Israel
e a crise da exceção: hegemonia nuclear e hierarquia racial
Mesmo
após o cessar-fogo anunciado por Donald Trump e as declarações de vitória de
Irã e Israel, permanece uma pergunta: o que está realmente em jogo no Oriente
Médio?
Israel
é a única potência nuclear da região. Ainda assim, o discurso dominante insiste
que o maior risco vem do Irã, caso o país obtenha armamento atômico. Essa
equação, aceita sem contestação por anos, pode estar errada desde o início. O
que está em jogo, para Tel Aviv e para Washington, talvez não seja segurança,
mas a erosão de um regime hierárquico de privilégio e hegemonia.
Para
compreender esse jogo de forças, é fundamental analisar um contexto no qual as
ações de Israel e do governo Netanyahu não se explicam por um único fator, mas
resultam de uma articulação de forças militares, geopolíticas e raciais,
operando de maneira interdependente nas esferas doméstica, regional e
internacional. Trata-se de uma dinâmica complexa, em que essas dimensões se
reforçam mutuamente para sustentar um regime de dominação e excepcionalismo.
Essa
articulação tem, em sua essência, um componente discursivo central. A política
israelense de ocupação e apartheid se sustenta na construção
do palestino como um “outro” ontológico, um corpo racializado a ser controlado,
cercado e vigiado. Já o Irã ocupa, nesse mesmo regime discursivo, a posição de
inimigo estratégico: um Estado convertido em ameaça sistêmica. Sua eventual
capacidade de dissuasão impõe limites inéditos ao uso irrestrito da força e,
com isso, desafia a condição de exceção permanente que Israel reivindica para
si. Ambos os casos se organizam por meio de uma lógica de alterfobia, que
fabrica sujeitos a partir da negação: o indesejado, o temido, o desautorizado a
existir politicamente.
O temor
de Israel diante de um Irã nuclear, portanto, não pode ser lido sob uma única
chave. Ele ativa um padrão mais profundo de administração da diferença, no qual
o “outro” só pode ser reconhecido como ameaça, jamais como sujeito legítimo de
poder, circulação ou soberania.
A
assimetria armada tem garantido a Israel uma posição privilegiada: a de ator
hegemônico, capaz de intervir militarmente em Gaza, no Líbano, na Síria ou
contra alvos iranianos, sem temor de retaliações equivalentes. Essa posição de
excepcionalidade é sustentada, entre outros fatores, pela chamada “Doutrina
Begin”, formulada em 1981 após o bombardeio do reator nuclear iraquiano de
Osirak, que estabelece o suposto direito de Israel a destruir preventivamente
qualquer capacidade nuclear emergente na região. Trata-se, na prática, de uma
espécie de Doutrina Monroe aplicada ao Oriente Médio: nossa
região, nossas regras. Israel atua como peça central da projeção de poder
americana, operando para impedir o surgimento de potências regionais autônomas
e garantir o controle de Washington sobre uma das regiões mais estratégicas e
ricas do planeta.
O
momento atual da ordem global torna essa dinâmica, de caráter imperialista e
colonial, ainda mais crítica. A ascensão da China como rival sistêmico e a
invasão da Ucrânia pela Rússia, à revelia dos Estados Unidos e da Europa,
sinalizam um período de reconfiguração profunda nas formas de projeção e
disputa de poder. Nesse cenário, o Irã representa não apenas uma ameaça
regional a Israel, mas também um desafio sistêmico ao controle exercido pelos
Estados Unidos.
Quando
a justificativa para atacar o Irã se apoia em argumentos morais ou culturais, a
hipocrisia dos critérios ocidentais torna-se evidente, sobretudo na comparação
com outros aliados do Ocidente, como a Arábia Saudita (um regime absolutista
que financia grupos extremistas, mas que ainda assim é tratado como um
“parceiro confiável” em razão de sua utilidade estratégica). O Irã, por sua
vez, não é condenado por seu autoritarismo, mas por resistir ao monopólio da
violência exercido por Israel. Sua aproximação crescente com China e Rússia não
é apenas econômica: trata-se de uma aliança geopolítica que ameaça décadas de
dominação ocidental no Oriente Médio. Nesse contexto, a possibilidade de um Irã
com capacidade nuclear, ainda que meramente dissuasiva, representa um abalo
profundo nas relações de poder.
Num
cenário hipotético de um Irã nuclear, Israel se veria, pela primeira vez,
diante de limites concretos à sua liberdade de ação militar. Seria forçado a
negociar em condições mais paritárias, a ponderar as consequências antes de
agir e a reconhecer que já não mais detém a excepcionalidade armada. O que está
em jogo, portanto, não é a segurança, mas o privilégio, diretamente vinculado à
manutenção da hegemonia americana por meio de seu principal aliado regional.
Essa
disputa por hegemonia não se dá apenas no plano militar: ela também se trava no
plano simbólico. Não é raro que qualquer crítica ao Estado israelense seja
imediatamente rotulada como antissemitismo. Essa reação faz parte de uma luta
por significados em aberto, que se intensifica nos momentos de conflito armado.
Afinal, a guerra não se limita ao campo de batalha: ela é também uma
articulação de discursos. Importa, portanto, afirmar: a crítica aqui se dirige
ao projeto político liderado por Benjamin Netanyahu e sua coalizão de
ultradireita, não ao povo judeu nem ao direito de existência do Estado de
Israel. Trata-se de um governo que vem aprofundando práticas autoritárias e
supremacistas, intensificando o apartheid imposto aos
palestinos e criminalizando a dissidência interna. Denunciar esse regime não é
intolerância religiosa ou étnica: é responsabilidade política diante de um
sistema de opressão racial, colonial e militar.
A real
ameaça, para o governo Netanyahu, não é ser destruído pelo Irã. Mesmo quando
projeta, retoricamente, a destruição do regime iraniano, esse tipo de
formulação permanece no campo da falácia estratégica. O que está realmente em
jogo é ser forçado a aceitar limites. É perder o privilégio de exercer
violência sem resposta proporcional. É ter que negociar em condições menos
assimétricas com rivais regionais. O discurso da “ameaça existencial” conecta
propositalmente diferentes medos (autoritarismo iraniano, memória do
Holocausto, antissemitismo, terrorismo) para justificar uma posição específica:
Israel como exceção permanente no Oriente Médio. Trata-se de uma sobreposição
intricada entre ameaça militar e simbólica. A simples hipótese de um Irã com
capacidade nuclear rompe essa narrativa, forçando Israel a se submeter às
mesmas regras que impõe aos demais.
Essa
assimetria se manifesta de forma ainda mais evidente na relação com a
Palestina. Segundo dados de organizações como Human Rights Watch e B’Tselem,
Israel exerce controle absoluto sobre territórios, recursos, deslocamento
populacional e acesso a direitos civis, características que atendem à definição
jurídica internacional de apartheid. A relação entre Israel e os
palestinos não é de conflito, mas de dominação. E essa dominação só se sustenta
enquanto houver supremacia absoluta da força, apoio irrestrito dos Estados
Unidos e um sistema internacional amplamente disfuncional, incapaz de impor
limites efetivos a essa prática. Um cenário assim é ideal para governos
autoritários como o de Netanyahu. É um sistema desenhado para garantir
supremacia etno-racial e territorial.
Muitos
especialistas argumentam que o Irã é um regime autoritário, teocrático, que
persegue minorias e ameaça abertamente o Estado judeu. Parte disso é verdade,
sobretudo no que diz respeito ao caráter autoritário e às perseguições
internas. Mas isso não legitima automaticamente o direito de Israel agir como
potência colonial na região. A crítica aqui não relativiza os problemas
internos do Irã, mas recusa seu uso como cortina de fumaça para justificar
atrocidades e violações de direitos humanos cometidas por Israel. Outro
argumento recorrente sustenta que Israel é a única democracia funcional do
Oriente Médio e que, por isso, precisa recorrer à força para se proteger.
Embora Israel mantenha instituições democráticas funcionais para sua população,
uma democracia que subjuga milhões de pessoas, nega direitos com base em etnia
e impõe bloqueios territoriais sistemáticos não pode ser considerada plena.
“Democracia para nós, imperialismo para eles” não é novidade. A postura do
governo Netanyahu, caracterizada por suas alianças com setores extremistas que
defendem a anexação total da Cisjordânia e a expulsão formal dos palestinos de
qualquer projeto futuro de soberania, indica uma estratégia política que se
beneficia ou é indiferente às críticas sobre a natureza de sua democracia.
Um
Oriente Médio menos atravessado por hierarquias e assimetrias estruturais
exigiria a desnaturalização da excepcionalidade israelense e a construção de
mecanismos de reconhecimento mútuo, negociação política efetiva e limitação da
violência unilateral. Para Israel, isso significaria renunciar à posição de
enclave armado autorizado a operar acima do direito internacional. Nesse
contexto, a capacidade nuclear iraniana não representaria necessariamente uma
ameaça existencial, mas sim um ponto de inflexão na ordem regional fundada na
supremacia e na impunidade militar.
A
questão nuclear iraniana, no entanto, ultrapassa a esfera regional e se insere
na disputa mais ampla pela reconfiguração da ordem global. A posse desse tipo
de capacidade tenderia a conferir ao Irã maior peso diplomático nas negociações
internacionais, algo que, historicamente, enfrenta resistência por parte dos
Estados Unidos. Isso não constitui uma defesa da proliferação nuclear, mas
evidencia como as dinâmicas de poder moldam os critérios de legitimidade na
política internacional.
É
preciso lembrar que Israel nunca assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear
(TNP) e, ainda assim, mantém um arsenal atômico não declarado de algo entre 80
a 400 ogivas nucleares, segundo a estimativa de especialistas, com o respaldo
tácito das grandes potências ocidentais. Ao mesmo tempo em que acusa o Irã de
buscar armamento nuclear, Israel jamais foi submetido aos mesmos padrões de
fiscalização ou responsabilização. Essa assimetria revela a hipocrisia da ordem
global, na qual a proliferação é tolerada ou condenada conforme os alinhamentos
geopolíticos, e não com base em princípios universais. Essa é a gramática do
privilégio: algumas regras se aplicam a todos, outras se aplicam a todos,
exceto um. Nesse contexto, vale perguntar: Israel está mais próximo do modelo
de contenção imposto ao Irã ou do estatuto de exceção concedido à Coreia do
Norte? Ou estaria, talvez, numa posição ainda mais privilegiada, como a única
potência nuclear cuja existência não pode sequer ser oficialmente reconhecida,
mas que opera com total liberdade estratégica?
Israel
não teme o Irã. Teme a ruptura da hierarquia que sustenta sua posição regional.
Teme, ainda mais, a queda do muro que o separa do restante da região. Não o
muro físico, mas o simbólico: aquele que garante sua condição de enclave
armado, operando acima das normas do direito internacional e das resoluções das
Nações Unidas, que devem ser cumpridas por outros, mas nunca por si. O que está
em jogo, no fundo, não é a existência de Israel, mas a continuidade de um
sistema articulado de dominação: o controle colonial dos territórios
palestinos, a hierarquia racial que estrutura esse controle, a supremacia
militar regional que garante impunidade e a projeção hegemônica americana que
sustenta todo esse arranjo. Talvez, por isso mesmo, a possibilidade de dissuasão
seja tão temida: porque ela exige justamente o fim da condição de guardião
exclusivo das chaves: das fronteiras, dos direitos, da existência política.
Com o
avanço de líderes autocráticos e um sistema internacional falido, incapaz de
impor freios e contrapesos às grandes potências, a corrida armamentista já não
parece uma ameaça. Parece destino.
Fonte:
Por Renato Xavier, no Blog da Boitempo

Nenhum comentário:
Postar um comentário