo analógico, dos livros,
se encontra com as primeiras gerações dos nascidos no ambiente digital, os
nativos digitais. A próxima geração já
não terá mais contato com os nascidos na era tipográfica. Daí a enorme
responsabilidade de se passar a essas novas gerações uma defesa do livro, este
que é o lugar dos longos encadeamentos lógicos e estéticos, fundamental numa
época de fragmentação e de desatenção. Essa defesa, no entanto, não pode ser
binária ou disjuntiva, mas sim conectiva, em relação com essa nova realidade.
Precisamos entender melhor o mundo digital, observar não apenas suas
potencialidades sinistras (em 1924, I.A. Richards, em “Princípios de Crítica
Literária”, dizia: “não sondamos ainda as potencialidades sinistras do cinema e
do autofalante”, preocupado com os impactos das novas tecnologias de sua época
na literatura), mas também suas possibilidades conectivas e seus impactos na
dimensão cidadã, nas novas expressões simbólicas e na diversidade estética.
Para
essa defesa, precisamos também colocar em perspectiva a própria ideia de livro,
não apenas de maneira romântica ou idealizada, mas considerando o que ele é na
realidade, como produto cultural. Necessitamos pensá-lo em suas dimensões
econômica, cidadã e simbólica (estética, criativa). Também devemos colocar em
perspectiva o tipo de leitura que se pratica tanto em relação aos livros quanto
no mundo digital. Para isso, é necessário propor novas perguntas, ampliando o
universo que já conhecemos para dentro dessa realidade cultural, econômica e
tecnológica que se impõe.
O
digital trouxe um ambiente singular ao triângulo do sistema literário
“autor-obra-público”, de Antonio Candido. Ele criou um entorno não linear,
ponto a ponto, descentralizado, fluido e uma nova economia, compartilhada,
digital e colaborativa, que afeta os três elementos do sistema. Como não
poderia deixar de ser, a tríade do sistema de Candido traz implícito um
intermediário, o editor, que faz materialmente a obra (livro) e se encarrega de
oferecê-la ao público leitor. Por ser o dono do meio de reprodução, é ele o elo
mais forte da cadeia da economia do livro e muitas vezes condiciona os outros
dois elementos (o autor que será publicado e o tipo de obra oferecida para a
leitura do público). No entanto, se na era industrial esse intermediário era o
único que garantia a produção do livro e sua distribuição ao público, hoje, com
a obra de arte na época de sua infinita reprodutibilidade técnica, ele já não é
mais elemento incontornável para que o público tenha acesso à obra literária,
ou mesmo a produza. No mundo digital, em certos casos, até nem mais existe.
Isso sem entrar no tema da Inteligência Artificial (IA), que nos coloca outros
elementos ainda mais complexos em termos de produção textual, distribuição e
leitura.
Poderíamos,
por exemplo, perguntar sobre os impactos dessa desmaterialização nos três
grandes campos que formam a base de uma política cultural contemporânea: a
economia (o livro e sua indústria); a cidadania (a leitura) e o valor
simbólico, estético, criativo (a literatura). Se a leitura e a literatura
existem antes do livro e independem do seu suporte, a atual desmaterialização
do suporte livro impacta negativamente a cidadania e o estético? Traz menos
diversidade? Impacta a qual ponto na cidadania? E os livros físicos? Seriam
eles os únicos guardiões da diversidade e da perspectiva cidadã? Os livros não
vão morrer, certamente. Continuarão, ao lado das novas tecnologias, mas que
significado terão para o mundo em que entramos com tanta velocidade?
De
acordo com o que vemos nas edições da Retratos da Leitura no Brasil, hoje, do
ponto de vista de um conteúdo crítico, cidadão ou estético-criativo, não parece
haver superioridade no que está sendo lido nos livros na comparação com o
universo digital. Basta ver em todas as edições da pesquisa a lista dos títulos
que os brasileiros dizem ter consumido. Muito dificilmente a última lista, com
livros de autoajuda, entretenimento, liderança e mesmo religiosos é superior
qualitativamente em comparação com o que se lê num celular ou tablet, mesmo que
em fragmentos. Sem uma pesquisa aprofundada desse universo só podemos fazer
conjecturas, mas no mínimo o que se lê no digital é parecido com o que os
brasileiros têm lido no suporte livro. O fato é que não temos dados para dizer
que a leitura no ambiente digital é ou não menos interessante e impactante do
ponto de vista simbólico, cidadão, educacional e cultural.
Por se
tratar de economia e de negócios (legítimos, é claro), em qualquer parte do
mundo o conteúdo cidadão ou de diversidade estética não é exatamente o que
norteia mais centralmente os mercados. Basta ver a lista dos mais vendidos em
qualquer país do mundo. Os best-sellers, com louváveis exceções, não têm
trazido exatamente um aprofundamento crítico e ampliador de nossa ideia de
sociedade e de mundo, e talvez não sejam um grande exemplo de invenção e
experimento estético. Eles certamente têm seu valor. Formam leitores. São
lidos, fruídos e levam emoção e prazer. Mas eles seriam superiores ao que está
sendo lido no ambiente digital?
Em
setembro do ano passado, o então ministro da Cultura da Colômbia, Juan David
Correa, fez uma intervenção importante na Bienal do Livro de São Paulo. Na
ocasião, ele perguntou aos editores presentes no auditório qual a
responsabilidade do mundo editorial no aprofundamento da democracia? Deu como
exemplo os livros publicados em seu país. Segundo ele, dos 50 títulos mais
vendidos, 48 tinham como tema liderança, competitividade, empreendedorismo,
individualismo e autoajuda. Por que não havia entre os livros mais vendidos
aqueles que trazem valores mais coletivos e solidários, de debates sobre os
temas que mais impactam a sociedade? Os livros não são bons, em si, pelo fato
de serem livros, segundo Juan David.
No
Brasil, temos uma grande diferença. Aqui, o Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE/MEC), compra
cerca da metade dos livros produzidos em nosso país (quase 40% do faturamento).
Além de seu impacto econômico, essas compras equilibram os valores estéticos e
cidadãos, porque suas coleções são formadas por meio de comissões de
especialistas, que não tratam o livro exclusivamente do ponto de vista do
mercado. Isso é bom para todos, diversifica a produção e amplia a
bibliodiversidade brasileira. A importância desse programa é enorme para um
país com ainda baixos índices de alfabetização e de compreensão plena de um
texto complexo – resultado de 300 anos de proibição de se fazer livros aqui,
além de 400 anos de escravidão.
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O gênero livro
O
escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) dizia haver um “gênero livro”, ou
seja, o próprio suporte determinaria a forma, ficcional no caso. O fato é que o
livro, como gênero ou como suporte, é, como já falamos, o lugar privilegiado
dos longos encadeamentos lógicos e estéticos. É também o lugar por excelência
da narração complexa, a formar “uma espécie de todo”, de fechamento e de
conclusão. O filósofo coreano Byung-Chul Han, em Favor fechar os olhos – em
busca de um outro tempo (Editora Vozes, 2024) defende a narração contra o “liso
da tela” e sua rolagem infinita. Ele afirma que os processos narrativos escapam
à aceleração, ao instituírem um tempo próprio, interno. É impossível acelerar
uma leitura sem perder as nuances, as profundidades e os encadeamentos de uma
história.
As
narrações (histórias escritas ou contadas, os filmes, as peças de teatro, as
letras de músicas) instituem um tempo próprio, separado do tempo real e muito
longe da vertigem digital. O digital é aditivo, não conclusivo, para Han. A
falta de conclusão, de fim, do ponto de vista da saúde, é perturbadora e fator
de geração de ansiedade, o que todo pai e mãe de crianças e adolescentes em
nosso tempo tem percebido e sofrido. O livro permite sentidos e fins (mesmo os
de finais abertos), mas fundamentalmente aqueles livros com impactos estéticos,
criativos. Como dizia Umberto Eco em Seis passeios pelos bosques da ficção
(Companhia das Letras, 2002), “o texto é uma máquina preguiçosa, esperando que
o leitor faça a sua parte”. Poderíamos nos perguntar: diante de suportes mais
interativos, eficientes, que fazem tudo, sons, imagens, ideias, quem, então, é
o preguiçoso?
A
leitura atenta, exigente, dos códigos escritos é fundamental para a
constituição de um sujeito autônomo e crítico, influindo na capacidade de
absorvermos complexidades e de desenvolver o pensamento abstrato, como por
exemplo Walter Ong (1912-2003) observou em Oralidade e Cultura Escrita
(Papirus, 1998). Por ser uma tecnologia de baixo estímulo, a escrita nos brinda
com uma possibilidade única ao nos exigir que nós mesmos façamos as imagens, os
sons e os sentidos. Ela é uma tecnologia precária e é justamente essa
precariedade sua riqueza maior, porque nos constrói como sujeitos na interação
com ela. Mas será que ela também não está presente de alguma forma no mundo
digital, apesar das redes sociais e dos vídeos cada vez mais curtos? A questão
a saber é se, às margens da interação heterônoma, desatenta e hipnótica do
digital, não está se desenvolvendo também uma leitura digital e analógica,
coletiva, solidária, feita em rede, trazendo à tona novas perspectivas sobre o
Brasil e o mundo, a partir de novos sujeitos políticos e culturais, antes
invisibilizados.
Apesar
da história da educação no Brasil, um país de megadiversidade cultural e de
megadesigualdade social, as periferias têm oxigenado o debate cultural e
literário brasileiro. E isso tem a ver também com a apropriação da tecnologia
digital por essas populações e o uso criativo e autônomo que muitas vezes têm
vindo à tona com elas. Precisamos chegar mais perto de como essas leituras são
feitas, porque elas qualificam o que pensamos sobre leitores no Brasil, para
muito além dos livros do mercado editorial tradicional. Há uma emergência de
novos sujeitos políticos e culturais ocupando a cena com suas leituras de mundo
e suas escritas, devido às possibilidades do mundo digital e da
desintermediação, do comum. Há certo tempo, era comum pensarmos na tríade
estado, mercado e sociedade civil, os “ponto gov”, “ponto com” e “ponto org”.
Agora há uma outra categoria, o comum, o que aproveita a tecnologia digital
para sua expressão e fruição simbólicas e para a invenção de novas formas de
ser e viver, do ponto de vista cidadão, simbólico e econômico. É preciso
aproximar-se dessas manifestações e enxergar com mais qualidade os novos usos e
leituras que dali emergem. É isso o que se percebe nos inúmeros saraus,
coletivos articulados na Periferia Brasileira de Letras (PBL), nas redes de
bibliotecas comunitárias, pontos de leitura, pontos de cultura, Agência de
Notícias das Favelas, Flup etc. São digitais e analógicos, ao mesmo tempo.
Digitalógicos, não uma coisa ou outra.
Fonte:
Por Jéferson Assumção, em Outras
Palavras

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