Inovação
em tempos de crise e reformulação mundial
Iniciados
há dezessete anos, os BRICS no início contavam Brasil, Rússia, Índia e China,
desde 2011 com África do Sul; doravante BRICS plus, com
seis novos participantes mais uma dezena de associados.
Essa
novidade nas relações e cooperação internacional, entre os onze mais dez,
mostra que os BRICS alcançaram considerável visibilidade desde sua criação.
Também vale mencionar o BRICS como dado inovador para uma nova ordem mundial.
Se essa se materializará ainda não está determinado. Com sua atuação, os BRICS
podem contribuir para essa nova configuração.
Temos
sinais positivos e duvidosos na extensa Declaração conjunta – “fortalecendo a
cooperação do sul global por uma governança mais inclusiva e sustentável”, do
Rio de Janeiro, 6 de julho de 2025.
É
alvissareiro ver menção – par. 104 (2025) ao “destrutivo legado do colonialismo
e do tráfico de escravos” – alinhado com iniciativas da ONU e da UA –
reiterando a necessidade de “intensificar a luta contra o racismo, a
discriminação racial, a xenofobia e a intolerância racial, bem como a
discriminação com base na religião, fé ou crença, em todas as suas formas
contemporâneas no mundo, incluindo tendências alarmantes de crescentes discurso
de ódio, desinformação e informações falsas – disinformation and misinformation”.
É
amplamente conhecido e em grande parte permanece uma questão de controvérsia,
entre diferentes correntes entre os chamados “realistas” e “idealistas”, no
direito internacional e nas relações internacionais, se “princípios e normas”
ou somente “necessidades e interesses” governam a ação dos estados.
Dificilmente se pode esperar um julgamento a respeito alcance aceitação geral.
Cada lado pode argumentar. E no meio, há espaço para variações, combinando
diferentes escalas de ‘força’ e ‘princípios’, na tentativa de encontrar
equilíbrio entre poder e legitimidade no cenário internacional. O BRICS está
nessa encruzilhada.
É
promissor ver reiteradas menções – ex. par. 4 (2025) – ao “compromisso com a
reforma e o aprimoramento da governança global, promovendo mais justo,
equitativo, ágil, efetivo, eficiente, responsável, representativo, legítimo,
democrático e responsável sistema internacional e multilateral, com espírito de
ampla consultação, contribuição conjunta e benefícios compartilhados”.
Dada a
premissa da inexorabilidade da busca de inserção internacional para cada país,
iniciam-se as variações sobre o tema, a fim de determinar com quem cooperar e
como a integração pode ser interpretada, e onde pode ser prioritária: a escolha
dos parceiros para tais iniciativas é crucial para os resultados. Múltiplas
análises e mudanças de circunstâncias ocorreram nos últimos vinte e cinco anos
e são suficientes para mostrar as mais variadas respostas.
Como
considerar a cooperação entre os 11 + 10 BRICS e o papel que podem ter no
mundo? Como resposta, as menções (par. 5, 2025) a “mercados emergentes e países
em desenvolvimento, bem como países menos desenvolvidos” ou nas siglas: EMDCs
– Emerging markets and developing countries e LDCs – Least
developed countries. O BRICS também tem olhar voltado para outros países
‘menos favorecidos’ – embora não fique claro como.
A
cooperação é questão crucial e não pode ser evitada, mesmo para quem a renega,
no estado do mundo. Prova disso pode ser encontrada no par. 82 (2025)
“multilateralismo e a cooperação do sul global podem formatar governança mais
inclusiva e sustentável para um futuro melhor”. Todo mundo gosta de frases como
esta, mas falta esclarecer como colocar em funcionamento o bom propósito!
Os
BRICS podem buscar seu papel no “contexto atual de incerteza e volatilidade”,
por meio da “reforma das instituições de Bretton Woods (BWI)”,
Fundo Monetário Internacional e o grupo Banco Mundial – enfatizam os pars. 10,
11 e 12 (2025) – onde se fala em “reformar sua estrutura de governança para
refletir a transformação da economia mundial desde seu estabelecimento” –
oitenta anos desde a criação destas instituições internacionais, com
iniciativas como a revisão das quotas no grupo Banco mundial – “World Bank
Shareholding Review (2025)”.
Também
é relevante a atuação do Novo Banco de Desenvolvimento — o banco do BRICS —
criado há dez anos, cuja presença tem se consolidado ao longo do tempo.
Espera-se, conforme o parágrafo 45 (2025), que sua atuação se expanda e que
mais países passem a integrar seu capital, à medida que o banco inicia sua
segunda “década dourada” (golden decade). Além disso, é fundamental
avançar no desenvolvimento do Acordo Contingente de Reservas (parágrafo 53,
2025) e na criação de uma iniciativa multilateral de garantias do BRICS
(parágrafo 48, 2025).
Para
todos os países — e para cada um em particular — a questão da inserção
internacional é algo que não pode ser negligenciado. Sem dúvida, conforme o
parágrafo 13 (2025), o sistema multilateral de comércio encontra-se ameaçado
pela “proliferação de ações restritivas ao comércio, tanto sob a forma de
aumento indiscriminado de tarifas” — leia-se, aqui, o comportamento errático
dos EUA sob Donald Trump, com efeitos disruptivos nas relações internacionais —
“como por medidas não tarifárias, ou pelo protecionismo disfarçado de objetivos
ambientais” — leia-se, nesse caso, o uso de pretextos ambientais por parte da
União Europeia para adiar o Acordo de Livre Comércio com o MERCOSUL.
Países
como França e Polônia parecem enxergar apenas a necessidade de proteger seus
setores agrícolas, ignorando a ampla gama de interesses do conjunto da União
Europeia e dos países do MERCOSUL — interesses que poderiam ser conciliados. O
fortalecimento do multilateralismo e de um sistema baseado em regras claras e
mutuamente pactuadas é essencial. E não por meio de imposições unilaterais sob
ameaça de aumentos absurdos de tarifas, insustentáveis até mesmo para quem as
aplica. Mais do que uma ação racional de Estado, certas posturas assemelham-se
ao desvario da Rainha de Copas, na aventura de Alice: “Cortem-lhe a
cabeça!”
E aí
cabe a advertência (par. 14, 2025) contra a “imposição de medidas unilaterais
coercitivas”, reafirmando que os BRICS “não impõem nem apoiam sanções, não
autorizadas pelo CS ONU e contrárias ao direito internacional”.
A
questão crucial é determinar até que ponto a inserção internacional deve ser
baseada na “força” ou em “princípios”. Esta é controvérsia duradoura. Por isso,
sejam (par. 19, 2025) “fortemente condenadas todas as violações do Direito
internacional humanitário, incluindo ataques deliberados contra civis e alvos
civis, inclusive infraestrutura civil, bem como a recusa ou obstrução de ajuda
humanitária e alvejar pessoal de ajuda humanitária”, enfatizando a “necessidade
de responsabilização por todas as violações do Direito internacional
humanitário”.
É
necessário (par. 24, 2025) “condenar toda violação do Direito internacional
humanitário” como é a “situação no território palestino ocupado”, condenando a
“retomada de contínuos ataques israelenses contra Gaza e obstrução da entrada
de ajuda humanitária no território”, mediante nefando “uso da fome como arma de
guerra”, bem como “condenar tentativas de politizar ou militarizar a
assistência humanitária”.
É
oportuno ressaltar (par. 25, 2025) que a “faixa de Gaza é parte inseparável do
território palestino ocupado” e a “importância de unificar a Cisjordânia e a
faixa de Gaza sob a Autoridade palestina”, bem como “reafirmar o direito do
povo palestino à autodeterminação, incluindo o direito ao estado independente
da Palestina”.
É o
momento (par. 26, 2025) de “conclamar a comunidade internacional a apoiar a
Autoridade palestina nas reformas em curso, para atender as legítimas
aspirações dos palestinos por independência e por seu estado”, que a pronta
reconstrução de Gaza garanta o papel central dos Palestinos, bem como “esforços
para estabilizar e reconstruir Gaza sejam acompanhados com solução política,
justa e duradoura, do longo conflito”. Além de “expressar a firme oposição ao
deslocamento forçado, temporário ou permanente, sob qualquer pretexto, de
qualquer população palestina do território palestino ocupado, bem como
quaisquer modificações geográficas e demográficas do território da faixa de
Gaza”.
E
reafirmar (par. 27, 2025) “que uma solução justa e durável do conflito
Israel-Palestina somente pode ser alcançada por meios pacíficos, e depende da
satisfação dos legítimos direitos do povo palestino, incluindo os direitos de
autodeterminação e de retorno”, com o estabelecimento de “dois estados, vivendo
lado a lado, em paz e segurança”, onde o “Estado da Palestina, soberano,
independente e viável, nas fronteiras internacionalmente reconhecidas de 1967,
incluindo a faixa de Gaza, a Cisjordânia, tendo Jerusalém oriental como sua
capital”, com a “necessária e adequada representação da Palestina em todas as
organizações internacionais relevantes, incluindo as instituições financeiras
multilaterais, com acesso aos recursos destas.”
Alguns
realistas linha-dura nas relações internacionais podem dizer que só há espaço
para a força pura, e todo o resto são apenas “palavras, palavras e palavras”,
como tais desprovidas de substância, enquanto a maioria dos internacionalistas
argumentará que os princípios têm papel a desempenhar, tão importante quanto
armas e exércitos, na afirmação de normas obrigatórias e regras operacionais no
cenário internacional. Indiscutivelmente, em contraste com os chamados
“realistas”, primeiro nomeados, aqueles que acreditam apenas na força, o
segundo grupo pode ser rotulado mais ou menos de “idealistas”.
É
necessário encontrar equilíbrio entre poder e legitimidade no cenário
internacional. E nisso, têm razão os BRICS quando:
–
Condenam os ataques militares contra o Irã (par. 21, 2025), “que constituem
violação do direito internacional e da Carta da ONU”, bem como a “grave
preocupação com ataques deliberados a infraestrutura civil e instalações
nucleares pacíficas, sob salvaguardas da AIEA, violando o direito internacional
e as resoluções relevantes da AIEA”;
–
Expressam profunda preocupação (par. 23 (2025) com “contínuos conflitos e
instabilidade nas regiões do Oriente médio e norte da África”, subscrevendo a
Declaração conjunta dos ministros das relações exteriores e enviados especiais
dos BRICS, de 28 de março de 2025;
–
Declaram bem-vindo (par. 28, 2025) o cessar-fogo no Líbano, “condenando
violações do cessar-fogo, da soberania e da integridade territorial do Líbano”,
com chamado a “Israel, para respeitar os termos acordados com o governo do
Líbano e retirar suas forças de ocupação de todo o território libanês,
inclusive os cinco postos no sul do Líbano, onde ainda permanecem”;
–
Reafirmam o compromisso (par. 29, 2025) “com a soberania, independência,
unidade e integridade territorial da Síria”, conclamando “Israel a retirar suas
forças do território sírio sem demora”;
–
Mencionam a situação (par. 31, 2025) com “efeitos devastadores de conflitos no
Sudão, na região dos grandes lagos, e no chifre da África”, e par. 32 (2025) –
a preocupação que “a situação no Sudão resulte em crise humanitária e crescente
risco de proliferação do extremismo e do terrorismo”;
– Grave
preocupação (par. 33, 2025) com “a deterioração da situação humanitária,
econômica, e da segurança do Haiti”;
–
Expressam (par. 34, 2025) “veemente condenação de quaisquer atos de terrorismo,
como criminosos e injustificados, independentemente de qualquer motivação”,
condenando “o ataque terrorista em Jammu e Caxemira, em 22 de abril de 2025”,
com 26 mortos e muitos feridos – enfatizando que “o terrorismo não pode ser
associado a qualquer religião, nacionalidade, civilização ou grupo étnico”,
elogiando a iniciativa do Grupo de trabalho antiterrorismo dos BRICS, com seus
cinco subgrupos;
–
Perdem o pé na realidade, quando apontam que o conflito na Ucrânia deva ser
tratado em foros adequados (par. 22, 2025), sem mais, porém “condenam nos
termos mais categóricos” (par. 35, 2025) somente os ataques ucranianos em solo
russo, “contra pontes, infraestrutura ferroviária, deliberadamente alvejando
civis”, em 31 de maio, 1 e 5 de junho de 2025 – o que certamente é condenável e
tem de ser condenado, sobretudo em relação a alvos civis, obviamente – mas nada
falam a respeito de quarenta meses de guerra de agressão russa contra a
Ucrânia, ataques deliberados a civis, sistemática destruição da infraestrutura
civil, geração de energia, bombas em hospitais, escolas e bairros residenciais,
impiedosa e reiteradamente bombardeados pela Rússia de PUTIN – e elogiam
iniciativas “visando solução pacífica do conflito, mediante diálogo e
diplomacia e esperando que os presentes esforços possam levar a um acordo de
paz sustentável”!
A
Declaração dos BRICS (2025) apresenta um extenso rol de temas relevantes, já
tratados ou a serem tratados entre os países do grupo, assim como em diversas
instituições e fóruns internacionais. Entre eles, destacam-se, entre
outros:
– Meio
ambiente, mudança climática e sustentabilidade (pars. 81-87, 98-100,
2025);
–
Florestas (par. 94, 2025) e desertificação (par. 97, 2025);
–
Inteligência artificial e necessidade de sua regulação, para utilização em
benefício de todos,
–
Cooperação no espaço e sistemas espaciais (pars. 39, 62, 63, 2025)
– A
indispensável cooperação em matéria de saúde e do importante papel da OMS (par.
15, 2025), na padronização de doenças e denominação em geral, e especialmente
na prevenção e combate a pandemias – em claro recado aos países que
descabidamente dela tem se afastado, em prejuízo de todos;
–
Combate a doenças socialmente determinadas (pars. 107 e 108, 2025);
–
Matéria de energia nuclear e riscos nucleares (par. 38, 2025);
–
Tecnologias de informação e comunicação (par. 40, 2025), crimes cibernéticos
(par. 41, 2025) e inteligência artificial.
A lista
é longa e muitas iniciativas ainda têm tratamento incipiente. Mas mostram a
extensão e a abrangência da atuação dos BRICS. Fazem reiteradas menções aos
grupos de trabalho e iniciativas do grupo – vasto e abrangente temário, tratado
por mais de uma centena de colegiados, de nível ministerial e técnico,
produzindo relatórios e agendas de encaminhamento. Mostra que os BRICS são
muito mais do que a Declaração conjunta e a foto de chefes de estado, de
governo e representantes, ao término de cada reunião anual de cúpula.
Fonte:
Por Paulo Borba Casella, no Le Monde

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