Irã,
China e Nova Rota da Seda: entenda como agressão de EUA/Israel também mira o
Brics
No dia
29 de maio de 2025, um trem de carga procedente da China chegou a Teerã, Irã,
carregado com 32 contêineres de produtos comerciais. Esse marco, aparentemente
logístico, é na realidade um desafio direto à ordem comercial liderada pelo
Ocidente. Com uma rota de mais de 10 mil km que atravessa o Cazaquistão e o
Turcomenistão, a ferrovia evita as rotas marítimas controladas pelos EUA e se
enquadra na Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI) da China.
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Mas
esse trem simboliza algo mais: a consolidação do Irã como eixo estratégico em
um mundo fragmentado. Em um contexto de sanções estadunidenses, conflitos no
Mar Vermelho e a expansão dos Brics, o corredor China-Irã representa uma
mudança tectônica na geopolítica energética e comercial.
O Irã
se encontra no estratégico estreito de Ormuz, que conecta o Golfo Pérsico ao
Golfo de Omã e, a partir daí, ao Mar Arábico. O estreito de Malaca é uma via
fluvial estreita por onde passa uma parte significativa das importações de
petróleo da China, procedentes da Ásia Ocidental e da África. No entanto, dado
que o Mar Vermelho se tornou uma zona de conflito entre as forças de
resistência do Iêmen, por um lado, e Israel e seus aliados, por outro, os
custos do transporte marítimo dispararam cerca de 250%, segundo a BBC, e o
tráfego caiu 70%.
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Evitar
o gargalo do estreito de Malaca é lógico; sem presença militar estadunidense ao
longo da linha ferroviária, Teerã pode exportar petróleo e importar bens de
Pequim sem os olhares indiscretos de Washington. A alternativa ferroviária
China-Irã não apenas evita o Mar Vermelho, mas reduz o tempo de transporte de
45 dias (via marítima) para 14 dias. O Irã fornece 15% do petróleo importado
pela China (740 mil barris por dia em abril de 2025).
Por
várias vias, a China está se protegendo do bloqueio energético e o Irã das
sanções, como mostra o mapa. A Ferrovia China-Paquistão é outro exemplo
ferroviário que conectaria a China e o Paquistão por meio de um corredor
econômico. Faz parte da Iniciativa do Cinturão e Rota da China, também
conhecida como a Nova Rota da Seda. O que está claro é que o Irã está se
transformando em um polo comercial e estratégico de energia, bens e serviços
sem supervisão americana.
O Irã
foi formalmente admitido como membro do Brics em 2024, junto com Egito, Etiópia
e os Emirados Árabes Unidos. Isso significa que, em 2025, sua posição dentro do
bloco ainda seria incipiente, mas simbolicamente significativa, especialmente
como fornecedor energético chave para a China. O Brics, em parte, representam
uma contra-narrativa da ordem global liderada pelo Ocidente. A inclusão do Irã
foi percebida como um fortalecimento desse bloco alternativo, especialmente no
Oriente Médio.
Os
Brics não são uma aliança militar (como é a Otan), mas sim um mecanismo de
coordenação econômica e política. Portanto, não existe uma cláusula de defesa
mútua, mas um ataque ao Irã poderia ser interpretado como um desafio aos
interesses coletivos do grupo, especialmente aos da China e da Rússia.
Ainda
assim, o ataque contra o Irã poderia ser visto como uma tentativa de minar a
crescente influência do Brics e perturbar sua coesão. Mas, especificamente, tem
implicações econômicas, por um lado. O Irã é um importante produtor de energia
e um ponto estratégico para as rotas comerciais. A instabilidade no Irã devido
ao conflito poderia afetar os mercados e o comércio energético mundial,
impactando as economias dos países dos Brics, muitos dos quais são importantes
consumidores ou produtores de energia.
A
Rússia, por sua vez, em guerra com a Ucrânia e sancionada pelo Ocidente, vê o
ataque ao Irã como uma escalada contra o “eixo antiocidental” que ambos
integram. No entanto, sua capacidade de resposta está limitada pelo conflito
atual. Os outros membros, como Índia, África do Sul e Brasil, teriam posturas
mais ambíguas. A Índia, por exemplo, tem relações com Israel e não apoiaria
automaticamente o Irã. África do Sul e Brasil poderiam condenar o ataque em
fóruns multilaterais, mas sem ações concretas.
Zbigniew
Brzezinski descreveu uma progressão nas grandes crises: da guerra encoberta,
passando pela guerra indireta, até a confrontação direta. Podemos traçar uma
analogia das 5 etapas, em termos gerais, com os acontecimentos atuais:
• Etapa de guerra por procuração (proxy):
conflitos como o da Ucrânia (Rússia) e do Irã que cumprem papéis secundários.
• Confrontação direta: Israel ataca
território iraniano: cruza um limiar.
• Ativação da aliança: os membros dos
Brics (China, Rússia) respondem diplomaticamente e se arriscam a abastecer o
Irã indiretamente.
• Globalização do conflito: as mudanças no
mercado energético mostram que os problemas regionais afetam os sistemas
globais.
• Realinhamento bipolar: poderíamos estar
presenciando um retorno a uma ordem fragmentada: blocos rivais que se definem
através de posições opostas sobre o conflito no Oriente Médio.
Ainda
que não se trate de um ataque que envolva todo o Brics, lembra profundamente o
modelo de escalada de Brzezinski: o ataque de Israel a uma nação afiliada aos
Brics (respaldada econômica e politicamente por China e Rússia) pode tensionar
a coesão do grupo e empurrá-lo para uma postura mais unificada e de oposição às
políticas alinhadas com o Ocidente.
Se a
teoria de Brzezinski for válida, estamos à beira da etapa 3 → 4, onde uma guerra
localizada corre o risco de provocar uma confrontação
de blocos mais ampla, ou uma reorganização das alianças.
• Rotas, recursos e emergência climática:
o papel da Otan na geopolítica contemporânea do Ártico
À luz
da crescente importância ambiental, econômica e militar do Ártico, a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) delineia sua política para a
região. Em um cenário marcado pelo degelo acelerado no Ártico — que altera
padrões climáticos globais e abre rotas marítimas estratégicas, como a Rota do
Mar do Norte — o Ártico tornou-se palco de competição pelos vastos recursos de
hidrocarbonetos e minerais, bem como por reivindicações territoriais sobre
dorsais submarinas.
Desde
2022, as tensões entre Rússia e países ocidentais interromperam boa parte da
cooperação regional e impulsionaram a expansão da infraestrutura militar russa,
enquanto a adesão da Finlândia e da Suécia elevou para sete o número de Estados
árticos membros da Otan. Nesse contexto, o debate na Aliança oscila entre a
adoção de uma presença mais robusta no extremo norte e a cautela para evitar
uma escalada com Moscou, tornando o Ártico um eixo crucial na geopolítica
contemporânea.
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A importância ecológica e econômica do Ártico
O
Ártico aquece quase quatro vezes mais rápido que a média global, acelerando o
degelo da criosfera e contribuindo para cerca de 0,86 mm/ano da elevação média
do nível do mar (IPCC, 2023). Esse processo tende a alterar os padrões
atmosféricos do hemisfério norte e a expor grandes áreas a eventos climáticos
extremos.
Ao
mesmo tempo, a região abriga cerca de 13% das reservas não-descobertas de
petróleo e 30% de gás natural do planeta (USGS, 2008), além de depósitos de
níquel, cobre e terras-raras. A redução do gelo marinho também torna viável a
Rota do Mar do Norte, que pode encurtar em até 40% a viagem Xangai–Roterdã em
relação ao Canal de Suez (The Arctic Institute, 2024).
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Esses
fatores intensificam a competição por jurisdições submarinas — Rússia, Canadá e
Dinamarca reivindicam, por exemplo, as dorsais de Lomonosov e Mendeleev — e
condicionam o papel da Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLCS). Em
paralelo, fóruns como o Conselho do Ártico coordenam políticas ambientais,
enquanto o Conselho Barents/Euro-Ártico promove a cooperação econômica e de
infraestrutura. O equilíbrio entre exploração e preservação, portanto, depende
tanto de regimes multinacionais robustos quanto de acordos bilaterais, como o
tratado de delimitação marítima Rússia-Noruega de 2010.
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Da Guerra Fria ao imediato pós-1991
Entre
1945 e 1991, o Ártico tornou-se um dos eixos centrais da competição estratégica
Leste-Oeste. Para a União Soviética, a Frota do Norte e as bases em Kola,
Novaya Zemlya e Franz Josef Land integravam a doutrina do “bastião”, destinada
a garantir rotas seguras para submarinos nucleares balísticos (SSBN) no Mar de
Barents (SWP, 2022). A Otan, por sua vez, concentrou-se em controlar a
travessia dos SSBN pelo GIUK Gap e instalou a linha DEW e o NORAD para alerta
antecipado de mísseis. Exercícios navais como Mainbrace (1952) e Northern
Wedding (1978-86) buscavam sinalizar capacidade de bloqueio do Atlântico Norte.
Apesar
desse peso estratégico, divergências internas limitaram iniciativas conjuntas
da Aliança: o Canadá temia que a instalação de bases permanentes da Otan na
Passagem Noroeste comprometesse sua soberania (Huebert, 2024), enquanto a
Noruega defendia uma dissuasão robusta baseada em exercícios frequentes e
pré-posicionamento de material aliado, mas mantinha a política de “no foreign
bases, no nuclear weapons” (Tamnes, 1991). A implosão da URSS reduziu
temporariamente o poder naval russo e abriu espaço para fóruns de cooperação —
prelúdio da criação do Conselho do Ártico em 1996. Esse hiato, porém, foi
breve: já a partir da metade da década de 2000, Moscou iniciou a revitalização
de sua infraestrutura polar.
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Relevância geopolítica do Ártico na terceira década do século 21
A
partir de 2006, a Rússia reativou estrategicamente aeródromos polares, como
Nagurskoye (Franz Josef Land) e Alytaus (Novaya Zemlya), e modernizou portos e
radares na AZRF (Zona Ártica da Federação Russa), impulsionando um programa de
exercícios anuais de artilharia e lançamento de mísseis antinavio (SWP, 2022).
No entanto, a geopolítica do Ártico encontrou seu ponto de virada em 2022,
quando se iniciou a Operação Militar Especial na Ucrânia, devido ao aumento das
tensões entre a Rússia e os países ocidentais.
Em
março do mesmo ano, sete membros do Conselho do Ártico anunciaram que pausaram
os trabalhos com a Rússia (Joint Statement, Government of Canada, 2022). Os
exercícios trilaterais de busca e salvamento entre Rússia, Noruega e EUA também
foram cancelados (High North News, 2022). O choque desse ano reacendeu entre
analistas ocidentais o debate sobre uma política da Otan para o Ártico — desde
uma abordagem cautelosa até propostas de criação de um Comando Conjunto da
Aliança para o Alto Norte (The Arctic Institute, 2023), visando monitorar e
conter a expansão infraestrutural e militar e russa na AZRF.
Em
setembro de 2023, a Rússia retirou-se formalmente do Barents/Euro-Arctic
Council, citando hostilidades ocidentais (Arctic Portal, 2023), interrompendo
também colaborações científicas e de direitos indígenas.
Paralelamente,
a Aliança também ganhou a adesão de mais dois países árticos, a Finlândia (4
abril de 2023) e a Suécia (7 de março de 2024), o que ampliou o escopo de
atuação da organização na região e impactou no balanço de poder do Conselho do
Ártico. Atualmente, 7 dos 8 países árticos são membros da Otan.
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Atuação da Otan por meio de Estados Árticos-membros
Apesar
de não possuir, até o momento, uma política oficial para o Ártico, é plausível
afirmar que a organização atua na região através dos seus membros, com
destaque, por exemplo, para a Noruega, Islândia, Dinamarca e, mais
recentemente, para o Canadá, desde a atualização da sua política de defesa em
2017.
A
Noruega — o segundo maior investidor em infraestrutura polar, atrás apenas da
Rússia — mantém exercícios regulares e pré-posiciona material aliado (High
North News, 2025). Dinamarca (Groenlândia) abriga a base área americana de
Thule e redes de sensores que reforçam a vigilância marítima e aérea do GIUK
Gap (OSW Commentary, 2021). O Canadá expandiu a sua importância para a
articulação da Otan no Ártico, permitindo exercícios da Aliança no seu
território e fortalecendo a coleta e compartilhamento de informações.
No
entanto, a estratégia de atuação dos países árticos membros da Otan varia. O
Canadá, apesar da sua importância no Ártico para a Otan, evita tradicionalmente
a expansão da organização através da implantação de bases no seu território,
com receios de uma perda de soberania e aposta na utilização de outros
mecanismos para o diálogo e cooperação na região. Já a Noruega e os Estados
Unidos, por exemplo, tradicionalmente defendem uma presença militar mais
robusta.
Com o
segundo mandato de Donald Trump, iniciado em 20 de janeiro de 2025, cresce a
expectativa sobre o papel que o Ártico ocupará na estratégia dos Estados Unidos
— tanto a partir do Alasca quanto por meio do Joint Force Command Norfolk (JFC
Norfolk), na Virgínia, responsável por proteger as linhas de comunicação
transatlânticas que passam pela chamada “Brecha Groenlândia-Islândia-Reino
Unido” (GIUK Gap).
Em 21
de março de 2025, o Allied Maritime Command (MARCOM) anunciou que o Standing
NATO Maritime Group 1 ampliou as patrulhas aéreas e navais na GIUK Gap. Já em 6
de junho de 2025, foi divulgado que Noruega, Finlândia, Suécia, Dinamarca e
Islândia estão em vias de ficar sob a autoridade operacional do JFC Norfolk,
alinhando seus planos de defesa regionais à estratégia aliada e reforçando a
importância do Ártico para um dos principais membros da Aliança. Em suma, a
Otan projeta poder no Ártico sobretudo por meio das capacidades nacionais de
seus membros costeiros e de suas bases e centros de sensores.
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Movimentações recentes e dilema estratégico
Não
faltam apelos de analistas ocidentais para que a Otan estabeleça uma política
clara para o Ártico, superando os desacordos internos e solidificando rotinas
de vigilância e dissuasão. Já podem ser observadas diversas iniciativas da
Aliança: a reativação de bases militares nos países nórdicos (High North News,
2025), exercícios conjuntos mais frequentes (Steadfast Defender 24, 90 mil
tropas; Nordic Response 24, 20 mil tropas) e o reforço do comando aéreo da
Noruega e da presença naval no norte (NATO, 2024; Norwegian Armed Forces,
2024).
Em
outubro de 2024, o Almirante Rob Bauer, Presidente do Comitê Militar da Otan,
destacou na Arctic Circle Assembly a importância geopolítica do Ártico,
advertindo para o avanço militar russo, a cooperação sino-russa e as novas
rotas marítimas, e sublinhou o papel dos países nórdicos no Conceito de Defesa
Nórdico (Speech by Admiral Bauer, NATO, 2024). Já em março de 2023, Noruega,
Dinamarca, Suécia e Finlândia assinaram um acordo-quadro para criar um comando
aéreo nórdico e fortalecer o compartilhamento de inteligência na região
(Reuters, 2023).
Esses
movimentos reforçam que a Aliança já pratica uma presença mais ativa no Alto
Norte, mas o futuro caminho estratégico permanece incerto. Caso opte por uma
postura de contestação aberta — intensificando bases, exercícios e
patrulhamento — arrisca provocar uma crise sem precedentes com a Rússia, que vê
tais medidas como cerco direto ao seu bastião no Mar de Barents. Por outro
lado, uma abordagem de foco limitado deixaria espaço para que Moscou consolide
seu avanço industrial e militar na região. Do lado russo, analistas classificam
qualquer reforço aliancista como ameaça à sua soberania na região, justificando
a necessidade do programa de modernização das bases polares.
Diante
do derretimento acelerado da criosfera e das novas capacidades econômicas
liberadas pela Rota do Mar do Norte e pela exploração de recursos, torna-se
praticamente impossível para os países ocidentais simplesmente ignorar a Rússia
ou recusar o diálogo com o maior Estado ártico. A magnitude dos desafios
ecológicos e das oportunidades econômicas reforça que qualquer estratégia para
o Ártico deverá, cedo ou tarde, envolver contatos e arranjos práticos com
Moscou, independentemente das tensões políticas atuais.
Fonte:
Diálogo Sul

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