As
linguagens secretas do amor usadas nos últimos 200 anos
Se você
visitar a ala Richelieu do Museu do Louvre, em Paris, na França, você talvez
troque olhares com uma antiga rainha da Inglaterra.
Suas
mãos unidas são adornadas com anéis de alto valor. Ela apresenta um sorriso
muito leve, sereno e reservado.
Joias e
pedras preciosas cobrem seu véu, além dos ricos tecidos vermelhos e dourados do
seu vestido de mangas bufantes. E um colar com um pequeno crucifixo adorna seu
pescoço.
Sem
dúvida, o quadro deixa claro que ela estava destinada a atrair os olhares das
pessoas.
O
retrato de Ana de Cleves (1515-1557), do pintor suíço Hans Holbein, o Jovem
(c.1497-1543), era tão arrebatador que fez com que um dos homens mais poderosos
do mundo na época noivasse com ela em 1539: o rei inglês Henrique 8°
(1491-1547).
O
embaixador de Henrique em Cleves (hoje, na Alemanha) descreveu a pintura como
"muito jovial", indicando que o retrato era fiel. Mas alguns
historiadores acusam Holbein de ter exagerado a beleza de Ana.
De
qualquer forma, o primeiro encontro entre ela e o rei foi incrivelmente
constrangedor. Relatos históricos indicam que nenhum deles foi atraído pelo
outro.
O que
se seguiu foi um casamento não consumado, até que o casal conseguiu sua
anulação em julho de 1540 — o que teria sido, para alguns, um golpe de sorte
para Ana, a quarta esposa do rei.
Apresentar
uma possível futura rainha com um retrato, a princípio, pode parecer muito
distante das nossas tentativas modernas de encontrar o amor em um mundo de
serviços de namoro digitais. Mas os retratos para fins de namoro, na verdade,
estão de volta.
Em
2022, 30% dos adultos usavam aplicativos de namoro nos Estados Unidos. Eles
exigem que os usuários façam julgamentos preliminares fundamentais, com base em
pouco mais do que uma fotografia e, talvez, algumas palavras encorajadoras dos
amigos.
Como a
maior parte das interações de namoro modernas começa em uma tela, os usuários
são expostos a centenas de possíveis parceiros, selecionados por um algoritmo.
O namoro atual e o cortejo de centenas de anos atrás sugerem que as palavras
nem sempre foram fundamentais, nem mesmo necessárias, para encontrar o amor.
Algumas
das linguagens ocultas ou sinais visuais de atração surpreendentemente não
sofreram alterações ao longo dos séculos, enquanto outras caíram no
esquecimento.
O que
esses códigos não verbais revelam sobre a forma em que percebemos os
relacionamentos amorosos? Será que conhecê-los melhor pode nos ajudar a
encontrar o verdadeiro amor?
• O 'flerte com leque'
Vamos
começar com um período histórico conhecido por celebrar a corte e o amor
romântico.
A era
da Regência Britânica é geralmente definida como incluindo as décadas em torno
do ano 1800. Ela ofereceu às mulheres a oportunidade de serem não só atraídas e
cortejadas, mas também de serem ativas na busca por um casamento.
Nos
romances dos escritores da época, como Jane Austen (1775-1817), os personagens
buscam o casamento por razões sociais ou financeiras. Mas o amor costuma vencer
no final.
Casar-se
por amor se tornou um "ideal amplamente celebrado no século 18",
segundo a pesquisadora Sally Holloway, da Universidade de Warwick, no Reino
Unido. Ela é a autora do livro The Game of Love in Georgian England ("O
jogo do amor na Inglaterra georgiana", em tradução livre).
Naquela
época, as pessoas se preocupavam em encontrar o amor antes do casamento e não
em desenvolver a afeição por outra pessoa posteriormente. Isso "não é
diferente de como você determina sua compatibilidade com um parceiro hoje em
dia", explica ela.
O
interesse amoroso poderia se desenvolver em um dos eventos sociais da época.
Holloway
conta que era divertido ser o objeto do flerte sutil daqueles eventos públicos.
Existia na época, por exemplo, uma "linguagem de leques", "mas
era mais por diversão do que uma forma séria de comunicação".
Em
1797, o estilista Charles Frances Bandini criou um leque com um alfabeto
codificado, impresso em minúsculas letras ornamentadas. Ele permitia que as
mulheres enviassem mensagens através de uma sala.
O
chamado Leque de Conversação Feminina relacionava diferentes posições das mãos
para indicar cada uma das letras. Era um método similar à comunicação
semafórica, empregada principalmente pelos marinheiros, usando bandeiras
coloridas.
Em
1798, surgiu outro leque similar, chamado de Telégrafo das Damas para se
Corresponder à Distância.
"O
principal uso do leque entre os amantes teria sido um método de flerte muito
menos explícito, acompanhado de expressões de desejo, cílios tremulantes e
olhares amorosos", explica Holloway.
Os
sinais com os leques eram úteis nos bailes barulhentos e superlotados, ou
quando era necessário agir com discrição.
Mas,
nos quartos mais próximos, homens e mulheres podiam usar perfumes para
"estimular e fortalecer os sentimentos de amor e desejo sexual",
segundo a pesquisadora. Perfumes líquidos também eram aplicados a cartas de
amor, para seduzir um amante.
Holloway
conta que os homens no período da Regência Britânica eram tipicamente
apresentados a mulheres com inúmeros dons, que variavam de flores até retratos
em miniatura, para demonstrar sua afeição e compatibilidade como parceiros.
"Os
casais verificavam se suas inclinações e perspectivas sobre a vida eram
compatíveis e similares, trocando livros de presente e sublinhando as passagens
com as quais eles mais concordavam", explica ela.
"Nas
suas cartas, eles discutiam suas esperanças e temores, suas visões morais, o
que eles esperavam encontrar no casamento e trabalhavam para construir laços
emocionais mais próximos."
Em
troca, as mulheres "tipicamente presenteavam os homens com objetos
artesanais, como babados bordados e coletes, para mostrar suas habilidades
domésticas e o tempo investido em um pretendente, além de flores prensadas como
violetas, simbolizando sua modéstia, honestidade e fidelidade no amor",
explica Holloway.
Os dois
presentes simbolicamente mais importantes eram mechas de cabelo — um pedaço
físico do corpo do amado, que duraria mais do que o tempo deles na Terra — e um
anel, que simbolizava sua mão em casamento.
A
linguagem dos leques pode ter sido esquecida. Mas, segundo Holloway, existem
algumas similaridades com a forma em que os casais ainda fazem uso de presentes
e mensagens para se conectar no mundo do namoro moderno.
"Todos
estes rituais ajudavam a criar uma sensação de intimidade e proximidade
emocional, da mesma forma que os casais modernos podem trocar uma série de
presentes, textos, e-mails, planejar encontros e viagens ou passar tempo juntos
para determinar sua compatibilidade", explica ela.
• Uma forma antiga de rede social?
Quando
a fotografia passou a ser mais acessível e amplamente disponível durante o
período vitoriano (1837-1901), mais pessoas tinham a possibilidade de observar,
pela primeira vez, a aparência de celebridades e até da realeza.
Os
amigos e familiares também podiam trocar lembranças entre si. Com isso, a
tecnologia que se espalhava pela sociedade vitoriana no Reino Unido logo
encontraria um propósito amoroso: os cartões de visita, retratos com cerca de 9
cm x 6 cm, colados sobre um pedaço de cartão que podia ser enviado para
possíveis amantes.
Os
cartões eram baratos e facilmente trocados. Por isso, de certa forma, o retrato
poderia viralizar como ocorre com as imagens hoje em dia.
As
pessoas postavam anúncios solicitando a troca de cartões e os amantes poderiam
manter os cartões dos pretendentes perto delas, "quase como um pequeno
objeto de fetiche", segundo o professor John Plunkett, do Departamento de
Língua Inglesa da Universidade de Exeter, no Reino Unido.
Originalmente,
os cartões ficaram famosos graças à rainha Vitória (1819-1901) e ao príncipe
consorte Alberto (1819-1861), até se tornarem mais acessíveis para a classe
média e alta. Eles fizeram "parte da construção própria de um indivíduo em
relação a uma identidade coletiva mais ampla", segundo Plunkett, em um
estudo publicado no Journal of Victorian Culture.
Os
cartões ofereciam a algumas pessoas a primeira — e, talvez, única —
oportunidade de tirar sua foto. E podiam permitir que elas fizessem uma
marcante primeira impressão, como ocorre com os modernos aplicativos de namoro.
"Você
vestia sua melhor roupa de domingo", explica Plunkett.
As
pessoas também incluíam algo da sua personalidade. Elas posavam lendo para as
fotos ou de alguma forma que demonstrasse como elas eram modestas ou
dominantes.
O
cartão "oferece a possibilidade de declarar quem você é", segundo o
professor. "Você irá se fazer parecer com maior mobilidade social e status
superior."
Surgiu,
então, a moda de transformar em colagens os cartões das suas conexões sociais
mais próximas.
Um
estilo de arte se desenvolveu para colocar os amigos em poses incomuns e
criativas, reunidos em uma sala de visitas ou mesmo como vítimas infelizes de
uma teia de aranha. O propósito era guardar essas lembranças em um livro de
recortes e expressar um pouco como eram mantidos os amigos próximos.
Alguns
cartões podem ser observados no Museu Victoria & Albert, em Londres. Em
muitos deles, as pessoas posavam com objetos que representavam riqueza, como
esculturas ou pinturas. Em outros, até com animais de estimação.
Plunkett
explica que o uso de adereços ajudava as pessoas a permanecer imóveis enquanto
os fotógrafos tiravam seus retratos. As primeiras fotografias exigiam muito
mais tempo de exposição do que os retratos de hoje em dia.
Os
adereços também serviam, por exemplo, para incorporar "a sensação de um
pano de fundo grandioso" ou demonstrar sua profissão.
"É
tudo questão de elaborar uma aparência e pensar na visão de si próprio que você
deseja projetar... [como um] perfil do Instagram ou do Twitter", afirma
Plunkett. "Você irá escolher algo que demonstre uma certa versão de si
próprio."
Nos
aplicativos de namoro atuais, as pessoas também usam fundos e adereços, como
cenários exóticos ou animais, para refletir seus interesses e mostrar como elas
gostam de ser observadas.
• Romance nas casas noturnas de Berlim
No
final do período vitoriano, a etiqueta social começou a se flexibilizar e as
pessoas encontraram novos lugares par buscar parceiros.
As
salas de dança, por exemplo, tocavam música cada vez mais agitada até tarde da
noite. E o animado ritmo ragtime da época deu lugar ao jazz no século 20.
Ficou
socialmente mais aceitável que mulheres solteiras fossem aos bares e casas
noturnas com amigas para conhecer pessoas. E, com os novos espaços, surgiram
novas formas de sinalizar interesse.
Nos
anos 1920, Berlim, na Alemanha, passou a ser símbolo da vida noturna
ultramoderna da época.
Algumas
casas noturnas da cidade eram "imensas, com vários andares, pisos móveis e
até shows de balé na água", segundo a professora de História Social do
Século 20 Jennifer Evans, da Universidade Carleton de Ottawa, no Canadá. Ela é
a autora do livro Life Among the Ruins: Cityscape and Sexuality in Cold War
Berlin ("Vida em meio às ruínas: a paisagem urbana e a sexualidade na
Berlim da Guerra Fria", em tradução livre).
A
tecnologia da época permitia que as pessoas flertassem em casas agitadas.
A casa
noturna berlinense Residenz-Casino, mais conhecida como Resi, ficou famosa por
oferecer aos seus frequentadores meios de fazerem contato entre si. Eles usavam
o telefone ou um elaborado sistema de tubos pneumáticos em cada mesa.
O
sistema funcionava como nos tubos empregados nos sistemas internos de correio
dos escritórios da época, lojas de departamento e nos bancos, para enviar
dinheiro do andar térreo para o escritório.
Nele,
as mensagens podiam ser colocadas dentro de um cartucho metálico e empurradas
para um tubo, onde eram sugadas a vácuo até o seu destino.
Com
isso, uma pessoa podia escrever uma mensagem no papel e enviá-la para uma
central de distribuição.
Ali, o
operador leria o recado para garantir que ele fosse educado (uma espécie de
exemplo precoce da moderação de conteúdo praticada nas redes sociais hoje em
dia), antes de encaminhá-lo para a mesa do seu destinatário.
Além
das mensagens, poderiam ser comprados e enviados presentes para pessoas de
interesse romântico pretendidas, "desde cigarros e pequenas bugigangas até
cocaína", segundo Evans.
"Devia
ser bastante provocador observar outra pessoa, no outro lado do salão,
recebendo a mensagem, escondida à vista de todos", destaca a professora.
"Suas
reações, positivas ou negativas, imediatas e sem filtro, eram amplificadas pela
sensação de alegria e frivolidade no salão. Talvez devêssemos trazê-las de
volta."
O
início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, trouxe o fim desta forma de
interação social, segundo ela. Mas alguns sistemas de comunicação das casas
noturnas permaneceram no que se tornaria Berlim Ocidental, após a guerra. O
próprio Resi reabriu em 1951.
"Imagino
que estejamos sempre reinventando formas de conversar com as outras pessoas,
expressando nossos desejos, nesses espaços do semimundo [marginais ou
clandestinos]", segundo Evans. "Isso parece dizer muito sobre como
são os seres humanos e o quanto buscamos manter conexão."
• Sinais secretos na cultura LGBTQIA+
Os
relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo precisaram depender, por muito
tempo, de modos alternativos de comunicação, devido ao histórico de opressão e
marginalização sofrido pelas comunidades LGBTQIA+.
Historicamente,
sinais secretos permitiam a essas pessoas encontrar parceiros, livres da
hostilidade, violência e leis repressivas. O relacionamento entre pessoas do
mesmo sexo era ilegal até os anos 1960 e 1970 em grande parte da Europa — e até
os anos 2000, nos Estados Unidos.
O cravo
verde, por exemplo, se popularizou originalmente como símbolo com significado
oculto graças ao escritor homossexual irlandês Oscar Wilde (1854-1900).
Em
1892, Wilde instruiu alguns amigos a usá-los na lapela para a noite de abertura
da sua peça O Leque de Lady Windermere. Questionado sobre o seu significado, o
escritor teria respondido: "Nenhum, na verdade. Mas isso é exatamente o
que ninguém irá adivinhar."
"Isso
resume tantos símbolos queer", afirma Sarah Prager, autora do livro Queer,
There and Everywhere: 27 People who Changed the World ("Queer, ali e em
toda parte: 27 pessoas que mudaram o mundo", em tradução livre) e de
outros livros sobre a história LGBTQIA+. "Eles precisam ser dicas e
indicações ocultas, sem declarar abertamente seu significado."
Para
ela, "este pode ser um desafio para os historiadores. Alguns desses
símbolos podem nunca ser totalmente confirmados ou separados da lenda, pois
toda a questão é poder se comunicar em segredo, em tempos de opressão."
Outras
flores e plantas já foram associadas à comunidade LGBTQIA+.
"Além
do cravo verde, alguns dos exemplos mais antigos de floriografia queer são a
violeta e a lavanda", segundo Prager. "As cores púrpura, lavanda [e]
violeta são associadas à comunidade queer há séculos."
"Achamos
que isso remonta a Safo, a poetisa grega do século 6 a.C., [que] escreveu sobre
mulheres que amavam outras mulheres. Ela é um dos primeiros exemplos
registrados de mulheres queer."
As
joias são usadas, há muito tempo, como expressão visual e comunicadora da
identidade sexual entre as comunidades queer.
"Tenho
tatuagens, brincos e roupas que sinalizam minha condição queer, para facilitar
minha sensação de comunidade com as pessoas", explica Prager. "Minha
sensação quando vejo outra pessoa mostrando um desses símbolos é um
reconhecimento instantâneo de comunidade, segurança e afinidade."
Com a
liberação sexual e musical dos dançantes anos 1960 e 1970, a cultura queer
encontrou uma nova voz. Surgiram cada vez mais espaços para que a comunidade
LGBTQIA+ pudesse buscar o amor.
Na
Alemanha, por exemplo, "os homens gay usavam as páginas de Contatos
Desejados de revistas como Der Kreis e, mais tarde, nas revistas gay, como
Him", segundo Jennifer Evans.
"Ali,
eles publicavam anúncios em busca de 'amizade' ou companheirismo... ou às
vezes, mais abertamente, em busca de trocar fotos."
• O teste do tempo
O
desejo de encontrar um possível amor e se conectar alegremente por meio de
gestos em código com significado implícito permanece até hoje, seja em perfis
de aplicativos de namoro, presenças online curadas, pings, curtidas, rolagem de
telas e cumprimentos.
"Existe
um longo histórico de escritos secretos, muito antes dos conteúdos eróticos em
mensagens de texto ou de entrarmos nas mensagens diretas de alguém, como eles
dizem", explica Evans.
Ela
destaca que o flerte e os primeiros estágios do cortejo são associados, há
muito tempo, ao desenvolvimento de novas tecnologias, que permitem que as
pessoas comuniquem pensamentos e sensações ocultas, mesmo que à vista de todos.
Eles
variam "desde símbolos como um lenço colorido pendurado no bolso de trás
de um jeans no flerte gay até emojis significativos e abreviações em mensagens
de texto eróticas", segundo Evans.
A
professora salienta que, às vezes, este comportamento furtivo serve para manter
as pessoas em segurança, quando a adoção de certas práticas sexuais puder
colocar alguém em perigo se vier a público, por exemplo. Mas, de forma geral, o
objetivo é a pura emoção de compartilhar intimidades, segundo ela.
Os
códigos, rituais e imagens cuidadosamente compostas simplesmente fazem
"parte do jogo".
Fonte:
BBC Future

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