Sem
fiscalização, pilhas de rejeito de mineração substituem barragens e avançam
pelo país
A
confeiteira Lexandra Machado estava no quintal de casa quando viu uma montanha
de 80 metros de altura deslizando a poucos quilômetros, na manhã de 7 de
dezembro de 2024, no povoado de Casquilho de Cima, em Conceição do Pará (MG). O
que ela via era o rompimento de uma pilha de rejeitos de uma mineradora.
“Fiquei
tão atordoada, que comecei a gritar. Logo me lembrei de Brumadinho. Após uns 40
minutos, os funcionários da empresa passaram de carro, dizendo que era para
sairmos de casa”, conta Lexandra.
As
pilhas de rejeito têm sido utilizadas pelas mineradoras como uma alternativa
mais segura às barragens a montante, que foram proibidas no Brasil após a morte
de quase 300 pessoas nas cidades de Brumadinho e Mariana, em 2015 e 2019.
Embora
tenham menor potencial de dano, ainda não há regulamentação federal e protocolo
de fiscalização, o que também torna as pilhas de rejeitos um risco, segundo
especialistas. O governo federal prevê definir regras para a prática até 2026.
O
deslizamento em Conceição do Pará atingiu 7 casas e, quatro meses depois,
nenhum morador pôde voltar ao povoado. Essa foi a quarta ocorrência envolvendo
pilhas desde 2018. Em um dos casos, no município de Godofredo Viana, no
Maranhão, uma rodovia ficou interditada por seis dias.
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Mais pilhas do que barragens
Desde
2019, as barragens do tipo a montante -- estruturas nas quais os rejeitos da
mineração são depositados em camadas sucessivas -- são proibidas no Brasil, por
que estão mais suscetíveis a acidentes.
A
mudança na legislação ocorreu após os rompimentos em Mariana e Brumadinho. A
partir de então, a disposição dos resíduos em pilhas passou a dominar o setor
de mineração, de acordo com o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de
Minas Gerais.
Dados
da Vale, a maior mineradora do país e responsável pelas barragens que romperam
em Minas Gerais, mostram que houve aumento no número de pilhas de rejeito.
Hoje, 70% dos rejeitos da mineradora estão armazenados em pilhas e não em
barragens. Esse número era de 40% em 2014.
Já a
Samarco, outra responsável pelo rompimento da barragem em Mariana, filtra e
empilha atualmente cerca de 80% dos rejeitos de minério que produz, uma mudança
que vem sendo feita desde 2020.
As
pilhas são como montanhas de lixo da mineração, formadas pelo material sem
valor econômico que resta após a lavagem do minério e a drenagem da água. Já
nas barragens, o rejeito é armazenado com água, formando uma espécie de lama.
Há, ainda, as pilhas de estéril, formadas principalmente pela areia retirada do
solo até se chegar ao minério.
De
acordo com especialistas ouvidos pelo g1, algumas pilhas que foram licenciadas
-- ou que estão em processo de licenciamento no Brasil -- poderão alcançar mais
de 200 metros de altura, o que eles consideram um grande risco, principalmente
porque essas estruturas não são regulamentadas ou monitoradas como as barragens
passaram a ser depois das tragédias em Minas Gerais.
De
acordo com o engenheiro Júlio Grillo, ex-superintendente do Ibama de MG, o
material seco que é depositado nas pilhas tende a se acomodar mais rapidamente
e alcança uma área menor do que a lama, em caso de rompimento. Por isso, o
potencial de dano é menor. No entanto, a falta de fiscalização e de
transparência quanto aos cálculos que definem as dimensões das pilhas
preocupam.
“Isso
faz com que a probabilidade de rompimento de uma pilha, hoje, seja maior do que
a de uma barragem, que já tem regulamentações e critérios de licenciamento mais
rigorosos”, disse o engenheiro.
Na
Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão do governo federal responsável pela
gestão de mineradoras, o assunto só entrou na agenda regulatória para o biênio
de 2025 e 2026, o que significa que a pauta só vai começar a ser discutida
neste ano.
Júlio
Nery, diretor de assuntos minerários do Instituto Brasileiro de Mineração
(Ibram), entidade que representa as mineradoras, afirma que o setor já segue o
Padrão Global da Indústria para Gerenciamento de Rejeitos, o que inclui o
empilhamento a seco.
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ANM não tem cronograma de vistorias
Em
2024, técnicos da ANM vistoriaram 180 barragens, de acordo com o relatório
anual do órgão. Esse é um dado que não existe em relação às pilhas, porque não
há um cronograma de vistorias, nem “uma equipe dedicada exclusivamente para
essa fiscalização”, segundo a agência.
Também
não existe “um cadastro que permita rastrear a quantidade de vistorias
específicas de pilhas”. Segundo a agência, as pilhas de rejeitos são
vistoriadas “junto às ações rotineiras”.
Enquanto
a lei 12.334, de 2010, criou a Política Nacional de Segurança de Barragens, com
critérios para monitoramento, normas de controle e padrão de segurança, nada
disso existe em relação às pilhas.
Além
disso, informações técnicas sobre as barragens estão disponíveis em bancos de
dados públicos, como o Sistema Integrado de Gestão de Barragens de Mineração.
Já informações sobre as condições estruturais das pilhas e os critérios para
que sejam licenciadas não existem.
De
acordo com o engenheiro Júlio Grillo, faltam dados importantes sobre o cálculo
para o preparo da base das pilhas e para definir a altura máxima que essas
estruturas podem ter.
“A
pilha rompeu em Conceição do Pará, porque a base não foi preparada
adequadamente para aguentar o peso”, disse o especialista, sobre o deslizamento
na mineradora Jaguar Mining, que Lexandra observou de dentro de casa.
Pilha
de rejeito que deslizou em Conceição do Pará atingiu sete casas. — Foto: Arte
g1
A pilha
no povoado tem, atualmente, 80 metros de altura. Isso é mais que o dobro do
Cristo Redentor, que tem 35 metros. A área é de aproximadamente 16 hectares,
quase o tamanho do estádio Maracanã, que tem 18 hectares. De acordo com a
última informação repassada pela Jaguar Mining para a ANM, o desabamento
movimentou um volume de cerca de 640 milhões de litros.
Questionada
sobre qual a altura e as demais medidas que foram autorizadas no projeto de
licenciamento da pilha, a Jaguar Mining respondeu que a estrutura “não tinha
atingido sua altura e volume máximos e operava de acordo com licenciamento
junto aos órgãos reguladores”.
Mina
Turmalina - Conceição do Pará - pilha de rejeitos — Foto: Roberto Eleotério/ TV
Integração
A
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), de
Minas Gerais, informou que “os aspectos geotécnicos das pilhas extrapolam o
escopo do licenciamento ambiental” e que a ANM é a responsável por essa análise
técnica.
Já a
agência federal disse que a licença de operação “é de responsabilidade do órgão
ambiental”, no caso, a própria Semad, e que vinha sendo renovada
automaticamente desde 2012. A ANM informou que vistoriou a pilha nove vezes
desde 2009, sendo a última em 2021. Nessas ocasiões, "ocorreram publicação
de exigências, autuações, interdições parciais relativas a diversos aspectos do
empreendimento".
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Mineradoras dizem seguir padrão internacional
Segundo
relatório anual exigido das mineradoras pelo código de mineração, o país tem
mais de 3 mil pilhas de rejeito, estéril ou mistas.
Dessas,
232 são apenas de rejeitos, sendo 41 da mineração de ferro -- que produz as
pilhas mais altas -- e de ouro, que tem as substâncias mais tóxicas, como
arsênio, cianeto e mercúrio.
Para
Carlos Bruno Ferreira, procurador do Ministério Público Federal em Minas
Gerais, as mineradoras estão apostando nas pilhas de rejeito não apenas por ser
uma estrutura com menor potencial de risco, mas também porque falta regulação.
“A
partir do momento que o minerador não tem obrigações para cumprir, que pode
deixar a pilha sem equipamentos que verifiquem a solidez da estrutura, sem o
equipamento de vídeo e sem uma equipe de segurança, como eu verifiquei no caso
da Jaguar Mining, se torna mais simples colocar os rejeitos em forma de pilha”,
disse.
Segundo
o diretor do Ibram, Júlio Nery, a entidade é responsável por duas normas
técnicas que tratam dos parâmetros para a construção das pilhas de estéril e
barragens. Elas funcionam como recomendações definidas pelo próprio setor e não
têm força de lei.
De
acordo com essas normas, o projeto para instalação de uma pilha de rejeito deve
incluir, entre outras coisas, plano de monitoramento e inspeções, estudos sobre
grau de risco e um plano de ação de emergência. “Elas existem desde a década de
1990 e são periodicamente revisadas”, afirma o engenheiro.
O
diretor do Ibram afirmou ainda que as dimensões das pilhas “podem variar em
função da topografia, dos locais de disposição, da geologia local e a
localização geográfica”.
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Ao menos quatro deslizamentos desde 2018
A
deputada federal Duda Salabert (PDT-MG) mapeou quatro ocorrências com pilhas de
rejeito ou de estéril em seis anos. Ela é autora de um projeto de lei que
pretende regulamentar aspectos de segurança para as pilhas de mineração.
A
proposta está na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados desde
novembro de 2024, à espera de um relator.
O caso
mais grave e recente foi o de Conceição do Pará, em Minas Gerais. Sete casas
foram atingidas e cerca de 250 pessoas tiveram que ser realocadas. Nenhum
morador pode voltar ao povoado, mais de quatro meses depois do acidente.
Um
acordo entre a Jaguar Mining, a Defensoria Pública de Minas Gerais e o
Ministério Público Federal foi assinado em março de 2025 e define os termos
para indenizações. Alguns moradores poderão voltar a suas casas, mas ainda não
foi concluída a delimitação da área de segurança.
Em
nota, a Jaguar MIning disse que tem prestado todas as informações aos órgãos
fiscalizadores e regulatórios para o esclarecimento das causas da ruptura
parcial da pilha".
O
primeiro caso de deslizamento foi em 2018, na cidade de Godofredo Viana (MA). A
pilha de estéril da mineradora de ouro Aurizona deslizou, bloqueando a única
via de acesso e deixando uma comunidade isolada. Cinco anos depois, em 2023,
outro deslizamento aconteceu na mesma região. A estrada ficou interditada por
seis dias.
Já em
2022, uma erosão na pilha de rejeitos da mineradora AngloGold Ashanti, assustou
moradores de Santa Bárbara (MG). A empresa confirmou que o problema foi causado
pelas fortes chuvas no período.
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Riscos com a chuva
Segundo
o engenheiro Euler Cruz, presidente do Fórum Permanente São Francisco, uma
entidade da sociedade civil que se dedica à segurança e à qualidade de vida da
população que vive em áreas de mineração em Minas Gerais, o empilhamento a seco
é um tipo de tecnologia que não está totalmente dominado.
As
estruturas, segundo o engenheiro, não estão sendo planejadas para suportar o
maior volume de chuvas, devido às mudanças climáticas. “Os sistemas de drenagem
são projetados com dados pluviométricos de 40 ou 50 anos atrás. Não se leva em
conta as chuvas torrenciais que vemos agora”.
O
engenheiro Júlio Grillo concorda: “As pilhas não vão provocar desastres tão
grandes como o rompimento de uma barragem, mas, certamente, vão sucumbir às
chuvas fortes mais rapidamente”, disse.
Para
evitar novos e mais graves acidentes, Grillo aponta três caminhos:
• O processo de licenciamento não pode ser
baseado em autodeclarações;
• Qualquer empreendimento minerário tem
que estar comprovadamente adequado aos eventos extremos de chuva;
• É preciso aplicar o princípio da
precaução e da prevenção. As mineradoras têm que comprovar de forma
transparente que a pilha a ser licenciada é sustentável a longo prazo.
• Mineração: entenda a diferença entre
barragens, pilhas de rejeito e pilhas de estéril
Na
mineração, os rejeitos são produzidos após a lavagem do minério. Esse material
com pouco ou nenhum valor econômico pode ser depositado de duas maneiras:
• em barragens, em que o material é
depositado em camadas sucessivas e misturado com água;
• em pilhas de rejeito, em que o material
é drenado e empilhado a seco.
As
pilhas de rejeito têm sido utilizadas pelas mineradoras como uma alternativa
mais segura às barragens, depois da morte de quase 300 pessoas nas cidades de
Brumadinho e Mariana, em 2015 e 2019.
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Entenda as diferenças
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Barragens a montante: são estruturas nas quais os rejeitos de minérios são
depositados em camadas sucessivas e misturados com água, formando uma espécie
de lama. Novas barragens desse tipo estão proibidas no Brasil após a tragédia
de Brumadinho, porque estão mais suscetíveis a acidentes.
>>>
Pilhas de rejeito: essas estruturas são como montanhas de lixo da mineração,
formadas pelo material sem valor econômico que resta após a lavagem do minério
e a drenagem da água. O rejeito é drenado e empilhado a seco.
>>>
Pilhas de estéril: todo empreendimento minerário tem as pilhas de estéril,
estruturas formadas pelo material que está entre a superfície do solo e o
minério, principalmente areia e rochas.
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Mais pilhas do que barragens
A
disposição dos resíduos em pilhas passou a dominar o setor de mineração nos
últimos anos, de acordo com o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de
Minas Gerais.
Segundo
relatório anual da Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão federal
responsável pela gestão de mineradoras, o país tem mais de 3 mil pilhas de
rejeito, de estéril ou mistas.
Dessas,
232 são apenas de rejeitos, sendo 41 da mineração de ferro -- que produz as
pilhas mais altas -- e de ouro, que tem as substâncias mais tóxicas, como
arsênio, cianeto e mercúrio.
Dados
da Vale, a maior mineradora do país e responsável pelas barragens que romperam
em Minas Gerais, mostram que houve aumento no número de pilhas de rejeito.
Hoje, 70% dos rejeitos da mineradora estão armazenados em pilhas e não em
barragens. Esse número era de 40% em 2014.
Já a
Samarco, outra responsável pelo rompimento da barragem em Mariana, filtra e
empilha atualmente cerca de 80% dos rejeitos de minério que produz, uma mudança
que vem sendo feita desde 2020.
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Risco é menor, mas ainda não há regulação
De
acordo com o engenheiro Júlio Grillo, ex-superintendente do Ibama de MG, o
material seco que é depositado nas pilhas tende a se acomodar mais rapidamente
e alcança uma área menor do que a lama, em caso de rompimento. Por isso, o
potencial de dano é menor. No entanto, a falta de fiscalização e de
transparência quanto aos cálculos que definem as dimensões das pilhas
preocupam.
Se, por
um lado, as pilhas de rejeito têm menor potencial de dano que as barragens, por
outro, são mais instáveis que as pilhas de estéril.
Isso
acontece porque, embora o rejeito seja drenado, ainda resta certa umidade,
segundo o engenheiro Euler Cruz, presidente do Fórum Permanente São Francisco,
uma entidade da sociedade civil que se dedica à segurança da população em áreas
de mineração em Minas Gerais.
“As
pilhas de rejeito precisam ter um sistema de drenagem dessa água que sobra
depois que o material é empilhado”, explicou o engenheiro.
Mesmo
com potencial de dano menor, diferente das barragens, ainda não há
regulamentação e protocolo de fiscalização das pilhas da mineração, sejam elas
de rejeito ou de estéril. O governo federal prevê definir regras até 2026.
Fonte:
g1

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