A
nação europeia pioneira na 'diplomacia da cerveja' que quer ensinar o mundo a
beber 'do jeito certo'
A
bebedeira começou às 10h39 da manhã. Vinte cervejeiros tinham acabado de entrar
no bar, dentro de uma cervejaria na República Tcheca, um dos grandes produtores
de cerveja do mundo.
Levantei
minha caneca de cerveja tipo pilsen com três dedos de espuma no topo e brindei
com Liam Taheny, um produtor de cerveja artesanal do sul da Austrália.
Quando
perguntei o que mais o impressionava na cultura cervejeira tcheca, ele não
hesitou. "O conhecimento de cerveja, e tudo relacionado a ela, é
simplesmente impressionante aqui."
"Você
diz isso por que conversou com cervejeiros tchecos?", perguntei.
"Estou
falando de pessoas comuns. Elas falam sobre cerveja de um jeito que só um
mestre cervejeiro ou um nerd de cerveja falaria lá na Austrália."
Taheny,
mestre cervejeiro da Brightstar Brewing, foi um dos 20 cervejeiros da
Austrália, do Canadá e dos Estados Unidos recentemente convidados pelo
Ministério da Agricultura da República Tcheca para passar cinco dias imersos na
cultura de cerveja do país.
Mas não
foi só uma farra regada a cerveja. O itinerário incluiu encontros em grandes e
pequenas cervejarias, com produtores de lúpulo, bartenders e donos de bares —
tudo parte de um experimento do governo tcheco chamado de "diplomacia da
cerveja".
A
República Tcheca – e especificamente a região da Boêmia — é famosa há muito
tempo pelo seu pivo (cerveja, em tcheco). Afinal, seus moradores vêm fabricando
essa bebida desde pelo menos o ano de 993 d.C.
Os
tchecos consomem mais cerveja per capita do que qualquer outro país do mundo
(quase o dobro do segundo colocado, a vizinha Áustria).
Em
muitos lugares do país, a cerveja é mais barata que uma garrafa de água
mineral. Não é à toa que o país se vende como o principal destino cervejeiro do
mundo.
Ainda
assim, entre os verdadeiros aficionados por cerveja, a lager tcheca sempre foi
relativamente subestimada, ofuscada pelas ales belgas, pelas cervejas bávaras,
da Alemanha, e pela febre mundial das IPAs.
Isso
pode ser atribuído ao passado tumultuado da região: foram 41 anos atrás da
"Cortina Ferro", que separava Europa sob influência soviética. Isso
tornava as cervejas tchecas difíceis de se encontrar no exterior.
E, nas
décadas desde o fim do comunismo, em 1989, as cervejarias tchecas tiveram que
se privatizar e modernizar, atualizando a tecnologia de produção.
Mas as
coisas estão mudando, e as lagers — especialmente as lagers ao estilo tcheco —
estão finalmente ganhando reconhecimento.
Desde
2019, uma rede de diplomatas e cervejarias tem trabalhado nos bastidores para
aumentar a visibilidade da cerveja tcheca e inspirar cervejeiros estrangeiros a
produzirem lagers autênticas no estilo tcheco: refrescantes, encorpadas, com
notas amargas, muitas vezes com um leve sabor amanteigado no final e servidas
com uma generosa camada de espuma.
O
Ministério da Agricultura não tem estatísticas, mas, desde que o governo
começou a receber cervejeiros de todo o mundo, as lagers tchecas de produtores
artesanais têm surgido em toda a América do Norte — os cervejeiros australianos
só foram incluídos recentemente nos encontros anuais sobre cerveja.
É uma
estratégia que lembra o Programa Global Thai, da Tailândia, uma forma de soft
power comestível lançado em 2002 para promover restaurantes e a culinária
tailandesa no exterior.
Esse
esforço levou a um boom de restaurantes tailandeses ao redor do mundo e ajudou
a colocar a Tailândia no mapa da gastronomia global.
Quando
o programa começou, havia 5,5 mil restaurantes tailandeses fora da Tailândia;
em outubro de 2023, já eram quase 17,5 mil, de acordo com algumas estimativas.
A revista The Economist cunhou rapidamente o termo
"gastrodiplomacia".
Agora,
a República Tcheca está seguindo os passos da Tailândia com sua missão de seis
anos de "diplomacia da cerveja". Afinal, seguindo a lógica por trás
disso, diferente da culinária tailandesa, a comida tcheca não faz exatamente
sucesso com os estrangeiros. Mas uma coisa que os tchecos sabem fazer bem é
cerveja.
Eu pude
ver o programa em ação quando fui convidado a me juntar aos cervejeiros por
algumas noites.
Em uma
das noites, nos esprememos dentro de uma pequena cervejaria artesanal chamada
Pioneer Beer, na cidade de Žatec, no norte da Boêmia, lar do cobiçado lúpulo
Saaz, que é um ingrediente essencial nas lagers ao estilo tcheco desde que a
Pilsner Urquell criou a primeira golden lager em 1842.
Os
cervejeiros se reuniram em volta do mestre cervejeiro Michal Havrda e começaram
a bombardeá-lo de perguntas, usando termos como "decocção" e
"floculação".
Alguns
dias depois, eles tiveram uma conversa animada com Vaclav Berka, mestre
cervejeiro aposentado da Pilsner Urquell, na cidade de Plzeň, e com Adam Brož,
atual mestre cervejeiro da Budvar, em České Buděvice, duas das maiores
cervejarias do país.
Eles
também passaram um tempo na Lukr, uma empresa inovadora de Plzeň que fabrica
torneiras de abertura lateral, que regulam melhor o fluxo de cerveja,
permitindo que o copo seja servido com a clássica e cremosa camada de espuma,
tão característica da cerveja tcheca.
"Se
você servir do jeito certo, com uma boa camada de espuma, ela vai adicionar uma
doçura e cremosidade à sua bebida que vai permanecer no seu paladar até o
último gole", explicou Ondřej Rozsypal, mestre de chope da Lukr e eleito o
bartender do ano em 2022.
Quando
a Lukr começou a vender as torneiras especiais para lager tcheca em 2015, a
empresa vendeu uma dúzia para a América do Norte. Hoje, a companhia vende até 2
mil por ano para bares e tap rooms em todos os cantos dos Estados Unidos e do
Canadá — e os esforços da diplomacia da cerveja são uma das razões para o
aumento na popularidade.
Poucos
dias antes, no famoso pub Lokál, em Praga, conhecemos Lucie Janečková, gerente
do Instituto Pivo, onde ela dá cursos sobre métodos corretos de servir cerveja
e faz tours focados na bebida pela cidade.
"Me
dá uma tristeza enorme ver um bartender destruindo uma cerveja ao servi-la do
jeito errado", disse.
"A
cultura cervejeira tcheca é sobre respeitar o processo de servir a cerveja, e
estamos tentando ensinar isso para cervejeiros estrangeiros, porque fazemos
isso há mais tempo do que qualquer outro lugar no mundo."
Como
mostrou a demonstração na Lukr, os tchecos reverenciam o processo de produção
de cerveja — e essa nova iniciativa é o exemplo mais recente de como um país
apaixonado por cerveja está ensinando ao mundo a beber do jeito certo.
"Você
precisa ser realmente muito bom em produzir cerveja para conseguir fazer uma
lager no estilo tcheco de verdade. E é exatamente isso que eles fazem
aqui", disse Meghan Michels, cervejeira da Holy Mountain Brewing Company,
de Seattle, nos Estados Unidos.
"Eles
fazem isso há séculos. Você precisa vir aqui e provar a original para ter uma
ideia de como a lager tcheca deve ser."
de como
a República Tcheca vem ensinando o mundo a beber do jeito certo
Ryan
Moncrieff, proprietário e mestre cervejeiro da Rafter R Brewing Company, em
Maple Creek, no Canadá, concordou: "Nós temos cerveja tcheca no Canadá e
não tem o mesmo gosto. Nunca está muito fresca", disse.
"Do
ponto de vista de um cervejeiro, a única forma de saber o gosto verdadeiro da
cerveja tcheca é ir até a fonte. Assim, se um tcheco for à minha cervejaria e
falar 'isso tem gosto de casa', eu vou saber que acertei em cheio."
A
verdade é que, assim como vários produtos para consumo, a cerveja tcheca não
viaja bem. Embora os cervejeiros tentem fazer o melhor para replicar a
autêntica cerveja tcheca, essa dura realidade desmascara a grande crença da
globalização: de que no mundo desenvolvido a gente pode ter o que quiser,
quando quiser.
Portanto,
para experimentar a cerveja tcheca como ela realmente foi feita, você tem que
ir para a República Tcheca.
E é
isso que o programa do governo tcheco pretende fazer: inspirar uma curiosidade
mais profunda nos amantes de cerveja sobre como é provar a cerveja tcheca na
própria República Tcheca.
Fonte:
BBC Travel

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