Paulo
Nogueira Batista Jr.: A cúpula do BRICS e as reações destemperadas dos EUA
Foi
bem-sucedida a cúpula dos BRICS, diferentemente do que muitos temiam (inclusive
eu). Preocupado com o que me parecia o risco de um insucesso, enviei sugestões
e manifestei receios diversas vezes, tanto em público quanto em diálogos com
integrantes do governo. Fiquei contente com os resultados e parabenizo as
equipes do governo brasileiro e de outros países que contribuíram para o
sucesso, notadamente a Rússia.
Não foi
por acaso que Donald Trump passou a exorbitar outra vez, durante e depois da
cúpula dos BRICS, pois ela confirmou que o grupo é, de fato, o principal
contraponto no mundo à hegemonia dos Estados Unidos e seus aliados. Na verdade,
os resultados da cúpula no Rio de Janeiro surpreenderam para melhor.
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Na área
econômico-financeira, algumas iniciativas importantes foram reafirmadas e
desenvolvidas, algumas outras foram lançadas. E o trabalho continuará – espero
– no segundo semestre da presidência brasileira. Deve-se notar que esses
resultados positivos foram alcançados mesmo com problemas consideráveis que
afetam o funcionamento dos BRICS. O artigo tratará desses problemas, de um
lado, e das instituições e iniciativas financeiras do grupo, do outro.
Para
não alongar demais o texto, deixo de lado as questões diplomáticas e políticas.
Tratarei apenas das reações políticas e econômicas de Trump.
E
é tão vasta a agenda econômica dos BRICS que nem poderei sequer abordar todas
as iniciativas do grupo nesse campo.
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Lula e Trump
Começo
com os destemperos de Donald Trump. Foi interessante a declaração do presidente
Lula, logo antes da cúpula, de que os BRICS precisam criar uma moeda
alternativa para transações internacionais. Declaração destemida, pois ignora,
e faz bem de ignorar, as repetidas ameaças de Trump contra os BRICS e qualquer
país que atue para destronar o dólar da sua condição de moeda de reserva
internacional.
Durante
a nossa cúpula, Trump voltou a ameaçar: “Qualquer país que venha a se alinhar
com as políticas antiamericanas dos BRICS terá de pagar uma tarifa ADICIONAL de
10%”, escrevendo em letras maiúsculas mesmo, e acrescentando que “não haverá
exceções a esta política”.
Logo
depois da cúpula, Trump fez declarações ainda mais agressivas, dizendo que os
BRICS têm a intenção de “destruir o dólar” e que o grupo “foi criado para
desvalorizar o a nossa moeda”. E foi enfático: “O dólar é rei. Vamos mantê-lo
assim. Se as pessoas quiserem desafiá-lo, podem. Mas terão que pagar um alto
preço”. Estipulou, além disso, que as novas tarifas entrarão em vigor em 1º de
agosto.
No dia
seguinte, deu um coice ainda maior: enviou uma carta aberta a Lula em que
anunciou uma tarifa extra de 50% sobre a importação de produtos do Brasil a
partir de 1º de agosto, justificando esse tarifaço, entretanto, sobretudo com
questões políticas internas nossas, em especial uma suposta caça às bruxas
contra o ex-presidente Bolsonaro, que “deve terminar IMEDIATAMENTE” (mais uma
vez em maiúsculas), além de reclamar das “centenas de ordens de censura do
Supremo Tribunal Federal brasileiro, SECRETAS e ILEGAIS (outra vez em caixa
alta), dirigidas a plataforma de mídia social dos Estados Unidos”. Reclamou,
também, das barreiras tarifárias e não-tarifárias praticadas pelo Brasil.
Curiosamente, os Estados Unidos têm expressivos superávits comerciais com o
Brasil há muito anos, o que dá um caráter totalmente descabelado à carta de
Trump.
Ao
mesmo tempo, Trump disparou de novo a sua metralhadora giratória tarifária
contra diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento, alguns deles dos
BRICS.
Foi
perfeita a nota do presidente Lula em resposta a Trump. Chama atenção a
diferença de qualidade entre a missiva de Trump e a réplica de Lula. A primeira
totalmente aloprada (mais um sintoma da decadência dos EUA); a segunda, firme e
bem fundamentada.
Lula
acenou com retaliação, dizendo que o Brasil se reserva o direito de responder à
luz da Lei brasileira de Reciprocidade Econômica, caso o tarifaço entre mesmo
em vigor. Postura altiva do nosso presidente, pois a carta aberta de Trump já
ameaçara com aumentos adicionais de tarifas em caso de o Brasil aumentar suas
tarifas sobre as exportações dos EUA. E Trump ainda teve o desplante de
escrever que, se Lula “eliminar as tarifas e barreiras não-tarifárias”, ele
“talvez considere” ajustar a sua carta.
O que
dizer de tudo isso? Bem, Trump chegou a falar, em ocasiões anteriores, em
tarifas de 100% e até 200% sobre os BRICS por causa da suposta ameaça ao dólar.
Progresso, portanto!
Enfim,
foram novas grosserias do presidente dos Estados Unidos. Embora ele não tenha
mencionado os BRICS na carta a Lula , é razoável admitir que o sucesso da
cúpula do Rio tenha contribuído para a explosão de Trump.
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Os BRICS e o sistema monetário e financeiro controlado pelo Ocidente
Diferentemente
do que disse Trump nos dias recentes, repetindo várias declarações anteriores
do mesmo naipe, os BRICS não pretendem atuar deliberadamente para destronar ou
enfraquecer e muito menos “destruir o dólar”, mas sim criar alternativas aos
sistemas internacionais dominados pelo Ocidente e centrados na moeda dos EUA.
“Vamos com calma. Não somos contra o dólar, o dólar é que às vezes é contra
nós”, disse o presidente Putin, sem ironia, em resposta a uma pergunta que tive
a oportunidade de fazer a ele, em encontro anual do Clube Valdai em novembro do
ano passado. Veja, leitor ou leitora, mesmo a Rússia, que está efetivamente em
guerra com o Ocidente, adota até agora uma linguagem moderada em relação a
propostas de desdolarização.
Mas a
verdade é que o sistema monetário e financeiro internacional existente,
controlado pelo Ocidente – isto é, o Fundo Monetário Internacional; o Banco
Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento tradicionais; a centralidade
do dólar como moeda internacional; o esquema SWIFT de pagamentos
transfronteiriços; as três principais agências de classificação de risco, entre
outros elementos – apresenta claramente diversas deficiências graves. É
excludente, ineficiente e não atende às necessidades dos países dos BRICS e do
resto do Sul Global. Trata-se, no essencial, de um instrumento de poder e
coerção para os países do Atlântico Norte e seus aliados em outras partes do
mundo. Por isso, precisamos criar mecanismos alternativos e independentes do
Ocidente, sem deixar de participar, na medida do possível e conveniente, do
sistema atualmente existente.
Acredito
que os BRICS, ou uma parte do grupo, continuarão a desenvolver, com paciência e
profissionalismo, um novo sistema – não anti-Ocidental, mas pós-Ocidental, para
lançar mão de uma expressão utilizada por Zhao Long, um economista chinês, em
debate de que participei no Rio de Janeiro na semana passada.
Isso
será feito ao longo dos próximos anos quer Trump queira, quer não. E é
lamentável que o presidente dos Estados Unidos não saiba controlar minimamente
os seus destemperos.
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O peso do grupo BRICS
Trump
tem motivos para temer os BRICS? Provavelmente sim. Fazem parte do nosso grupo
todos os maiores países do Sul Global. Agora somos 10 membros plenos (Brasil,
Rússia, Índia, China, África do Sul, Indonésia, Irã, Egito, Etiópia e Emirados
Árabes Unidos), além de outros 10 países parceiros. Os BRICS têm enorme peso
econômico, demográfico e territorial. Considerando só os membros plenos, os
BRICS ou BRICS+ respondem por nada menos que 50% da população do planeta
(graças especialmente à Índia e à China), quase 40% do PIB mundial (graças à
China principalmente) e 30% do território global (graças sobretudo à Rússia, à
China e ao Brasil). Não é à toa que o nosso grupo atrai tanta atenção no mundo
inteiro.
(Uma
nota de rodapé: a Arábia Saudita foi convidada para ser membro pleno em 2023,
mas ainda não respondeu, nem positiva, nem negativamente. A Argentina,
convidada na mesma época, recusou. O que mostra, diga-se de passagem, que por
motivos políticos nem todos os países do Sul Global estão prontos para aderir
aos BRICS.)
Outra
comparação relevante para os BRICS: quando se consideram os top-10 do mundo em
termos de população, PIB (medido por paridade de poder de compra) e território,
verifica-se o seguinte. Cinco dos BRICS (Índia, China, Indonésia, Brasil e
Rússia) figuram na lista dos 10 maiores países em população. Os mesmos cinco
BRICS estão entre os 10 maiores países em termos de tamanho da economia. E
quatro deles fazem parte da relação dos 10 maiores em extensão geográfica (dos
já mencionados, todos menos a Indonésia).
O
Brasil está nessas três listas, ressalte-se, e por isso mesmo intitulei o meu
penúltimo livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém. O
problema, entretanto, é que muitos brasileiros cabem no quintal de qualquer um,
inclusive e destacadamente Jair Bolsonaro, que Trump compreensivelmente tanto
defende. Os americanos adoram vassalos. Mas não quero me desviar do assunto e
volto aos BRICS.
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Não devemos exagerar a importância real dos BRICS enquanto grupo
Cabe
reconhecer, entretanto, que percentuais e listas como os acima mencionados
podem dar uma ideia exagerada do peso real prático dos BRICS enquanto grupo. Há
algumas dificuldades que ainda impedem os BRICS de exercer papel correspondente
a seu peso relativo no mundo e isso vem prejudicando, como era de esperar, a
presidência brasileira do grupo em 2025. Sem pretender esgotar o assunto e nem
mesmo listar todas essas dificuldades, vou falar um pouco de três delas: uma de
natureza conjuntural – o risco de encurtamento da presidência brasileira; e
outras duas, mais estruturais e interligadas, que devem persistir no que resta
de 2025 e nos anos seguintes – os riscos de expansão excessiva dos BRICS e os
riscos de paralisia do grupo por causa da nossa arraigada tradição de
decidir por consenso.
- Risco de
encurtamento da presidência brasileira
O
governo brasileiro cometeu o erro de marcar a cúpula para o meio do ano, algo
muito pouco usual e que arrisca reduzir a presidência brasileira dos BRICS a um
semestre apenas. O argumento, muito fraco, é que o Brasil sedia a COP30 em
novembro e que o país não teria condições de organizar dois eventos
internacionais em datas próximas. Para lá de questionável. O Brasil, sendo como
é um dos principais países do mundo, tem sim como fazer isso, se não pensar
pequeno. E, depois, convenhamos, a COP30 não deverá alcançar resultados
práticos relevantes e será provavelmente apenas mais uma ocasião para discursos
e slogans simpáticos. Já os BRICS constituem o grupo de países que melhores
condições tem de modificar o quadro internacional.
Esse
problema foi mitigado no Rio de Janeiro pelo fato de ficarem previstas na
Declaração dos Líderes e em outros documentos, diversas reuniões ministeriais,
de bancos centrais, de xerpas e assessores ao longo do segundo semestre.
Faltou, porém, até onde pude perceber, um gancho fundamental – marcar uma
reunião dos líderes dos BRICS para novembro por ocasião da cúpula do G20 na
África do Sul, em Joanesburgo, para a qual convergiriam as negociações que
ocorrerão no segundo semestre. E não venham me dizer que isso é impossível. Não
é nem difícil. Os líderes do grupo já fizeram diversas reuniões desse tipo, a
primeira por iniciativa de Dilma Rousseff em 2011, e várias depois, inclusive
no governo Bolsonaro, com comunicado público e tudo. São simples de organizar,
e eu sei perfeitamente disso, pois participei desse processo em vários anos.
Fazíamos reuniões em salas pequenas, com cerca de 25 a 30 pessoas presentes, os
cinco líderes e mais alguns assessores. Hoje, é um pouco mais complicado, pois
o número de países membros dobrou. Mas é só reduzir o número de pessoas que
cada líder traz consigo, permitindo uma reunião menor e mais íntima, como
ocorria antes da expansão do grupo. Ressalte-se que esse encontro dos líderes
não é uma segunda cúpula. com toda a parafernália das cúpulas, mas um encontro
que, embora mais informal, costuma terminar com um comunicado do qual podem
constar assuntos importantes.
Por
exemplo, as negociações do Arranjo Contingente de Reservas (ACR), o fundo
monetário dos BRICS, foram lançadas, sob liderança do Brasil e da China, e mais
do Brasil do que da China, numa reunião desse tipo que ocorreu em 2012, em Los
Cabos, à margem da cúpula do G20 no México. E devo dizer, entre parênteses, que
essas negociações só foram lançadas naquele momento por causa do empenho da
presidente Dilma, que não sossegou enquanto não foram vencidas as resistências
da Índia. (Um relato dessa negociação difícil e até tumultuada em Los Cabos
pode ser encontrado em O Brasil não cabe no quintal de ninguém, 2ª
edição, páginas 256 a 261.)
Note-se
que dos 10 membros atuais dos BRICS, quatro países – Egito, Emirados Árabes
Unidos, Etiópia e Irã não fazem parte do G20. Mas isso não é problema. Bastaria
a África do Sul convidar esses quatro países para vir a Joanesburgo, não para
participar da cúpula do G20, mas para se encontrar com os demais líderes dos
BRICS – um encontro que pode ser, aliás, mais importantes do que o do G20,
agrupamento que está praticamente paralisado pelo agravamento do quadro
geopolítico mundial e pela confrontação entre EUA e Europa, de um lado, e China
e Rússia, do outro.
- Riscos
decorrentes da expansão dos BRICS e do modo de decidir do grupo
Não
foi anunciado nenhum novo convite para a entrada de novos países, como membros
plenos ou como parceiros. Bom ponto! O grupo já ficou grande demais, a expansão
por pressão da China foi apressada e mal planejada. Os critérios de escolha dos
novos países não foram bem definidos. Faltou, por exemplo, assegurar o
compromisso dos novos membros com princípios já consolidados do grupo, o que
parece já estar tumultuando as negociações internas dos BRICS.
Hora
de sustar qualquer expansão adicional. A razão é que um grupo maior e mais
heterogêneo tende a ter dificuldade de tomar decisões práticas, especialmente
se entrarem países muito vulneráveis às pressões econômicas e políticas do
bloco ocidental.
Tanto
mais que os BRICS –ponto fundamental e pouco conhecido – são muito agarrados à
tradição de decidir por consenso, entendido rigidamente como unanimidade.
Assim, cada país individual tem poder de veto, o que dificulta o avanço em
temas controvertidos. Obviamente, quanto maior o grupo, mais difícil fica
alcançar consenso. Já era difícil quando tínhamos apenas cinco países. Posso
dar o meu testemunho de como sofríamos para alcançar consenso mesmo com só
cinco países. Com 10, as dificuldades crescem. Se o número de membros plenos
aumentar para 15 ou 20, o grupo corre o risco de se tornar inoperante, uma
espécie de talk shop, uma instância para discursos e proclamações,
não para decisões de ordem prática.
Quando
prevalece a exigência de consenso, repito, cada país membro tem poder de veto,
especialmente os maiores, mas também os menores. É uma receita para paralisia.
A Índia, por exemplo, se vale desse noddo modo de decidir para bloquear
propostas em várias áreas e, particularmente, iniciativas monetárias e
financeiras que possam ferir interesses dos Estados Unidos, país com o qual ela
deseja manter proximidade como contrapeso à China, sua tradicional adversária.
Esse comportamento da Índia já se notava há muito tempo, mas se intensificou no
governo Modi e, mais ainda, acredito, com a volta de Trump à presidência e
suas repetidas ameaças.
A
solução é permitir que certas iniciativas possam ser levadas adiante por um
subgrupo dos BRICS, em base voluntária, ficando aberta a porta para aqueles que
não desejem participar desde o início. A cúpula do Rio reafirmou essa
possibilidade, dando sequência ao que ocorreu na cúpula de Kazan, na Rússia, em
outubro de 2024. Agora é colocar em prática.
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Apesar das dificuldades, houve progresso considerável no Rio
Não
obstante todas essas dificuldades, a presidência brasileira alcançou resultados
significativos na área financeira. Explico brevemente alguns deles, sem seguir
uma ordem de importância ou prioridade.
Primeiro
resultado: a Declaração dos Líderes foi impecável nas orientações que deu às
duas principais iniciativas financeiras dos BRICS – o Novo Banco de
Desenvolvimento (NBD), mais conhecido como Banco dos BRICS, e o Arranjo
Contingente de Reservas (ACR).
O
NBD, que eu ajudei a fundar, é de longe a mais importante das duas. Foi criado,
recordo, para ser um banco do Sul Global para o Sul Global, servindo como de
alternativa ao Banco Mundial e aos bancos regionais de desenvolvimento. Ainda
não conseguimos chegar lá. A Declaração dos Líderes frisou corretamente (“we
strongly support”) a expansão adicional do número de países membros do NBD,
o que é indispensável para que ele seja, de fato, um banco global, como
planejávamos desde o início. Depois de 10 anos de existência, o NBD tem apenas
11 países membros. A ex-presidente Dilma, que atualmente preside o banco, está
empenhada nessa questão e já teve algum sucesso, trazendo a Argélia, além da
Colômbia e do Uzbequistão, novos membros anunciados na cúpula do Rio.
Além
disso, a Declaração recomendou, com toda razão, que o NBD realize mais
operações com moedas nacionais dos países membros. Também aqui o banco
progrediu pouco nos seus 10 primeiros anos e continua predominantemente
dolarizado tanto no lado do ativo como do passivo. Dilma Rousseff está
trabalhando para elevar para 30% a participação das moedas dos países membros
do banco nas suas operações.
Falta,
ainda, melhorar a) a transparência e a comunicação do NBD, que é inferior à do
Banco Mundial e do FMI; b) preencher posições importantes que estão vagas (por
exemplo, a de economista-chefe do banco); e c) garantir que o NBD sempre
respeite rigorosamente as suas regras de governança, algo que infelizmente não
tem ocorrido. Mais importante ainda: a qualidade e efetividade dos
empréstimos do NBD precisam provavelmente melhorar – se bem que não se sabe
exatamente como esse aspecto crucial está evoluindo, uma vez que, como
mencionei, não há suficiente transparência do banco. O segredo a respeito
levanta a suspeita de que nem tudo está indo bem nesse aspecto.
O
ACR – cuja negociação foi liderada por minha cadeira no FMI, sob orientação do
ministro Guido Mantega – avançou nos seus 10 primeiros anos bem menos do que
esperávamos e menos do que o NBD, tendo ficado quase totalmente congelado pelo
conservadorismo dos nossos bancos centrais. Ele foi concebido por nós,
recorde-se, para servir como alternativa ao FMI, objetivo que ainda está muito
distante.
A
Declaração dos Líderes dos BRICS acerta em cheio quando frisa a conveniência de
desdolarizar um arranjo que é 100% dependente do dólar. Acerta, também, quando
pede que os novos membros dos BRICS possam ser incluídos como membros do ACR.
Não
me espantaria, entretanto, que os bancos centrais dos cinco países fundadores
do ACR (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), ou alguns deles, estejam
fazendo corpo mole com esses dois assuntos. Cabe às autoridades políticas,
especialmente às presidências dos países e seus ministérios da finanças,
garantir que os objetivos dos líderes do grupo sejam alcançados sem demoras
desnecessárias.
Faltou
na Declaração dos Líderes, menção a alguns outros pontos indispensáveis para o
funcionamento do ACR. Por exemplo, a necessidade de ampliar o valor total do
arranjo, que é pequeno demais para permitir que ele funcione como
alternativa ao FMI. E a necessidade de desvinculá-lo gradualmente do Fundo, uma
vez que apenas 30% do valor da quota de cada país podem ser utilizados sem a
existência de um acordo de alta condicionalidade com o FMI. Isso defeats
the purpose, obviamente. Para o leitor ou leitora ter uma ideia do ridículo
de certos posicionamentos, o Banco Central do Brasi nas negociações que levaram
à criação do ACR chegou a defender 100% de vinculação ao FMI, causando espanto
geral.
Para
permitir que a parcela livre, desvinculada do FMI, possa aumentar gradualmente
para além dos 30% atuais, chegando no futuro a 100%, isto é, à desvinculação
total, é essencial que se constitua uma Unidade de Monitoramento
Macroeconômico, como está previsto no Tratado que constituiu o ACR, assinado em
2014. Mais de 10 anos depois, pouco ou nada foi feito para criar essa unidade.
Os
chineses costumam pleitear que ela seja localizada em Xangai, no prédio do NBD.
Não é má ideia, uma vez que facilitaria a sinergia entre as duas instituições.
Porém, não é a melhor alternativa, pois transformaria Xangai na nova
Washington, sede do banco e do fundo monetário dos BRICS.
Uma
ideia melhor, do ponto de vista do Brasil e de outros membros dos BRICS, seria
sediar a nova unidade dos BRICS no Rio de Janeiro. O prefeito Eduardo Paes
manifestou a vontade de acolher um eventual secretariado do grupo. Uma forma de
começar seria encontrar um espaço para estabelecer essa nova unidade. (Não
precisa ser grande, pois não seria grande o número requerido de economistas e
outros funcionários.)
Percebo,
leitor ou leitora, que o artigo está ficando longo demais. Fiquei empolgado com
o sucesso da presidência brasileira no primeiro semestre de 2025. Apresso-me
então a concluir.
Os
BRICS não se limitaram a tratar dos mecanismos financeiros já existentes, o NBD
e o ACR. Lançaram ou reforçaram diversas iniciativas financeiras novas ou
recentes. Não posso deixar de pelo menos mencioná-las. Destaco as seguintes :
a) o uso crescente de moedas nacionais em transações entre os países
(bypassando o dólar); b) a construção de uma plataforma de pagamentos
internacionais alternativa ao Swift (que é a plataforma controlada e manipulada
pelo Ocidente); c) a criação de um esquema de garantias multilaterais no âmbito
do NBD; d) a criação de uma bolsa de mercadorias alternativa à de
Chicago; e e) de mecanismos para melhorar capacidade dos nossos países de
oferecer seguros e resseguros. Em todas essas áreas, os EUA e outros países do Ocidente
manipulam, distorcem e fazem uso político, no pior sentido da palavra, dos
instrumentos existentes. Tudo isso foi explicado, em linhas gerais, na
Declaração dos Líderes e em outros documentos da cúpula do Rio.
Por
último, menciono um assunto que também está próximo do meu coração – a reforma
do FMI, instituição em que estive por oito anos, como diretor executivo pelo
Brasil e outros 10 países. O documento apresentado na cúpula, “BRICS Rio de
Janeiro Vision for IMF Quota and Governance Reform”, está excelente. Além
de reiterar nossas posições tradicionais em matéria de quotas e votos (que são
nos tempos atuais essencialmente inalcançáveis), o documento especifica, o que
é mais importante na prática, alguns objetivos mais viáveis porque melhoram o
FMI, mas não tocam nas mudanças de governança bloqueados pelos EUA e pela
Europa. Por exemplo, a criação de um quinto vice-diretor na Administração do
Fundo, alocando essa nova posição para nacionais de países do Sul Global. Outro
exemplo: a defesa do aumento dos votos básicos, o que favorece países pequenos,
inclusive vários no nosso grupo no FMI, e que dentro de certos limites é
perfeitamente possível (isto é, desde que não ameace o poder de voto de pelo
menos 15%, que dá aos EUA possiblidade de exercer veto em diversas decisões
fundamentais, aquelas que exigem supermaioria de 85%).
<><>
E a nova moeda de reserva?
Faltou
um ponto central na Declaração dos Líderes: a criação de uma nova moeda de
reserva, apoiada pelo presidente Lula. Esse é o passo mais importante, mas
enfrenta resistência cerrada da Índia.
Além
disso, os nossos banco centrais também atrapalham chegam a ponto de
se dar o direito de interferir em questões geopolíticas! O Banco Central do
Brasil costuma ser um dos piores. Muito independente (em relação ao governo
eleito, mas não ao mercado financeiro), o nosso Banco Central se comporta
frequentemente, nas negociações do grupo, como se fosse um país separado – um
11º BRICS. Isso acontecia na minha época e continua acontecendo agora.
Falta,
portanto, enquadrar o Banco Central.
Ressalto,
para terminar, que foi muito precisa a declaração do presidente Lula a esse
respeito. O que ele disse, reparem bem, foi que a nova moeda serviria para
transações internacionais.
Diversos
economistas russos, chineses e brasileiros, estão trabalhando em alternativas
para chegar a uma nova moeda. Eu mesmo desenhei um caminho, que talvez não seja
o melhor. Não vou abordá-lo de novo. Queria frisar um ponto apenas: uma nova
moeda dos BRICS, ou de um subconjunto de países dos BRICS, não seria uma moeda
única, com um banco central comum, como existe na Europa. Nenhum dos
economistas que participam dessa discussão tem isso em mente. É por ignorância
ou má-fé daqueles que querem obstruir o processo que esse espantalho aparece
volta e meia. Uma nova moeda, se vier a ser criada, seria uma moeda digital,
paralela, para fins de transações internacionais e detenção de reservas.
Desempenharia todas as funções clássicas de uma moeda – meio de pagamento,
unidade de conta e instrumento de reserva – sem entretanto substituir as moedas
nacionais dos países participantes e sem criar um banco central comum.
Vamos
discutir essas alternativas, sem medo e de modo profissional! O resto do Sul
Global espera avanços dos BRICS nessa área crucial. O sistema monetário e
financeiro internacional, dominado pelos EUA e seus aliados (ou vassalos), não
será reformado de forma fundamental e corre até o risco de entrar em colapso.
Trump
pode espernear à vontade e fazer muitos estragos, mas não escapará de apressar,
por incompetência e descontrole, o declínio do Império Americano. Como nas
tragédias gregas, a tentativa dos protagonistas de fugir a seu destino só faz
assegurar a sua realização.
Fonte:
Brasil 247

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