“O
estado funciona para não-negros”, afirma professora da UFBA
“Mulheres
em situação prisional: direitos e vivências para reexistir” foi o tema do
debate realizado no Centro de Estudos Miguel Murat de Vasconcellos, da Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), na última semana. O
evento discutiu a importância da transparência e da humanização no tratamento
das mulheres em situação de privação de liberdade, bem como a implementação de
políticas públicas que visibilizem suas necessidades. O debate foi transmitido
pelo canal da Escola no Youtube.
A
coordenação do Ceensp foi da pesquisadora da ENSP/Fiocruz, Roberta Gondim, que
trouxe reflexões importantes acerca da experiência feminina em cárcere e suas
respectivas dificuldades ao obter a liberdade. A mediação do encontro foi das
pesquisadoras da Fiocruz, Mayra Honorato e Marina Maia. Já Caroline Bispo,
representante da organização ‘Elas Existem’, e Denise Carrascosa, professora da
UFBA, foram as debatedoras do evento.
O
debate trouxe reflexões sobre as principais dificuldades acerca da
implementação de direitos das mulheres privadas de liberdade e suas
dificuldades e enfrentamentos ao serem liberadas.
Memória
pessoal motiva acolhimento de egressas
Caroline
Bispo, representante da organização ‘Elas Existem’, é pesquisadora, advogada e
doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Além disso, é responsável pela fundação de associações que visam à promoção, ao
empoderamento e à evidenciação da voz feminina negra, que, no contexto da
inexecução dessas proteções civis e humanitárias no Brasil, são reprimidas.
No
evento, ela abordou como suas experiências pessoais e contexto familiar
moldaram-na para despertar o questionamento e a força capazes de dar origem e
fundamentar um de seus maiores projetos: a organização “Elas Existem – Mulheres
encarceradas”.
Segundo
ela, o projeto “Elas Existem” surgiu em 2016, na Assembleia Legislativa do
Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), começando como um grupo de estudos dentro da
Ordem dos Advogados do Brasil, Rio de Janeiro (OAB-RJ) e, atualmente, ganha
contextos globais.
O
projeto tem como principais objetivos garantir os direitos das mulheres cis e
trans que são privadas de liberdade; lutar pelo desencarceramento em massa e,
principalmente, expor e visibilizar o discurso, o sofrimento e a luta cotidiana
dessas mulheres, expondo os desafios físicos, psicológicos e emocionais de ser
uma mulher afetada pelo sistema de justiça criminal brasileiro.
Caroline
destacou ainda que a iniciativa realiza programas que atuam na remição de pena
da população feminina encarcerada, promovendo leitura, escrita, estudo,
artesanato e arte nas unidades prisionais, impactando diretamente e
positivamente no futuro das detentas e sua vida pós-sistema prisional.
“Buscamos
uma perspectiva de falar e entender que as mulheres encarceradas existem, que
elas vão sair da prisão e que, quando saírem, não podem ser vistas só como
ex-presidiárias, mas como mulheres aptas ao estudo, a bons empregos e,
vitalmente, às oportunidades para aprimorar sua própria condição de vida”,
destacou ela.
A
realidade invisível das mulheres em situação prisional na Bahia
Denise
Carrascosa, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), destacou a
necessidade urgente de combater narrativas excludentes sobre mulheres
encarceradas. Ela ressaltou que, tanto em discursos nacionais quanto
internacionais, raramente as pessoas em situação prisional têm a oportunidade
de relatar suas próprias vivências — especialmente as violências que enfrentam
por serem vistas como alvos preferenciais.
“Nos
debates nacionais e internacionais abolicionistas ocorre uma prevalência de
discursos e elaborações jurídicas, políticas, sociológicas e antropológicas
desde fora da experiência”, afirmou. Para Denise, embora esses discursos não
sejam desprezíveis, é necessário analisá-los criticamente.
Nesse
contexto, a pesquisadora chamou atenção para o ‘Relatório do Mecanismo Nacional
de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)’ de 2022, que serve como ferramenta
crítica para refletir sobre o sistema prisional brasileiro. Elaborado em um
período de retomada democrática no país, o documento expõe aspectos
frequentemente negligenciados, especialmente no sistema prisional da Bahia —
estado onde Denise desenvolve suas pesquisas de campo de forma contínua.
A
professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Denise Carrascosa, destacou
os relatos de precarização das unidades prisionais baianas, como vazamentos,
estruturas danificadas, mofo e insalubridade. “No estado da Bahia, não é
necessário que a estatística nacional nos diga que 69% da população carcerária
é negra. Ao entrar em presídios de Salvador, vemos que quase 100% das mulheres
são negras”, afirmou.
Outro
aspecto crítico citado por Denise diz respeito à assistência à saúde: faltam
medicamentos, atendimento odontológico e condições adequadas para tratar
doenças crônicas e infecções, agravadas pelo ambiente insalubre. A
hipermedicalização psiquiátrica, com o uso indiscriminado de medicamentos para
controle psicológico, também foi mencionada como um reflexo do descaso
institucional.
A
pesquisadora denunciou também a precariedade do atendimento psicossocial,
apontando a falta de profissionais e de condições para garantir sigilo e
eficácia nos atendimentos. A ausência de acesso à internet compromete o
trabalho das equipes. As internas relataram a falta de contato com familiares e
desinformação sobre seus processos. “A desinformação sobre a própria vida penal
é generalizada e estratégica”, alertou Denise.
Segundo
ela, o Estado é responsável pela gestão do sistema prisional e, portanto, por
todas as violações ali cometidas, o que configura descumprimento de tratados
internacionais como as Regras de Mandela e de Bangkok. No entanto, ela observa
que o relatório do MNPCT não o responsabiliza diretamente, apenas recomenda
melhorias.
Denise
também citou a ADPF 347, decisão do STF que reconhece o estado inconstitucional
do sistema prisional brasileiro, e o plano Pena Justa, que propõe soluções para
superlotação e melhorias nas condições carcerárias.
Para
ela, a atuação do Estado muitas vezes se reduz à aparência de democracia. “O
Estado brasileiro funciona para não-negros”, afirmou. Ela defende uma abordagem
interdisciplinar para gerar o que chama de “efeito do real”, rompendo com
saberes compartimentados e propondo uma epistemologia crítica e integrada.
Apesar
das políticas públicas formuladas ao longo dos anos, Denise destacou que a
população carcerária feminina continua crescendo, e as práticas de tortura
persistem. Entre as principais vítimas estão mulheres negras, homens trans em
unidades femininas e mulheres trans em prisões masculinas — todos alvos de
violência intensificada.
A
pesquisadora afirmou que a voz negra é sistematicamente silenciada por fatores
como território, cor da pele, linguagem e religiosidade. Por fim, ela mencionou
o projeto “Corpos Indóceis e Mentes Livres”, que propõe o conceito de
“feminegrícidio de Estado” — a morte programada, contínua e estrutural de
mulheres negras encarceradas. Segundo Denise, essa morte se dá em múltiplas
dimensões: social, jurídica, espiritual, física e psíquica, constituindo uma
violência institucionalizada e estruturada.
Encerrando
sua fala, a professora comentou sobre o livro “Se Anastácia Falasse”, premiado
pelo 2º Prêmio Abolicionista Maria Firmina dos Reis (2023). A obra reúne textos
de nove mulheres encarceradas que, sob pseudônimos, relatam suas vivências e
fazem um apelo silencioso por liberdade.
Para
Denise, o livro é um monumento à voz de Anastácia, símbolo da resistência da
mulher negra. Ao dar visibilidade às narrativas silenciadas, a obra representa
um espaço legítimo de expressão, negado no sistema penal e no momento da
prisão.
Fonte:
Por Isabelle Ferreira e Mariana Sousa, no Informe Ensp

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