terça-feira, 22 de julho de 2025

Marcelo Zero: Brasil está sendo forçado a cruzar um rubicão geopolítico

Desde o início deste século, principalmente desde o primeiro governo Lula, que o Brasil vem diminuindo paulatinamente sua outrora forte dependência, em relação aos EUA.

Não se trata de “antiamericanismo”, ou algo que o valha.

Nosso país simplesmente acompanhou, de forma inteligente, as profundas mudanças geoeconômicas e geopolíticas que ocorreram, e continuam a ocorrer, neste século.

A ascensão célere e inexorável da China e dos chamados países emergentes criou um cenário econômico, comercial e geopolítico que permitiu ao Brasil projetar melhor seus interesses no exterior.

Ocorreu, nesse período um processo que Tullo VigevaniI e Gabriel Cepaluni denominaram, com precisão, de “autonomia pela diversificação”.

Nosso país, sem abandonar suas parcerias tradicionais com o EUA, a Europa e o Japão, diversificou muito suas parcerias estratégicas com os novos e ascendentes atores mundiais e investiu bastante na integração regional soberana e em uma aproximação ao Oriente Médio, à África e a outras regiões do planeta, nas quais tínhamos presença modesta.

Uma das consequências naturais dessa estratégia de busca de maior autonomia foi a diminuição paulatina do peso dos EUA em nosso comércio e em nossa economia.

Em 2001, cerca de 25% das nossas exportações iam para os EUA. Hoje, apesar de alguns retrocessos recentes, nossas exportações para aquele país representam apenas 12% do total. Ou seja, essas exportações caíram a menos da metade do que eram.

Claro que os EUA continuam a ser um parceiro muito importante para o Brasil, principalmente quando se leva em consideração a exportação de manufaturas. Nesse campo, os EUA continuam a ser o principal destino das exportações de nossas indústrias. Cerca de 9.500 empresas do Brasil exportam para lá.

Mas o fato é que o Brasil hoje tem parcerias diversificadas, que ajudam a amortecer o impacto da fúria protecionista de Trump.

No primeiro semestre deste ano, nossas exportações para a Ásia somaram cerca de US$ 70 bilhões (mais de US$ 48 bilhões apenas para China), para Europa ao redor de US$ 30 bilhões, para a América do Norte US$ 26, 6 bilhões (US$ 20 bilhões para os EUA), para a América do Sul US$ 20 bilhões, para a América Central e Caribe US$ 2,6 bilhões, Oriente Médio US$ 7,1 bilhões, África US$ 6,7 bilhões e Oceania US$ 616 milhões.

Nosso grande polo de exportação e parceria se deslocou para a Ásia e exportamos o mesmo volume para América do Sul e os EUA.

Entretanto, ante as inaceitáveis agressões de Trump contra o Brasil, essa estratégia de “autonomia pela diversificação” terá de ser consideravelmente intensificada.

Esperamos que a “autonomia pela integração” não tenha de ser substituída pela “autonomia pela ruptura”, mas parece inevitável, no quadro do Império hobbesiano que Trump está criando, que as relações bilaterais Brasil/EUA, que foram estabelecidas há mais de 200 anos, venham a passar por uma revisão e que o nosso país seja obrigado a se afastar mais dos EUA e se aproximar mais do BRICS e do chamado Sul Global.

De novo, não se trata de “antiamericanismo”. Nem o Brasil nem o BRICS são “antiamericanos”. Isso não faz sentido para os interesses do nosso país e desse bloco.

Julián Marias, filósofo conservador espanhol, discípulo de Ortega y Gasset, certa vez foi indagado se ele era “anticomunista”. Julián Marias respondeu que não se considerava “anticomunista”, pois ser “anti” alguma coisa significa ser dependente dessa coisa.

O Brasil é simplesmente pró-Brasil e dedica-se, junto com o BRICS, a construir uma ordem mundial mais simétrica, mais multipolar, próspera e democrática, assentada em um renovado multilateralismo.

O problema está em que Trump é “anti-BRICS”, “anti-China”, “anti-Brasil” etc.

Trump vê o mundo como um jogo de soma zero, no qual, para os EUA ganharem alguma coisa, o resto do mundo precisa, em contrapartida, perder algo. Essa é “lógica” de um “empresário” que veio do submundo mafioso da construção civil de Nova Iorque. Não é lógica que deveria inspirar um presidente ou um estadista.

Trump simplesmente não entende o mundo. Não entende as forças tectônicas que estão mudando irreversivelmente o cenário global, tornando-o crescentemente multipolar e diversificado.

Acha que as suas tarifas vão parar a rotação da Terra. Não vão.

Ao contrário, seus movimentos torpes, agressivos e isolacionistas vão acelerar as mudanças geoeconômicas e geopolíticas que vêm se consolidando há tempos.

Se os EUA continuarem nesse diapasão, dissonante e celerado, o Brasil talvez venha a ser forçado, para defender sua soberania, algo inegociável, a cruzar um Rubicão geopolítico.

A se tornar um opositor, não propriamente dos EUA, mas da criação de um Império hobbesiano, baseado na força e incompatível com os interesses do Brasil e de toda a humanidade.

O Brasil, é claro, vai continuar a apostar no diálogo e nas negociações. Mas paciência tem limites e lidar com gente que se comporta como uma dissidência do Homo sapiens as vezes torna-se impossível.

Trump, como a pandemia, deverá passar.

Restará ver, no entanto, como ficarão as inevitáveis cicatrizes de sua passagem, à la “Gengis Khan”, nas relações bilaterais Brasil/EUA e no cenário global.

Nada será como antes.

•        Paulo Nogueira Batista Jr: A turma (ou turba) da bufunfa

Hoje vou deixar de lado questões candentes do momento (Trump, tarifas, BRICS, eleições de 2026 etc.) para abordar um tema mais estrutural – a notória e tenebrosa turma da bufunfa. E vou pegar alguns de seus integrantes para Cristo.

Não sei se vocês conhecem esse conceito econômico. Como se trata de uma das poucas, talvez a única contribuição que fiz à literatura econômica, cabe uma rápida definição.

A turma da bufunfa é um poderoso agrupamento de banqueiros, financistas, rentistas e empresários não-financeiros de grande porte, acolitados por economistas e jornalistas serviçais. É um grupo muito influente, que se dedica a acumular dinheiro, custe o que custar, ignorando na cara dura preocupações sociais e nacionais.

Nem são propriamente brasileiros, mas “cidadãos do mundo” no pior sentido da expressão. São às vezes referidos como “Faria Lima”, outras vezes como “mercado”.

Mas a primeira designação é geograficamente muito restrita para um fenômeno que tem alcance nacional e internacional. A segunda sugere uma instância anódina, neutra, que funciona supostamente pelo livre jogo das leis da oferta e da demanda – quando se trata, na verdade, de uma confraria sinistra que atua frequentemente em conluio.

Formam uma plutocracia nociva, capaz de desestabilizar países inteiros, até países grandes. Deixados soltos, são capazes de danificar o planeta, como estamos vendo no século 21, com a degradação ambiental, a pobreza, a desigualdade social e a instabilidade recorrente das economias financeirizadas do Ocidente.

Um leitor me sugeriu, certa vez, dar mais precisão à teoria e falar em “turba da bufunfa”. De fato, turma é uma palavra simpática, como por exemplo em “A turma da Mônica” dos desenhos em quadrinhos. A tenebrosa coligação de bufunfeiros está mesmo muito mais para “turba”.

A ala tupiniquim dessa turba é, além disso, estritamente subserviente aos Estados Unidos. Caudatária em tudo dessa superpotência delinquente, não tem nem vestígios de imaginação e criatividade.

Um momento, porém. Devo ressalvar que há importantes exceções a isso no meio financeiro ou com passagem por ele, algumas notáveis, como Gabriel Galípolo, Eduardo Moreira, José Kobori e, em outros tempos, gigantes como Olavo Setúbal e Paulo Pereira Lira. Setúbal e Lira foram homens de espírito público e grande cultura. Mas são casos isolados.

<><> Um destacado integrante da turba da bufunfa

Faça, leitor ou leitora, um pequeno esforço de imaginação. Lá está um banqueiro qualquer ou um especulador de grande porte. Imaginem a figura – faz pose, peito estufado, hierático, orgulhoso da sua fortuna, olha os pobres mortais de cima para baixo.

Não lhe faltam ocasiões para subir ao púlpito e soltar o verbo. Saem as piores trivialidades, não raro em mau português, salpicado desnecessariamente de termos em inglês. A própria linguagem é colonizada. O banqueiro pode até parecer um idiota. Mas, não. É um espertalhão. Sabe ganhar dinheiro, legal ou ilegalmente, com esforço ou trambicagem. Enriquece, geralmente, recorrendo a tráfico de influência, corrupção e evasão fiscal.

Dou um exemplo. O leitor ou leitora sabe quem é Luís Stuhlberger? Até recentemente, eu nunca ouvira falar dele. Sinal alarmante de ignorância financeira, pois ele é um destacado e respeitado integrante da turba da bufunfa local.

Stuhlberger parece ser um caso típico desse grupo social, pelo menos nas opiniões que emite (não sei como ele enriqueceu). As suas opiniões foram publicadas com destaque em matéria publicada pelo jornal Valor (30 de maio, p. C3), que contém in nuce tudo que há de pior na turba da bufunfa.

O que disse o ilustre financista? Vou resumir sem fazer caricatura. Nem precisaria porque a entrevista já é caricatural em si mesma.

Segundo ele, o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre diversos itens e, em especial, sobre remessas de recursos para o exterior, foi um sinal de “perigo” e “assustador”.

Constitui, disse Stuhlberger, “uma aula de psicologia gratuita” de como o PT e o governo Lula pensam sobre os mais ricos. A tributação das remessas para fora do país e outras medidas que penalizam a alta renda permitem, declarou ele, continuar subsidiando as classes menos privilegiadas.

“O que ele [Lula] pensa é: ‘vamos distribuir dinheiro, vamos aumentar a arrecadação’, não importa que seja de uma maneira unfair”. Para ele o mais problemático foi a tentativa de tributar a compra de dólares: “Isso é muito scary, porque na minha opinião isso deveria aumentar na sua precificação o tail risk negativo do PT”. E diz também: “o trend da eleição de 2026 chegou, chegou antes do que se imaginava”.

Ele teme, além disso, que o aumento do IOF possa ser utilizado pelo governo Lula para aumentar o Bolsa Família, o que seria uma carta na manga para a eleição.

A sua grande preocupação, presente já no título da matéria (‘IOF maior é viés para controle de capital’), é que se tenha criado “uma cunha na conta de capital – que deu errado em todos os países”.

A mensagem que o governo Lula passa, segundo ele, é: ”Vocês ricos fiquem com seus reais, não têm que comprar dólar. Se quiserem comprar, paguem para mim um pedágio”. Stuhlberger deve estar ainda mais revoltado depois da decisão de Alexandre de Morais que confirmou a quase totalidade do decreto do Executivo sobre o IOF, inclusive o dispositivo que elevou a tributação sobre a compra de moeda estrangeira.

O que pessoas como Stuhlberger querem é manter a liberdade para os movimentos de capital, uma das muitas heranças desastradas do governo Fernando Henrique Cardoso.

Com ela, uma minoria de ricaços locais e investidores estrangeiros adquiriram a possibilidade de entrar e sair do Brasil com facilidade. Isso inibe a política econômica nacional porque cria um potencial de instabilidade cambial que volta e meia se materializa. O último episódio foi a turbulência no final de 2024.

Segundo Stuhlberger, os controles de capitais deram errado em toda parte. Falso. Ao contrário, há casos notáveis de sucesso na aplicação de restrições à entrada e saída de capitais. Pode-se destacar Índia e China.

A China, um caso de sucesso estrondoso, mantém até hoje controles rigorosos sobre a movimentação transfronteiriça de capital. E não teria alcançado o que alcançou se tivesse aceitado o receituário neoliberal que vitimou e vitima até hoje diversas economias latino-americanas.

A Argentina é o exemplo mais espetacular, mas o Brasil também sofre desse problema. Liberdade para os capitais privados implica imobilizar, pelo menos em parte, as políticas monetárias, cambial e fiscal.

Notem a linguagem colonizada. O ilustre financista apela repetidamente para termos em inglês mesmo quando há equivalentes rigorosamente equivalentes na nossa língua. Unfair, por que não dizer injusto? Scary por que não assustador? Tail risk em vez de risco de cauda?

É a forma tipicamente vira-lata de tentar se mostrar “internacional” e “sofisticado”. Só impressiona os ingênuos. A elite brasileira é mesmo um lixo, como dizia Leonel Brizola.

Percebo de repente que o artigo está violento demais. Paciência. Vai assim mesmo.

<><> Economistas serviçais

Concluo com uma breve referência ao papel (ou papelão) dos economistas.

Vimos que, com base na sua fortuna, um banqueiro ou financista se sente autorizado a pontificar sobre questões macroeconômicas e macropolíticas, nacionais e internacionais.

Se o faz, as suas opiniões são acatadas por muita gente como perfeitamente válidas. Por burrice ou interesse escuso, e mais pelo segundo motivo do que pelo primeiro, abre-se espaço na mídia para financistas toscos, mas que, inconscientes da própria insignificância intelectual e humana, não se envergonham de proclamar os mais surrados chavões, desde que isso atenda a seus interesses estreitos.

No entanto, nem sempre o capitalista financeiro quer se expor em público. Recorre então aos economistas do mercado. Contrata a peso de ouro, um ex-presidente ou ex-diretor do Banco Central, por exemplo, que passa a servir de porta-voz dos seus interesses, em público e nos bastidores.

Querem alguns exemplos? Dou nome aos bois. Basta percorrer a lista de ex-dirigentes do Banco Central – Gustavo Franco, Pérsio Arida, Armínio Fraga, Gustavo Loyola, Ilan Goldfajn, Roberto Campos Neto, entre outros. Não arriscam opiniões próprias e se comportam, em geral, como meros repetidores da cartilha neoliberal.

Arida é uma exceção, pois foi um dos arquitetos da URV, ideia original que muito contribuiu para a estabilização da moeda nacional em 1994. Franco tem uma tese de doutorado interessante sobre a estabilização do marco alemão nos anos 1920 (repleta de equívocos, porém).

Os demais ainda estão nos devendo algo que preste. O próprio Arida, tendo se dedicado durante décadas a atividades financeiras, involuiu e nada mais diz ou escreve (até onde sei) de interessante ou original.

Como sempre digo, a longa dedicação ao mercado parece provocar progressivo estreitamento do horizonte intelectual. O sujeito começa como economista promissor e termina como soldadinho de chumbo da turba da bufunfa.

A ganância e a vontade de fazer fortuna leva esses profissionais a abdicar da independência que é indispensável à criatividade. É o que acontece com os que passam pela porta giratória do Banco Central.

Por antever possiblidades lucrativas, diversos economistas se dispõem a passar uma temporada no BC ou em outro setor da área econômica do governo, mesmo ganhando por um tempo salários relativamente baixos. Não importa. Terão futuro promissor, desde que dancem conforme a música enquanto lá estão. Depois, apoiados pela mídia tradicional, consolidam a “credibilidade” conquistada com subserviência. E, mais importante, embolsam a bufunfa.

Como disse Proudhon, no século 19, “la proprieté c’est le vol” (a propriedade é roubo).

 

Fonte: Viomundo

 

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