Herdeiros
do apartheid: os fatos e as fantasias sobre o “racismo branco” na África do Sul
“Há uma
parte de mim que tem de admirar a criatividade dele [Trump], pela forma como
consegue inventar coisas que eu nunca sequer poderia imaginar”, afirma o
professor Loren Landau sobre a
história de “genocídio branco” na África do Sul alegada pelo presidente dos
Estados Unidos no mês de maio.
Landau
é ex-presidente do Consórcio para Refugiados e Migrantes na África do Sul
(CoRMSA), membro do Conselho Consultivo de Imigração da África do Sul e
integrante dos conselhos editoriais das revistas International Migration
Review, Migration Studies e Journal of Refugee
Studies. Atualmente, é também professor de Migração e Desenvolvimento nas
Universidades de Witwatersrand e
de Oxford, na área de
Migração e Desenvolvimento.
Nesta
entrevista, o especialista detalha as raízes do suposto “racismo branco” no
país sul-africano e explica por que uma parcela dos africânderes — brancos
privilegiados descendentes de colonos da era do apartheid — adere a essa
vitimização.
LEIA A
ENTREVISTA:.
·
Há quem leve isso a sério. Desde a declaração de Trump, houve um aumento
nos pedidos de visto para os EUA.
Loren
Landau – Sim, houve dezenas de milhares de sul-africanos solicitando o
visto para os EUA. E esses pedidos foram processados com uma rapidez notável.
Mesmo os turistas têm de esperar meses por uma marcação no consulado, mas estes
foram enviados em voos charter especiais.
·
Mas acredita que estas pessoas são realmente movidas por
essa ideia de procurar refúgio nos EUA como “refugiados brancos”?
Há
razões para estar preocupado com a vida na África do Sul. A criminalidade é elevada,
a economia está sob pressão, as infraestruturas estão se degradando e tudo,
desde manuais escolares até milhares de milhões, desaparece. Mas isso não é
dirigido aos africânderes. Afeta todo o povo.
E acredito que muitos dos africânderes que se candidataram ao visto têm
consciência disso. Alguns se convenceram, sem dúvida, de que existe um
“genocídio branco”, mas suspeito que a maioria não.
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Por
isso, quando os EUA abriram essa porta, claro que quiseram passar por ela. Não
é que estejam sofrendo mais do que os outros — as condições econômicas e de
infraestrutura na África do Sul são agora mais difíceis do que nos últimos 20
anos, não por causa de discriminação racial, mas porque perderam muitos
dos subsídios que sustentavam os agricultores brancos durante o apartheid.
Enfrentam violência, como todo o povo na África do Sul. Enfrentam incerteza
econômica, como todo o povo.
O que
precisamos compreender é que as declarações de Trump têm muito pouco a ver com
a África do Sul, e tudo a ver com a sua campanha interna, para mostrar que
há um ataque global à branquitude, ao privilégio branco, especialmente aos
homens brancos cristãos.
·
Está dizendo que isso não está diretamente relacionado
com a declaração de Trump sobre a [suposta] perseguição aos agricultores
brancos e violação de ‘suas’ terras?
Claramente
há quem goste de acreditar e apoiar essa ideia. Isso faz parte da narrativa da
extrema-direita nos EUA e na África do Sul há mais de uma década. Nos EUA, há
uma narrativa segundo a qual
o governo é anticristão e anti-branco. Acreditam que as universidades estão
ensinando história e cidadania de forma a fazer com que odeiem os brancos. E há
brancos na África do Sul que acreditam que os programas de ação afirmativa (conhecidos
localmente como empoderamento econômico negro) são uma estratégia antibranca.
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Algumas
pessoas acreditam nisto. Elon Musk talvez acredite. Mas não penso que a
maioria dos brancos sul-africanos se deixe levar por essa narrativa. No fundo,
sabem que a sua condição é muito melhor do que a dos sul-africanos negros.
Embora exista racismo anti-branco no país, os seus efeitos são limitados. Há um
partido no parlamento – a oposição oficial – que representa principalmente os
interesses dos brancos. Existem organizações da sociedade civil africânder que
aparecem regularmente nos meios de comunicação nacionais. Há jornais, rádios e
programas de televisão em africânder. São uma das associações étnicas mais
organizadas e poderosas do país.
[O
AfriForum, uma iniciativa independente do Solidariedade, ligado ao sindicato
Solidariedade, criado em 2006 para encorajar o reengajamento dos africânderes e
outras minorias na esfera pública].
A
África do Sul não parece um país onde estão sendo perseguidos. Há impostos
elevados, há esforços para redistribuir riqueza, mas os brancos sul-africanos
têm um dos padrões de vida mais elevados – pelo menos em termos materiais – do
mundo. Mesmo que estejam pagando impostos, mesmo que estejam contribuindo,
voluntariamente ou não, para estes programas de transformação, nada lhes está
sendo retirado. Mantêm as suas terras, os seus negócios, o seu privilégio.
Portanto, não é verdade.
·
Sim, sem dúvida, mas é muito fácil vender essa ideia de
que os brancos estão em risco na África do Sul.
Claro.
Mas alguém publicou online uma observação significativa e brilhante: “Em qual
país a polícia protege refugiados quando vão ao aeroporto?”. O post comentava
as imagens da polícia sul-africana protegendo este grupo, enquanto se dirigia
ao aeroporto, para garantir a sua segurança. Com o que isso se parece? Não
estão sendo deportados. Estão pedindo para sair. E o governo sul-africano diz:
“Ok, vamos garantir a sua segurança até a partida.” Se quiserem acreditar que
há perseguição, vão encontrá-la. Podem encontrar o “Kill the Boer!” [“Dubul’ ibhunu”, traduzido ao português como “mate o boer” ou
“mate o agricultor”, uma canção controversa da era do apartheid, cantada em
xhosa ou zulu]. Mas não passa de um apego dos Combatentes pela Liberdade
Econômica (EFF, na sigla em inglês) à canção. [O Tribunal Constitucional foi
consultado duas vezes sobre a canção: uma em 2010, quando Julius Malema, então
líder da Juventude do Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês),
começou a cantá-la em eventos públicos; e outra em agosto de 2022, quando o Tribunal
de Igualdade decidiu que a canção podia ser cantada pelos membros do EFF, pois
não constituía discurso de ódio].
Na
realidade, houve de fato alguns casos de expropriação de terras, mas fazem
parte dos esforços para redistribuí-las – para compensar a enorme quantidade de
terra retirada das pessoas durante o apartheid. A África do Sul tem compensado
as pessoas por isso. O Estado pode tomar terras da mesma forma que qualquer
outro governo, para construir estradas, infraestrutura, etc., mas não houve
nenhum esforço para tirar terras sem compensação. As novas leis são claras
nesse sentido.
·
Isso faz parte da estratégia do EFF para criar um estado
de alarme e terror no país, como há dois anos quando declararam uma Greve Nacional com avisos de
possível violência generalizada, e no fim não aconteceu nada de grave.
Sim,
mas isso também coincidiu com os motins ligados ao Zuma, que se espalharam por
Durban e Joanesburgo. E as pessoas ficaram assustadas com essa ideia. No fim,
acho que todos os sul-africanos deviam estar preocupados porque há muita raiva
no país. E com razão. Todos sabem que basta pouco para acontecer algo que leve
à morte de várias pessoas, por diferentes motivos. Atacam somalis, bengalis,
podem atacar qualquer outro. Mas a riqueza e a geografia tendem a proteger os
brancos. Têm muros, têm segurança privada. Não são eles os primeiros a
serem mortos.
·
E isso também se vê claramente nos dados, nas
estatísticas de quem é morto na África do Sul – a maioria não é branca.
Não, a
esmagadora maioria das pessoas assassinadas – mesmo na área rual –
são negras.
·
Mesmo assim, como é possível estas pessoas deixarem o
país fingindo estar em estatuto de refugiado com base em suposições falsas
de abusos e perigos?
Ao
abrigo do direito internacional dos refugiados, cabe a cada país determinar
quem qualifica como refugiado. Assim, cabe totalmente aos Estados Unidos
aceitar estas pessoas ou não. Portanto, é legal, no sentido de que os EUA têm o
direito de aceitar quem quiser sob o estatuto de refugiado.
Dito
isso, é bastante invulgar que as pessoas façam candidaturas a visto tão
abertamente, se realmente temessem perseguição por falarem. Imagine uma
situação na República Democrática do Congo ou em Ruanda, ou em outro lugar
instável e perigoso, onde se fale abertamente contra o governo – seriam
imediatamente presos ou pior.
E, no
entanto, ali estavam os africânderes, em fila, falando para canais de TV
enquanto se candidatavam ao estatuto de refugiado. E estavam sendo protegidos
pelo mesmo governo que, segundo a visão peculiar de Trump, os estaria
perseguindo. Fizeram o pedido e foram aceitos. É ridículo. Mas
é legal.
·
Os brancos sul-africanos devem se qualificar para asilo
em outros países?
Não sou
jurista, mas arriscaria dizer que não, de forma alguma. Há muitos refugiados na
África do Sul – do Congo, do Sudão e de outros lugares – que pedem há anos para
serem reassentados nos EUA ou em outros países. E esses têm um caso muito mais
forte. Os africânderes brancos não conseguem demonstrar que têm um medo
fundado de perseguição. Não conseguem mostrar que foram vítimas de forma
dirigida. Por isso, ao abrigo da lei internacional e da lei estadunidense, não
têm direito ao estatuto de refugiado. Podem emigrar como outros tipos de
migrantes, mas como refugiados ou requerentes de asilo, não faz
sentido. Essas alegações de que as suas vidas estão em risco por serem
brancos não se sustentam.
Se
houvesse provas fortes de perseguição sistêmica a pessoas brancas – violência,
perseguição, etc. – teriam um caso. O problema é que essas provas não existem.
A taxa de homicídios, de perseguições, de redistribuição de terra não os afeta
de forma desproporcional.
·
E para onde estão sendo reassentados?
Estão
sendo enviados, na maioria, para estados agrícolas, muito republicanos e muito
brancos – como Idaho, Alabama, Mississippi – onde as autoridades locais dizem:
“Vamos acolher estas pessoas para salvar cristãos brancos”, ou algo
do gênero.
·
Será interessante ver como estas comunidades os
receberão.
Sim,
haverá grupos de estadunidenses que acreditam que há uma guerra contra os
brancos e os cristãos na África do Sul, e provavelmente vão acolhê-los da mesma
forma que os europeus acolheram os ucranianos após a invasão russa: “Ainda bem
que conseguiu sair. Ainda bem que está em segurança. Lamento muito”, dizem. A
maioria dos estadunidenses provavelmente não quer saber a verdade. Gostaria de
ouvir o que os sul-africanos dizem sobre estas pessoas. Sei que muita
gente acha isso ofensivo ou ridículo, mas talvez se inicie uma discussão sobre
o papel e a posição dos brancos na sociedade sul-africana. Acho que ainda
há alguns debates que precisam ser feitos.
De
acordo com Jack Jenkins, a Igreja Episcopal
se recusa a reassentar africânderes brancos da África do Sul que tenham sido
classificados como refugiados pela administração de Donald Trump. Segundo o
Arcebispo Sean W. Rowe – líder da Igreja Episcopal (parte da Comunhão Anglicana
global, que teve entre os seus líderes o falecido Arcebispo Desmond Tutu, um
opositor vocal do apartheid na África do Sul) – o pedido ultrapassou uma linha
moral inaceitável para a Igreja.
Fonte:
Diálogos do Sul

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