Expulsos
por hidrelétrica em Goiás, quilombolas lutam há duas décadas por reparação
“É uma
dor que não passa”. Faz mais de duas décadas que a comunidade quilombola em que
Dita Godinho vivia foi expulsa de suas terras, mas, ainda assim, os olhos da
senhora de 62 anos marejam ao falar do assunto. A família dela foi uma das
cerca de cinquenta que viram seu mundo ser inundado para dar lugar à represa da
usina hidrelétrica de Cana Brava, localizada na bacia do rio Tocantins, entre
os municípios de Minaçu e Cavalcante, no norte de Goiás. A estrutura está em
funcionamento desde 2002.
Obrigadas
a deixar para trás suas casas, hortas, roças e pomares, muitas das famílias
acabaram se estabelecendo em Minaçu, cidade de 27 mil habitantes a cerca de 30
quilômetros, onde estão até hoje, formando o quilombo urbano São Félix.
Duas
décadas depois, elas ainda lutam para serem compensadas pela empresa e para
receberem, do Incra, uma área em que possam retomar o modo de vida tradicional.
“A
gente sofreu muito. A gente não tinha essa vivência de cidade. E até hoje temos
dificuldade, porque uma pessoa que mora na roça e chega na cidade, sem um curso
superior, sofre muita discriminação”, diz Dita.
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E a COP30 com isso?
• Mesmo energias consideradas mais
“limpas”, como a hidrelétrica – que são crucias para as metas de reduzir a
queima de combustíveis fósseis -, podem causar impactos a populações. Grupos
quilombolas e da sociedade civil têm reivindicado mais participação na COP justamente
para pautar esse tipo de impacto;
• Recentemente, lideranças apresentaram
uma carta à presidência da conferência pedindo que os países incluam metas
específicas para quilombolas, como a regularização fundiária dos territórios.
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Primeira grande hidrelétrica privada do Brasil gera lucro para gringos, mas não
paga quilombolas
A usina
de Cana Brava, que alagou 139 quilômetros quadrados (uma área equivalente a
mais de 19.400 campos de futebol), foi a primeira grande barragem no país
construída integralmente por uma empresa privada, então subsidiária da
multinacional belga Tractebel. Hoje é uma das 11 hidrelétricas administradas
pela multinacional francesa Engie Brasil, que, no primeiro trimestre deste ano,
registrou um lucro líquido de R$ 823 milhões.
Para a
construção do reservatório da hidrelétrica, foram inundados 139 km² de terras
Forçadas
a sair sem qualquer apoio da empresa ou do estado, algumas famílias, como a de
Dita, nunca foram indenizadas pelo empreendimento. Desde 2018, o Ministério
Público Federal (MPF) pede à Justiça que a Engie seja condenada a pagar pelo
menos 5% do faturamento bruto gerado pela hidrelétrica por danos materiais e
morais coletivos, que, na visão do órgão, ainda não foram compensados e
reparados.
“Eu já
não tenho nem lágrimas para chorar mais. Mas a gente nunca desiste da nossa
indenização. Nós nunca vamos desistir. É direito nosso”, diz a líder
quilombola.
Dita
cresceu na comunidade quilombola, que começou a se formar a partir de 1949, às
margens do rio Maranhão e do córrego São Félix. As famílias de origem Kalunga
(um dos maiores e mais antigos quilombos do Brasil) pescavam e bebiam a água
dos rios que, na época, era “cristalina”, como é lembrado pela população.
Cultivavam praticamente tudo que comiam e criavam alguns animais. Os filhos,
quando casavam, construíam casas próximas. Ninguém pensava em sair de lá. Até
que veio a hidrelétrica.
Inicialmente
um projeto da empresa Furnas Centrais Hidrelétricas, a usina começou a ser
projetada ainda na década de 1980. O empreendimento, porém, só saiu do papel na
década seguinte, quando, em 1995, a Fundação Estadual do Meio Ambiente
(FEMAGO), hoje transformada em Secretaria de Meio Ambiente, Recursos Hídricos,
Infraestrutura, Cidades e Assuntos Metropolitanos emitiu a primeira licença
necessária – antes mesmo do leilão de licitação, só realizado em 1998 e vencido
pela belga Tractebel. No mesmo ano, o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) aprovou o contrato de financiamento da obra, que
também contou com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
As
famílias quilombolas ouviram que não tinham outra opção a não ser deixar o
local que habitavam há mais de quatro décadas. A algumas poucas foram
oferecidas indenizações em valores irrisórios, que, como denunciaram os
quilombolas, foram, na época, na faixa de R$ 300 e R$ 600 (hoje, estaria entre
R$ 1.200 e R$ 2.300). Agricultores familiares, pequenos garimpeiros e os
indígenas Avá-Canoeira também foram afetados pela construção da hidrelétrica.
“A
gente veio por conta própria, porque ou saíamos, ou ficávamos no meio da água.
O município mais próximo era Minaçu. Quando a gente chegou aqui, essa área era
mato. A gente roçou e fizemos os barracos improvisados de plástico”, conta
Dita.
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Quilombolas lutam pela regularização da comunidade
Ao
longo dos anos, os barracos da nova comunidade deram lugar a casas de
alvenaria, muitas ainda com o reboco exposto, formando o bairro hoje chamado
setor Nova Esperança – o nome, diz Dita, foi colocado pelos próprios moradores,
que torciam por uma melhora.
O
bairro fica no sopé de uma montanha de rejeitos de amianto, minério ainda usado
na construção civil em países como Índia e Tailândia e extraído há mais de 60
anos em Minaçu pela Sama, empresa de origem francesa, hoje parte da brasileira
Eternit SA. Depois de mais de sessenta anos dependendo economicamente do
amianto, a cidade vive hoje um momento de passagem para a mineração de terras
raras, um conjunto de minérios essencial para a transição energética (saiba
mais aqui).
Muitas
famílias, representadas pela Associação de Desenvolvimento da Comunidade dos
Quilombolas de São Félix, fundada e presidida por Dita e reconhecida pela
Fundação Palmares, querem “voltar para a terra”. Desde 2013, corre no Incra o
processo para que haja a regularização fundiária da comunidade, com titulação
coletiva de uma área na zona rural, que ainda não teve seu perímetro
delimitado, por estar em fase de estudos.
O
relatório antropológico, uma das etapas iniciais para a regularização
fundiária, foi elaborado ainda em 2013. Mas, ao longo dos últimos 12 anos, o
processo não avançou.
Questionado
pela reportagem, o Incra afirmou que a regularização do território ainda está
na fase de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – uma
etapa inicial, da qual o relatório antropológico faz parte. “Falta, ainda, além
do levantamento fundiário, a planta e o memorial descritivo do perímetro da
área reivindicada pelas comunidades, e o cadastramento das famílias
quilombolas”, afirmou o órgão.
Segundo
o Incra, há uma expectativa “concreta” de avanços dos trabalhos com a chegada
de novos servidores aprovados no Concurso Público Nacional Unificado, que
ofereceu 742 vagas para o órgão.
Em
outra frente, o MPF entrou ainda em 2018 com uma ação civil pública contra
Engie, União, Ibama, Funai e governo de Goiás por irregularidades no processo
de licenciamento, danos ambientais e violações de direitos humanos na
construção do empreendimento.
Segundo
o MPF, centenas de famílias nunca foram reconhecidas como atingidas pelo
empreendimento. Já as que foram, receberam reparações insuficientes. A perda
dos territórios e do modo de vida levou ao empobrecimento das famílias.
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Território indígena foi alagado por projeto “mal feito” de usina
Além do
impacto para a comunidade quilombola, o MPF também apontou que o licenciamento
ambiental para a construção da usina, conduzido pela então FEMAGO, não foi
capaz de identificar – e impedir – falhas no projeto. Dentre essas falhas,
ficaram de fora os impactos sobre os indígenas.
Erros
no projeto, diz a ação do MPF, elevaram o nível da cota de inundação do
reservatório, provocando um alagamento não previsto de algumas áreas. Foi o que
aconteceu com parte da Terra Indígena Avá-Canoeiro.
Os
Avá-Canoeiro, que se chamam de Ãwa, ficaram conhecidos como um dos povos que
mais resistiu ao processo de colonização no Brasil, recusando contatos
pacíficos. Ao longo dos séculos, o povo teve que fugir de seus territórios
originários e acabou separado em dois grupos – ambos vítimas de muitos
massacres, que reduziram drasticamente a população. Em 1983, as quatro pessoas
restantes do grupo que havia se estabelecido no rio Maranhão procuraram
estabelecer contato com moradores da região, o que levou ao reconhecimento da
Terra Indígena Avá-Canoeiro pela Funai, oficialmente demarcada em 1999. O
território também foi parcialmente inundado pela barragem da hidrelétrica Serra
da Mesa, também em Minaçu, que formou um dos maiores lagos artificiais do país.
Ainda
de acordo com o MPF, a licença de funcionamento da usina de Cana Brava está
vencida desde 2008. O processo de renovação foi passado para o Ibama, que
tentou obter os documentos originais do projeto com a FEMAGO. Mas os
documentos, dizem os órgãos, simplesmente desapareceram.
Na
ação, o MPF pede que uma nova licença de funcionamento não seja concedida até
que sejam solucionados todos os impactos socioambientais e que sejam cumpridas
as medidas condicionantes – segundo relatório da Engie, até 2024, 19 foram
atendidas e outras quatro estão em atendimento. O órgão também pediu a
suspensão da participação da empresa em linhas de financiamento e o
cancelamento de benefícios fiscais. Além do pagamento de multa por danos morais
e materiais coletivos.
Segundo
o Ministério Público Federal em Goiás, passados sete anos, o processo está em
“fase de nomeação de peritos e avaliação dos honorários periciais”, depois da
Justiça determinar a “produção de prova técnica pericial por um corpo técnico
multidisciplinar”, “para avaliar os impactos socioambientais da UHE Cana
Brava”.
Enquanto
isso, Dita já esteve até na Embaixada da Bélgica para cobrar as autoridades
pelos danos causados pela Tractebel. Mas, até agora, ela não recebeu respostas
nem sabre o pagamento de alguma compensação e nem sobre a regularização de uma
nova área para a comunidade quilombola.
“Esse
descaso da barragem com a gente é o que mais dói a vida toda”, diz Dita. A dor
não passa por esse “esperar, esperar e esperar”, que já dura 23 anos. “O que
eles fizeram com nós não foi – e não é – justo”, afirma a líder.
Fonte:
Por Isabel Seta e José Cícero, da Agencia Pública

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