sexta-feira, 11 de julho de 2025

“O estado funciona para não-negros”, afirma professora da UFBA

“Mulheres em situação prisional: direitos e vivências para reexistir” foi o tema do debate realizado no Centro de Estudos Miguel Murat de Vasconcellos, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), na última semana. O evento discutiu a importância da transparência e da humanização no tratamento das mulheres em situação de privação de liberdade, bem como a implementação de políticas públicas que visibilizem suas necessidades. O debate foi transmitido pelo canal da Escola no Youtube.

A coordenação do Ceensp foi da pesquisadora da ENSP/Fiocruz, Roberta Gondim, que trouxe reflexões importantes acerca da experiência feminina em cárcere e suas respectivas dificuldades ao obter a liberdade. A mediação do encontro foi das pesquisadoras da Fiocruz, Mayra Honorato e Marina Maia. Já Caroline Bispo, representante da organização ‘Elas Existem’, e Denise Carrascosa, professora da UFBA, foram as debatedoras do evento.

O debate trouxe reflexões sobre as principais dificuldades acerca da implementação de direitos das mulheres privadas de liberdade e suas dificuldades e enfrentamentos ao serem liberadas.

Memória pessoal motiva acolhimento de egressas

Caroline Bispo, representante da organização ‘Elas Existem’, é pesquisadora, advogada e doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é responsável pela fundação de associações que visam à promoção, ao empoderamento e à evidenciação da voz feminina negra, que, no contexto da inexecução dessas proteções civis e humanitárias no Brasil, são reprimidas.

No evento, ela abordou como suas experiências pessoais e contexto familiar moldaram-na para despertar o questionamento e a força capazes de dar origem e fundamentar um de seus maiores projetos: a organização “Elas Existem – Mulheres encarceradas”.

Segundo ela, o projeto “Elas Existem” surgiu em 2016, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), começando como um grupo de estudos dentro da Ordem dos Advogados do Brasil, Rio de Janeiro (OAB-RJ) e, atualmente, ganha contextos globais.

O projeto tem como principais objetivos garantir os direitos das mulheres cis e trans que são privadas de liberdade; lutar pelo desencarceramento em massa e, principalmente, expor e visibilizar o discurso, o sofrimento e a luta cotidiana dessas mulheres, expondo os desafios físicos, psicológicos e emocionais de ser uma mulher afetada pelo sistema de justiça criminal brasileiro.

Caroline destacou ainda que a iniciativa realiza programas que atuam na remição de pena da população feminina encarcerada, promovendo leitura, escrita, estudo, artesanato e arte nas unidades prisionais, impactando diretamente e positivamente no futuro das detentas e sua vida pós-sistema prisional.

“Buscamos uma perspectiva de falar e entender que as mulheres encarceradas existem, que elas vão sair da prisão e que, quando saírem, não podem ser vistas só como ex-presidiárias, mas como mulheres aptas ao estudo, a bons empregos e, vitalmente, às oportunidades para aprimorar sua própria condição de vida”, destacou ela.

A realidade invisível das mulheres em situação prisional na Bahia

Denise Carrascosa, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), destacou a necessidade urgente de combater narrativas excludentes sobre mulheres encarceradas. Ela ressaltou que, tanto em discursos nacionais quanto internacionais, raramente as pessoas em situação prisional têm a oportunidade de relatar suas próprias vivências — especialmente as violências que enfrentam por serem vistas como alvos preferenciais.

“Nos debates nacionais e internacionais abolicionistas ocorre uma prevalência de discursos e elaborações jurídicas, políticas, sociológicas e antropológicas desde fora da experiência”, afirmou. Para Denise, embora esses discursos não sejam desprezíveis, é necessário analisá-los criticamente.

Nesse contexto, a pesquisadora chamou atenção para o ‘Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)’ de 2022, que serve como ferramenta crítica para refletir sobre o sistema prisional brasileiro. Elaborado em um período de retomada democrática no país, o documento expõe aspectos frequentemente negligenciados, especialmente no sistema prisional da Bahia — estado onde Denise desenvolve suas pesquisas de campo de forma contínua.

A professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Denise Carrascosa, destacou os relatos de precarização das unidades prisionais baianas, como vazamentos, estruturas danificadas, mofo e insalubridade. “No estado da Bahia, não é necessário que a estatística nacional nos diga que 69% da população carcerária é negra. Ao entrar em presídios de Salvador, vemos que quase 100% das mulheres são negras”, afirmou.

Outro aspecto crítico citado por Denise diz respeito à assistência à saúde: faltam medicamentos, atendimento odontológico e condições adequadas para tratar doenças crônicas e infecções, agravadas pelo ambiente insalubre. A hipermedicalização psiquiátrica, com o uso indiscriminado de medicamentos para controle psicológico, também foi mencionada como um reflexo do descaso institucional.

A pesquisadora denunciou também a precariedade do atendimento psicossocial, apontando a falta de profissionais e de condições para garantir sigilo e eficácia nos atendimentos. A ausência de acesso à internet compromete o trabalho das equipes. As internas relataram a falta de contato com familiares e desinformação sobre seus processos. “A desinformação sobre a própria vida penal é generalizada e estratégica”, alertou Denise.

Segundo ela, o Estado é responsável pela gestão do sistema prisional e, portanto, por todas as violações ali cometidas, o que configura descumprimento de tratados internacionais como as Regras de Mandela e de Bangkok. No entanto, ela observa que o relatório do MNPCT não o responsabiliza diretamente, apenas recomenda melhorias.

Denise também citou a ADPF 347, decisão do STF que reconhece o estado inconstitucional do sistema prisional brasileiro, e o plano Pena Justa, que propõe soluções para superlotação e melhorias nas condições carcerárias.

Para ela, a atuação do Estado muitas vezes se reduz à aparência de democracia. “O Estado brasileiro funciona para não-negros”, afirmou. Ela defende uma abordagem interdisciplinar para gerar o que chama de “efeito do real”, rompendo com saberes compartimentados e propondo uma epistemologia crítica e integrada.

Apesar das políticas públicas formuladas ao longo dos anos, Denise destacou que a população carcerária feminina continua crescendo, e as práticas de tortura persistem. Entre as principais vítimas estão mulheres negras, homens trans em unidades femininas e mulheres trans em prisões masculinas — todos alvos de violência intensificada.

A pesquisadora afirmou que a voz negra é sistematicamente silenciada por fatores como território, cor da pele, linguagem e religiosidade. Por fim, ela mencionou o projeto “Corpos Indóceis e Mentes Livres”, que propõe o conceito de “feminegrícidio de Estado” — a morte programada, contínua e estrutural de mulheres negras encarceradas. Segundo Denise, essa morte se dá em múltiplas dimensões: social, jurídica, espiritual, física e psíquica, constituindo uma violência institucionalizada e estruturada.

Encerrando sua fala, a professora comentou sobre o livro “Se Anastácia Falasse”, premiado pelo 2º Prêmio Abolicionista Maria Firmina dos Reis (2023). A obra reúne textos de nove mulheres encarceradas que, sob pseudônimos, relatam suas vivências e fazem um apelo silencioso por liberdade.

Para Denise, o livro é um monumento à voz de Anastácia, símbolo da resistência da mulher negra. Ao dar visibilidade às narrativas silenciadas, a obra representa um espaço legítimo de expressão, negado no sistema penal e no momento da prisão.

 

Fonte: Por Isabelle Ferreira e Mariana Sousa, no Informe Ensp

 

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