Como
Cuba, que já foi país 'ateu', agora vê crescimento de evangélicos
O
relógio marca 19h20 em Havana, capital de Cuba.
Em
frente a um prédio que estampa uma foto de cerca de um metro de altura do
revolucionário Ernesto Che Guevara, na Plaza del Cristo, no extremo oeste da
cidade, um grupo de cubanos, em sua maioria jovens, reúne-se para fazer algo
que era há até pouco tempo algo atípico na ilha: orar na rua.
Com as
mãos para cima, o grupo pede as bênçãos de Jesus por dias de prosperidade e
força para uma luta do bem contra o mal. É um dos sinais mais visíveis de um
fenômeno recente na ilha.
Cuba,
que já foi na prática um "Estado ateu", baseado na "concepção
materialista científica do Universo", agora vê o crescimento de
evangélicos, em meio à maior crise econômica do país dos últimos 30 anos.
Embora
não existam dados oficiais sobre o número de evangélicos no país, o consenso de
especialistas aponta no mesmo sentido do que agora se vê nas ruas de Havana.
"Sem
dúvida temos visto um aumento [dos evangélicos em Cuba] nos últimos cinco
anos", afirma o cubano Pedro Alvarez Sifontes, mestre em Estudos Sociais e
Filosóficos da Religião pela Universidade de Havana e pesquisador assistente no
Centro de Pesquisa Psicológica e Sociológica.
Foi a
crise de saúde pública compartilhada com o resto do mundo e o agravamento dos
problemas econômicos particulares da ilha que fomentaram a adesão de milhares
de cubanos, sobretudo jovens, às igrejas evangélicas, apontam entrevistados
pela BBC News Brasil.
"Depois
da pandemia, a crise levou muito mais pessoas a se aproximarem da fé e das
igrejas", diz o teólogo Eliecer Portal, evangélico batista que trabalha
como guia turístico no interior do país.
"Momentos
de crise chamam as pessoas à fé, principalmente quando sentem que suas vidas
estão em jogo."
• Estado 'ateu' com herança católica
Cuba
não é uma sociedade estranha à religião.
Colonizada
por espanhóis, o país tem uma vasta herança católica, com milhares de igrejas e
praças com nomes de santo espalhadas pelas cidades.
Outras
religiões de matriz africana, levadas pelos escravizados, também fizeram parte
da vida cubana durante séculos.
Porém,
após a revolução socialista de 1959, liderada por Fidel Castro, Ernesto Che
Guevara e Camilo Cienfuegos, o país caminhou em direção à interpretação
soviética da doutrina marxista que distanciava o Estado — e, portanto, a
população — da religião.
Assim,
a Constituição promulgada em 1976 previa que Cuba seria um Estado laico, sem
religião predominante e oficial, e baseado na "concepção materialista
científica do Universo".
"A
Constituição proclama a liberdade religiosa e o direito de praticar qualquer
religião que se queira. Mas, depois disso, havia um artigo que dizia que o
Estado era obrigado a propor e realizar todo o trabalho educacional baseado na
concepção científica marxista-leninista", diz Pedro Sifontes.
Segundo
ele, além do apelo constitucional, foram criadas normas ateístas como parte
intrínseca da educação e da cultura cubanas.
"Por
exemplo, no ensino superior, foi criada uma disciplina chamada Comunismo
Científico. Essa disciplina recriou tudo o que era ateísmo científico e
promulgou um positivismo neomarxista, o que não era a realidade da teoria de
[Karl] Marx e [Friedrich] Engels", diz, em referência aos ideólogos do
comunismo.
À
época, também foram criadas regulamentações que limitavam o acesso a crenças
religiosas e a diferentes facetas da vida cotidiana.
"Por
exemplo, pessoas religiosas não podiam cursar certas áreas, como jornalismo;
não podiam acessar cargos governamentais diretamente. Se você declarasse sua
religião ou filiação religiosa, não teria acesso a cargos de liderança no
governo", diz Sifontes.
"Todos
eram questionados sobre sua ascendência religiosa, para tudo. Para ser membro
do Partido Comunista da Juventude, você também tinha que declarar seu status
ateu, sua posição ateia. Se não, você não era admitido. E isso, claro, para
nós, cria toda uma concepção de um Estado ateu."
Apesar
disso, a religiosidade continuou presente no cotidiano dos cubanos, que
professavam suas crenças em pequenas igrejas ou residências.
"O
povo cubano nunca deixou de ser religioso. A Revolução, sabiamente, qualificou
a santeria [uma religião de matriz africana, praticada em Cuba] de folclore, o
que a livrou de preconceitos e perseguições", afirma Frei Betto, escritor
e teólogo.
"Fidel
me disse que a Virgem do Cobre não é padroeira apenas dos católicos cubanos,
mas de toda a nação. Nenhum país do continente americano recebeu tantas visitas
de papas quanto Cuba — sendo quatro, considerando que Francisco esteve lá duas
vezes."
A
aproximação do regime de Castro com a Igreja Católica, a partir da queda da
União Soviética, abriu espaço para as instituições religiosas na "maior
das Antilhas" — fenômeno celebrado por alguns como uma aproximação do
regime ao liberalismo e criticado por outros como uma rendição de idealismo de
Karl Marx à Igreja.
Segundo
Betto, "o Estado e o Partido comunista de Cuba eram oficialmente ateus até
mudanças operadas na década de 1990", embora o governo revolucionário
cubano sempre tenha convivido bem com todas as denominações religiosas — com
exceção da Igreja Católica, que, no início, se opôs ao regime comunista.
Após a
Revolução, o governo cubano chegou a expulsar padres e nacionalizar escolas e
meios de comunicação católicos. Em 1961, inclusive, Fidel Castro declarou a
Igreja Católica como um dos agentes contrarrevolucionários do país.
A tensa
relação começou a arrefecer a partir de meados da década de 1990, intensificada
com a visita do papa João Paulo 2º em janeiro de 1998, quando foi recebido com
cerimônias públicas.
Depois,
as visitas do papa Francisco consolidaram a aproximação entre a Igreja Católica
e o governo cubano.
"Quando
convenci Fidel do equívoco de não dialogar com os bispos católicos e da
importância de erradicar o caráter ateu da Constituição e do estatuto do
Partido Comunista, houve desconfiança de ambos lados no início do
diálogo", diz Frei Betto.
"Com
a publicação do livro Fidel e a religião, as relações melhoraram e, hoje, o
Estado cubano e Igreja Católica convivem com harmonia", avalia,
referindo-se ao livro de sua autoria para o qual conversou com Fidel Castro
sobre religião por 23 horas.
Entretanto,
segundo Pedro Sifontes, ocasionalmente ainda há tensões com membros da Igreja
Católica.
"Especialmente
devido às ações de alguns padres que se posicionam dissidentes contra o governo
cubano. Eles são uma pequena minoria, mas altamente visíveis nas redes
sociais", diz.
Há,
também, críticas da Igreja Católica ao governo.
"A
Igreja em Cuba se autoproclamou a 'consciência crítica da sociedade cubana' e
expressa periodicamente sua opinião por meio de cartas pastorais da Conferência
dos Bispos Católicos de Cuba — a maioria das quais, em maior ou menor grau,
bastante críticas ao governo cubano", afirma o pesquisador.
A
Constituição mais recente do país, aprovada em 2019, reconhece a garantia da
liberdade religiosa, seja ela qual for.
• Fé frente à crise
As
igrejas visitadas pela reportagem não fazem parte de qualquer congregação
internacional, mas é possível encontrar outras instituições ligadas a
congregações latinas ou americanas, responsáveis por introduzir o dogma
pentecostal no país desde antes da Revolução.
Agora,
segundo especialistas, a ascensão dessas novas igrejas conta com a influência
não só de religiosos estrangeiros, principalmente dos EUA, mas, também, das
redes sociais.
Pedro
Sifontes destaca que, desde 2020, houve um aumento relevante do número de fieis
dos movimentos pentecostais, neopentecostais e carismáticos.
São
referências a divisões do mundo evangélico, muitas delas com forte influência
da produção acadêmica e que também estão sendo usadas em Cuba — como o próprio
termo neopentecostalismo.
No
Brasil, os evangélicos costumam ser classificados em três vertentes:
protestantes históricos; os pentecostais e os neopentecostais.
Os
históricos, como calvinistas, luteranos e anglicanos, estão mais ligados às
práticas e crenças da origem do protestantismo.
Já o
pentecostalismo se expande a partir do século 20 com ênfase no Espírito Santo,
que podia se revelar através de milagres e acontecimentos sobrenaturais. Um dos
principais símbolos dessa corrente é a Assembleia de Deus.
O termo
neopentecostal, por sua vez, caracteriza igrejas surgidas depois dos anos 1950
— embora alguns autores falem mais no pós-1970.
Elas
enfatizam a guerra espiritual do bem contra o mal, tendem a ser mais flexíveis
com a rigidez dos costumes e professam a Teologia da Prosperidade , professada
por igrejas que associam a religiosidade a conquistas materiais e melhorias no
estilo de vida.
O
teólogo Eliecer Portal, que já frequentou igrejas neopentecostais, acrescenta
que a busca pela prosperidade em vida seduz muito dos jovens que procuram as
novas igrejas cubanas.
O
fenômeno é visível pelas ruas. Nas ruas de Santa Clara, no interior de Cuba, ou
da capital Havana, a reportagem presenciou homens e mulheres reunidos nas
praças para orar.
Há
grandes igrejas em bairros periféricos e outras menores, mais próximas ao
centro, instaladas no térreo das casas — que, mesmo quase caindo aos pedaços,
mantêm uma estrutura digital para os cultos, como TVs e sistemas de som novos e
completos.
"Cuba
é um país que não sabe o que quer. Ainda somos perseguidos, mas hoje já é
possível buscar a nossa fé e a prosperidade. Afinal, o fim dos tempos está
próximo e, por isso, muita gente está nos buscando", afirma um pastor, que
preferiu se identificar apenas como Daniel, à reportagem.
Sua
igreja, nomeada Cristo Fuente de Vida, tem duas unidades, em Havana.
Em uma
delas, no bairro de Habana Vieja, Daniel promovia um café da manhã comunitário
em uma manhã de domingo de abril.
Dezenas
de pessoas se apertavam em pequenos bancos para, depois do culto, desfrutar de
produtos que apenas os supermercados privados comercializam na ilha.
"As
pessoas nos procuram para que possam ajudá-las a encontrar Cristo e salvar suas
dores. Com Jesus no coração, tenho certeza que se iniciará uma época de
prosperidade e fartura", diz o pastor.
Para
Delana Corazza, cientista social brasileira e pesquisadora do Observatório
sobre os Neopentecostais na Política, as igrejas neopentecostais cubanas bebem
da mesma metodologia encontrada em toda América Latina, muitas vezes contando
com financiamento estrangeiro para oferecer conforto, esperança e senso de
pertencimento.
"As
igrejas evangélicas têm uma metodologia que atrai muito: um espaço de
acolhimento, de música, estética... Ali é uma válvula de escape. As pessoas se
ajudam, há um caldo de pertencimento, de comunidade, que outros espaços não
dão", afirma ela, que foi a Cuba estudar o fenômeno.
De
acordo com Pedro Alvarez Sifontes, não há qualquer censo religioso em Cuba dado
que, para o governo, a prática religiosa é um ato individual e, portanto, não
caberia qualquer tipo de investigação oficial do fenômeno.
"Este
é também um legado da política ateísta da Revolução até a década de 1990,
quando foi feita uma retificação precisa dos erros cometidos. A relação entre
religião e Estado melhorou consideravelmente, mas creio que ainda existem
alguns preconceitos, desconhecimento e ideias preconcebidas que ainda limitam
essas relações", diz.
"Outra
coisa que atrapalha é a capacidade bem cubana de pular de um grupo para outro,
chegando a praticar várias religiões ao mesmo tempo."
• Disputa política
Ainda
segundo o pesquisador, em meio ao regime de partido único que Cuba adota,
grupos evangélicos estão demonstrando uma atuação política mais forte — e mais
à direita.
Sifontes
menciona como exemplo uma declaração publicada em dezembro de 2023 por 15
lideranças evangélicas sobre o conflito Hamas-Israel, divergindo do
posicionamento majoritário do governo cubano.
O texto
condenou os ataques do Hamas naquele ano, afirmando que Israel tinha o direito
de existir e "habitar a região que historicamente foi seu território por
mais de mil anos, até ser expulsa como nação pelo Império Romano".
Sifontes
afirma que lideranças evangélicas têm se manifestado também sobre assuntos
relativos ao gênero — mas "todos tentam ser cuidadosos" nesses
posicionamentos, completa.
Segundo
Delana Corazza, as igrejas neopentecostais combateram duramente o Código das
Famílias de Cuba, que legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e
reconheceu uniões civis homoafetivas. Ele foi aprovado em 2022.
Outros
debates frequentes na direita mundial também são discutidas agora nas igrejas
em Cuba.
"Começou
um discurso do homeschooling em Cuba, em uma tentativa de pensar a privatização
da educação, dado que, segundo eles, o Estado queria doutrinar a família. Há
uma influência, não com a força do Brasil, dado que o Estado é muito
organizado, mas você vê essa influência do conservadorismo", diz a
pesquisadora.
Sifontes
relata que em Cuba também há hostilidade de evangélicos com religiões de matriz
africana — embora em "menor escala, mas com o mesmo potencial de
ação" que no Brasil.
"Nas
redes sociais, há muitos exemplos de pastores atacando irresponsavelmente
religiões cubanas de origem africana, usando frases depreciativas e até mesmo
pedindo que seus direitos como expressão religiosa sejam negados",
completa.
Para
Frei Betto, o surgimento dos neopentecostais como força política em Cuba é
preocupante.
"A
maioria [das igrejas neopentecostais] se opõe à Revolução e se aproveita da
atual crise do país para fomentar 'valores' do capitalismo, como individualismo
e meritocracia", diz.
"Mas,
o regime, hoje, se aproxima do neoliberalismo por uma questão de sobrevivência
da população, já que o bloqueio imposto pelos EUA e a inclusão, pela Casa
Branca, de Cuba na lista dos países promotores de terrorismo, afetam
profundamente a vida dos cubanos", opina.
Fonte:
BBC News Brasil

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