segunda-feira, 14 de julho de 2025

Inovação em tempos de crise e reformulação mundial

Iniciados há dezessete anos, os BRICS no início contavam Brasil, Rússia, Índia e China, desde 2011 com África do Sul; doravante BRICS plus, com seis novos participantes mais uma dezena de associados. 

Essa novidade nas relações e cooperação internacional, entre os onze mais dez, mostra que os BRICS alcançaram considerável visibilidade desde sua criação. Também vale mencionar o BRICS como dado inovador para uma nova ordem mundial. Se essa se materializará ainda não está determinado. Com sua atuação, os BRICS podem contribuir para essa nova configuração.  

Temos sinais positivos e duvidosos na extensa Declaração conjunta – “fortalecendo a cooperação do sul global por uma governança mais inclusiva e sustentável”, do Rio de Janeiro, 6 de julho de 2025. 

É alvissareiro ver menção – par. 104 (2025) ao “destrutivo legado do colonialismo e do tráfico de escravos” – alinhado com iniciativas da ONU e da UA – reiterando a necessidade de “intensificar a luta contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância racial, bem como a discriminação com base na religião, fé ou crença, em todas as suas formas contemporâneas no mundo, incluindo tendências alarmantes de crescentes discurso de ódio, desinformação e informações falsas – disinformation and misinformation”. 

É amplamente conhecido e em grande parte permanece uma questão de controvérsia, entre diferentes correntes entre os chamados “realistas” e “idealistas”, no direito internacional e nas relações internacionais, se “princípios e normas” ou somente “necessidades e interesses” governam a ação dos estados. Dificilmente se pode esperar um julgamento a respeito alcance aceitação geral. Cada lado pode argumentar. E no meio, há espaço para variações, combinando diferentes escalas de ‘força’ e ‘princípios’, na tentativa de encontrar equilíbrio entre poder e legitimidade no cenário internacional. O BRICS está nessa encruzilhada. 

É promissor ver reiteradas menções – ex. par. 4 (2025) – ao “compromisso com a reforma e o aprimoramento da governança global, promovendo mais justo, equitativo, ágil, efetivo, eficiente, responsável, representativo, legítimo, democrático e responsável sistema internacional e multilateral, com espírito de ampla consultação, contribuição conjunta e benefícios compartilhados”. 

Dada a premissa da inexorabilidade da busca de inserção internacional para cada país, iniciam-se as variações sobre o tema, a fim de determinar com quem cooperar e como a integração pode ser interpretada, e onde pode ser prioritária: a escolha dos parceiros para tais iniciativas é crucial para os resultados. Múltiplas análises e mudanças de circunstâncias ocorreram nos últimos vinte e cinco anos e são suficientes para mostrar as mais variadas respostas. 

Como considerar a cooperação entre os 11 + 10 BRICS e o papel que podem ter no mundo? Como resposta, as menções (par. 5, 2025) a “mercados emergentes e países em desenvolvimento, bem como países menos desenvolvidos” ou nas siglas: EMDCs – Emerging markets and developing countries e LDCs – Least developed countries. O BRICS também tem olhar voltado para outros países ‘menos favorecidos’ – embora não fique claro como. 

A cooperação é questão crucial e não pode ser evitada, mesmo para quem a renega, no estado do mundo. Prova disso pode ser encontrada no par. 82 (2025) “multilateralismo e a cooperação do sul global podem formatar governança mais inclusiva e sustentável para um futuro melhor”. Todo mundo gosta de frases como esta, mas falta esclarecer como colocar em funcionamento o bom propósito! 

Os BRICS podem buscar seu papel no “contexto atual de incerteza e volatilidade”, por meio da “reforma das instituições de Bretton Woods (BWI)”, Fundo Monetário Internacional e o grupo Banco Mundial – enfatizam os pars. 10, 11 e 12 (2025) – onde se fala em “reformar sua estrutura de governança para refletir a transformação da economia mundial desde seu estabelecimento” – oitenta anos desde a criação destas instituições internacionais, com iniciativas como a revisão das quotas no grupo Banco mundial – “World Bank Shareholding Review (2025)”.  

Também é relevante a atuação do Novo Banco de Desenvolvimento — o banco do BRICS — criado há dez anos, cuja presença tem se consolidado ao longo do tempo. Espera-se, conforme o parágrafo 45 (2025), que sua atuação se expanda e que mais países passem a integrar seu capital, à medida que o banco inicia sua segunda “década dourada” (golden decade). Além disso, é fundamental avançar no desenvolvimento do Acordo Contingente de Reservas (parágrafo 53, 2025) e na criação de uma iniciativa multilateral de garantias do BRICS (parágrafo 48, 2025). 

Para todos os países — e para cada um em particular — a questão da inserção internacional é algo que não pode ser negligenciado. Sem dúvida, conforme o parágrafo 13 (2025), o sistema multilateral de comércio encontra-se ameaçado pela “proliferação de ações restritivas ao comércio, tanto sob a forma de aumento indiscriminado de tarifas” — leia-se, aqui, o comportamento errático dos EUA sob Donald Trump, com efeitos disruptivos nas relações internacionais — “como por medidas não tarifárias, ou pelo protecionismo disfarçado de objetivos ambientais” — leia-se, nesse caso, o uso de pretextos ambientais por parte da União Europeia para adiar o Acordo de Livre Comércio com o MERCOSUL. 

Países como França e Polônia parecem enxergar apenas a necessidade de proteger seus setores agrícolas, ignorando a ampla gama de interesses do conjunto da União Europeia e dos países do MERCOSUL — interesses que poderiam ser conciliados. O fortalecimento do multilateralismo e de um sistema baseado em regras claras e mutuamente pactuadas é essencial. E não por meio de imposições unilaterais sob ameaça de aumentos absurdos de tarifas, insustentáveis até mesmo para quem as aplica. Mais do que uma ação racional de Estado, certas posturas assemelham-se ao desvario da Rainha de Copas, na aventura de Alice: “Cortem-lhe a cabeça!” 

E aí cabe a advertência (par. 14, 2025) contra a “imposição de medidas unilaterais coercitivas”, reafirmando que os BRICS “não impõem nem apoiam sanções, não autorizadas pelo CS ONU e contrárias ao direito internacional”. 

A questão crucial é determinar até que ponto a inserção internacional deve ser baseada na “força” ou em “princípios”. Esta é controvérsia duradoura. Por isso, sejam (par. 19, 2025) “fortemente condenadas todas as violações do Direito internacional humanitário, incluindo ataques deliberados contra civis e alvos civis, inclusive infraestrutura civil, bem como a recusa ou obstrução de ajuda humanitária e alvejar pessoal de ajuda humanitária”, enfatizando a “necessidade de responsabilização por todas as violações do Direito internacional humanitário”. 

É necessário (par. 24, 2025) “condenar toda violação do Direito internacional humanitário” como é a “situação no território palestino ocupado”, condenando a “retomada de contínuos ataques israelenses contra Gaza e obstrução da entrada de ajuda humanitária no território”, mediante nefando “uso da fome como arma de guerra”, bem como “condenar tentativas de politizar ou militarizar a assistência humanitária”. 

É oportuno ressaltar (par. 25, 2025) que a “faixa de Gaza é parte inseparável do território palestino ocupado” e a “importância de unificar a Cisjordânia e a faixa de Gaza sob a Autoridade palestina”, bem como “reafirmar o direito do povo palestino à autodeterminação, incluindo o direito ao estado independente da Palestina”. 

É o momento (par. 26, 2025) de “conclamar a comunidade internacional a apoiar a Autoridade palestina nas reformas em curso, para atender as legítimas aspirações dos palestinos por independência e por seu estado”, que a pronta reconstrução de Gaza garanta o papel central dos Palestinos, bem como “esforços para estabilizar e reconstruir Gaza sejam acompanhados com solução política, justa e duradoura, do longo conflito”. Além de “expressar a firme oposição ao deslocamento forçado, temporário ou permanente, sob qualquer pretexto, de qualquer população palestina do território palestino ocupado, bem como quaisquer modificações geográficas e demográficas do território da faixa de Gaza”. 

E reafirmar (par. 27, 2025) “que uma solução justa e durável do conflito Israel-Palestina somente pode ser alcançada por meios pacíficos, e depende da satisfação dos legítimos direitos do povo palestino, incluindo os direitos de autodeterminação e de retorno”, com o estabelecimento de “dois estados, vivendo lado a lado, em paz e segurança”, onde o “Estado da Palestina, soberano, independente e viável, nas fronteiras internacionalmente reconhecidas de 1967, incluindo a faixa de Gaza, a Cisjordânia, tendo Jerusalém oriental como sua capital”, com a “necessária e adequada representação da Palestina em todas as organizações internacionais relevantes, incluindo as instituições financeiras multilaterais, com acesso aos recursos destas.” 

Alguns realistas linha-dura nas relações internacionais podem dizer que só há espaço para a força pura, e todo o resto são apenas “palavras, palavras e palavras”, como tais desprovidas de substância, enquanto a maioria dos internacionalistas argumentará que os princípios têm papel a desempenhar, tão importante quanto armas e exércitos, na afirmação de normas obrigatórias e regras operacionais no cenário internacional. Indiscutivelmente, em contraste com os chamados “realistas”, primeiro nomeados, aqueles que acreditam apenas na força, o segundo grupo pode ser rotulado mais ou menos de “idealistas”. 

É necessário encontrar equilíbrio entre poder e legitimidade no cenário internacional. E nisso, têm razão os BRICS quando: 

– Condenam os ataques militares contra o Irã (par. 21, 2025), “que constituem violação do direito internacional e da Carta da ONU”, bem como a “grave preocupação com ataques deliberados a infraestrutura civil e instalações nucleares pacíficas, sob salvaguardas da AIEA, violando o direito internacional e as resoluções relevantes da AIEA”; 

– Expressam profunda preocupação (par. 23 (2025) com “contínuos conflitos e instabilidade nas regiões do Oriente médio e norte da África”, subscrevendo a Declaração conjunta dos ministros das relações exteriores e enviados especiais dos BRICS, de 28 de março de 2025; 

– Declaram bem-vindo (par. 28, 2025) o cessar-fogo no Líbano, “condenando violações do cessar-fogo, da soberania e da integridade territorial do Líbano”, com chamado a “Israel, para respeitar os termos acordados com o governo do Líbano e retirar suas forças de ocupação de todo o território libanês, inclusive os cinco postos no sul do Líbano, onde ainda permanecem”; 

– Reafirmam o compromisso (par. 29, 2025) “com a soberania, independência, unidade e integridade territorial da Síria”, conclamando “Israel a retirar suas forças do território sírio sem demora”; 

– Mencionam a situação (par. 31, 2025) com “efeitos devastadores de conflitos no Sudão, na região dos grandes lagos, e no chifre da África”, e par. 32 (2025) – a preocupação que “a situação no Sudão resulte em crise humanitária e crescente risco de proliferação do extremismo e do terrorismo”; 

– Grave preocupação (par. 33, 2025) com “a deterioração da situação humanitária, econômica, e da segurança do Haiti”; 

– Expressam (par. 34, 2025) “veemente condenação de quaisquer atos de terrorismo, como criminosos e injustificados, independentemente de qualquer motivação”, condenando “o ataque terrorista em Jammu e Caxemira, em 22 de abril de 2025”, com 26 mortos e muitos feridos – enfatizando que “o terrorismo não pode ser associado a qualquer religião, nacionalidade, civilização ou grupo étnico”, elogiando a iniciativa do Grupo de trabalho antiterrorismo dos BRICS, com seus cinco subgrupos; 

– Perdem o pé na realidade, quando apontam que o conflito na Ucrânia deva ser tratado em foros adequados (par. 22, 2025), sem mais, porém “condenam nos termos mais categóricos” (par. 35, 2025) somente os ataques ucranianos em solo russo, “contra pontes, infraestrutura ferroviária, deliberadamente alvejando civis”, em 31 de maio, 1 e 5 de junho de 2025 – o que certamente é condenável e tem de ser condenado, sobretudo em relação a alvos civis, obviamente – mas nada falam a respeito de quarenta meses de guerra de agressão russa contra a Ucrânia, ataques deliberados a civis, sistemática destruição da infraestrutura civil, geração de energia, bombas em hospitais, escolas e bairros residenciais, impiedosa e reiteradamente bombardeados pela Rússia de PUTIN – e elogiam iniciativas “visando solução pacífica do conflito, mediante diálogo e diplomacia e esperando que os presentes esforços possam levar a um acordo de paz sustentável”! 

A Declaração dos BRICS (2025) apresenta um extenso rol de temas relevantes, já tratados ou a serem tratados entre os países do grupo, assim como em diversas instituições e fóruns internacionais. Entre eles, destacam-se, entre outros: 

– Meio ambiente, mudança climática e sustentabilidade (pars. 81-87, 98-100, 2025);  

– Florestas (par. 94, 2025) e desertificação (par. 97, 2025);  

– Inteligência artificial e necessidade de sua regulação, para utilização em benefício de todos,  

– Cooperação no espaço e sistemas espaciais (pars. 39, 62, 63, 2025) 

– A indispensável cooperação em matéria de saúde e do importante papel da OMS (par. 15, 2025), na padronização de doenças e denominação em geral, e especialmente na prevenção e combate a pandemias – em claro recado aos países que descabidamente dela tem se afastado, em prejuízo de todos; 

– Combate a doenças socialmente determinadas (pars. 107 e 108, 2025);  

– Matéria de energia nuclear e riscos nucleares (par. 38, 2025); 

– Tecnologias de informação e comunicação (par. 40, 2025), crimes cibernéticos (par. 41, 2025) e inteligência artificial. 

A lista é longa e muitas iniciativas ainda têm tratamento incipiente. Mas mostram a extensão e a abrangência da atuação dos BRICS. Fazem reiteradas menções aos grupos de trabalho e iniciativas do grupo – vasto e abrangente temário, tratado por mais de uma centena de colegiados, de nível ministerial e técnico, produzindo relatórios e agendas de encaminhamento. Mostra que os BRICS são muito mais do que a Declaração conjunta e a foto de chefes de estado, de governo e representantes, ao término de cada reunião anual de cúpula. 

 

Fonte: Por Paulo Borba Casella, no Le Monde 

 

Nenhum comentário: