A
igualdade com a qual os socialistas mais se importam é a igualdade de poder
No
filme Cassino de Martin Scorsese de 1995, Robert De Niro
interpreta o chefe do cassino Ace Rothstein, ligado à máfia. Ace tenta garantir
que todos os aspectos de sua operação sejam perfeitos. Em uma cena particularmente
engraçada, ele está comendo um muffin de mirtilo durante uma reunião de
negócios no restaurante do cassino. Quando ele percebe que há menos mirtilos em
seu muffin do que no de seu sócio, ele volta furioso para a cozinha e impõe a
lei. “De agora em diante, quero que você coloque uma quantidade igual de
mirtilos em cada muffin!” O chef o encara incrédulo e pergunta: “Você sabe
quanto tempo isso levaria?”
Quando
socialistas falam em superar a desigualdade econômica, conservadores e
libertários às vezes reagem como se isso fosse tão absurdo e irreal quanto
garantir que cada bolinho tenha exatamente a mesma quantidade de mirtilos. Como
poderíamos impor a igualdade perfeita? Mesmo que todos começassem com partes
iguais dos recursos da sociedade, algumas pessoas não ganhariam inevitavelmente
ativos ao longo do tempo, enquanto outras os perderiam? Como poderíamos evitar
que tais desigualdades surgissem naturalmente?
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Que tipo de igualdade?
Imagine
que Jane reservasse parte de cada salário que recebe para comprar uma casa,
enquanto seu colega de trabalho James gasta a mesma quantia em uísque escocês
caro. Eventualmente, Jane se tornará proprietária de uma casa. Talvez o valor
da casa aumente com o tempo, e ela eventualmente consiga vendê-la por um valor
maior do que pagou. James, por sua vez, não tem nada para mostrar em troca de
suas decisões, exceto boas lembranças e um fígado um pouco deteriorado. Essa
desigualdade é de alguma forma questionável ou injusta?
O
filósofo Robert Nozick desenvolveu uma versão sofisticada desse argumento
anti-igualitário em Anarquia, Estado e
Utopia (1974),
onde escreveu a famosa frase: “a liberdade rompe padrões”. O argumento de
Nozick era que, se pares de indivíduos como James e Jane fossem livres para se
envolver no que ele chama de “atos capitalistas consentidos entre adultos” —
gastar seu dinheiro como bem entendessem —, o resultado não se assemelharia à
igualdade perfeita ou a qualquer outro padrão distributivo que pudesse ser
imaginado por filósofos. Devemos respeitar a liberdade econômica, pensa Nozick,
mesmo que o resultado seja uma grande desigualdade.
Há pelo
menos duas razões pelas quais argumentos como este não deveriam incomodar os
socialistas. Primeiro, você pode pensar que os recursos de uma sociedade devem
ser distribuídos de forma razoavelmente igualitária, sem exigir exatamente a
mesma quantidade de mirtilos em cada bolinho. Em 2020, por exemplo, o CEO
médio ganhava trezentas e
cinquenta vezes mais do que o trabalhador médio. Você pode pensar que isso é
muito mais desigualdade do que a justiça permite, sem insistir que cada pessoa
tenha o mesmo valor em sua conta bancária.
“Quando
os socialistas falam sobre superar a desigualdade econômica, os conservadores e
libertários às vezes reagem como se isso fosse absurdo e irrealista, como
garantir que cada bolinho tenha exatamente a mesma quantidade de mirtilos.”
Se o
“padrão” com o qual nos importamos é que ninguém ganhe absurdamente trezentas e
cinquenta vezes mais do que outra pessoa, em teoria nem precisamos impedir a
capacidade das pessoas de se envolverem em “atos capitalistas”. Podemos
simplesmente intervir de vez em quando — digamos, todo dia 15 de abril — para
redistribuir parte da riqueza das pessoas no topo para as pessoas na base. Os
libertários podem alegar que isso é uma violação da “liberdade” econômica
porque estaríamos “roubando” dos ricos, mas, como argumentei em outra ocasião, não há razão para
levar essa alegação a sério.
Em
segundo lugar, embora todos, de socialistas a liberais do New Deal, concordem
que disparidades de renda de 350:1 são obscenas, de uma perspectiva socialista
o tipo mais importante de igualdade econômica não é a desigualdade de
renda em si, mas a desigualdade de poder econômico.
No capitalismo, as pessoas compram e vendem não apenas bens, mas também a
propriedade (ou cotas de propriedade) de empresas. Isso significa que a
sociedade está dividida entre uma classe de proprietários e uma classe de
trabalhadores, e há um desequilíbrio de poder impressionante entre elas.
O nível
obsceno de desigualdade de renda dentro das empresas capitalistas decorre dessa
desigualdade básica de poder. Em vez de todos em uma empresa decidirem
democraticamente como dividir a receita gerada por seu esforço coletivo, alguém
como Jeff Bezos pode decidir unilateralmente ficar com uma parte suficiente dos
lucros da Amazon para poder literalmente comprar sua própria nave espacial. É
isso que nós, os socialistas, queremos dizer quando falamos de “exploração” — a
parcela da receita produzida coletivamente que um proprietário obtém não porque
tenha alguma reivindicação convincente que possa convencer os trabalhadores a
aceitar, mas simplesmente porque tem o poder de tirá-la deles.
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O exemplo Mondragon
Mesmo
sob o capitalismo, os trabalhadores podem introduzir um grau de democracia em
seus locais de trabalho organizando um sindicato. É um grande passo na direção
certa. Mas os trabalhadores ainda têm menos controle sobre as decisões de seus
chefes do que os parlamentos tinham sobre as ações dos reis em algumas versões
do feudalismo.
Compare
isso com a empresa administrada por trabalhadores mais bem-sucedida do mundo: a
espanhola Mondragon, uma federação de cooperativas com dezenas de milhares de
membros. Nenhum trabalhador da Mondragon ganha mais do que cerca de
seis vezes e meia o salário do membro com menor remuneração. Se a economia
espanhola fosse dominada por cooperativas — para que a Mondragon não precisasse
competir por talentos gerenciais e técnicos com as corporações capitalistas tradicionais
— essas disparidades salariais provavelmente seriam menores.
“Não
vamos acabar com algumas pessoas ganhando centenas de vezes mais do que outras
quando todos têm o direito de votar com base em escalas salariais.”
No
entanto, é revelador que a diferença na Mondragon seja tão pequena em
comparação com a norma capitalista. Não se acaba com algumas pessoas ganhando
centenas de vezes mais do que outras quando todos votam em escalas salariais.
Talvez seja possível convencer seus colegas de trabalho de que você deveria
ganhar um pouco mais se assumir mais estresse ou responsabilidade, ou se tiver
que realizar tarefas particularmente sujas ou perigosas. Mas boa sorte em
convencê-los de que você precisa ganhar o suficiente para poder comprar sua
própria nave espacial.
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O veto empresarial
Aigualdade
de poder no local de trabalho também é um pré-requisito para a igualdade de
poder na sociedade como um todo. Eu disse anteriormente que, “em teoria”, as
piores desigualdades do capitalismo podem ser corrigidas no nível político sem
mudar o sistema econômico. Isso é verdade até certo ponto — mas apenas até
certo ponto, visto que desigualdades no poder econômico sempre se traduzem em
desigualdades no poder político.
Se você
possui uma fábrica que emprega metade dos trabalhadores do seu distrito
eleitoral, você tem direito a um voto na época da eleição, assim como seus
funcionários — mas se ligar para o gabinete do seu deputado, há uma grande
chance de ser conectado ao próprio deputado. Um operário da sua fábrica teria
sorte se conseguisse uma longa conversa com um estagiário. Mesmo em países
capitalistas com leis rígidas de financiamento de campanha, os políticos têm
todos os motivos para apaziguar os proprietários. Afinal, os capitalistas têm
um trunfo na manga: eles podem exercer seu “veto empresarial” sobre políticas
que desagradam, fechando as portas e se mudando para outro lugar.
“Os
capitalistas têm um trunfo no bolso: eles podem exercer seu ‘veto empresarial’
sobre políticas que não gostam fechando empresas e se mudando para outro
lugar.”
O único
poder de “veto” de que os trabalhadores desfrutam é o poder de saída — e, mais
cedo ou mais tarde, eles terão que reingressar na economia em algum outro
ambiente de trabalho igualmente hierárquico, onde poderão ter muitas das mesmas
reclamações. Ah, e não exerça esse poder de saída com muita frequência nem
considere suas opções por muito tempo, ou essas lacunas em seu histórico
profissional serão um problema na sua próxima entrevista de emprego!
Além de
esse tipo de desigualdade no local de trabalho ter inúmeros efeitos negativos —
desde ambientes de trabalho inseguros até a terceirização e o esvaziamento da
democracia política —, desequilíbrios extremos de poder são inaceitáveis por si só.
Certamente, todo empreendimento complexo que envolva cooperação
humana em larga escala requer algum grau de hierarquia operacional.
Sem que
determinadas pessoas tenham o poder de tomar decisões específicas no dia a dia,
sem ter que consultar todos sobre cada detalhe, muito pouco será feito. No
entanto, se quem dá ordens não for democraticamente responsável perante quem as
executa, acabaremos com alguns seres humanos dependentes dos caprichos de
outros de uma forma intrinsecamente degradante.
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Socialismo e igualdade
Como o
falecido sociólogo marxista Erik Olin Wright aponta em seu livro “Como Ser um
Anticapitalista no Século XXI”, seu direito como indivíduo de fazer o que
quiser em contextos onde ninguém mais é prejudicado por suas decisões está
intimamente ligado ao direito de todos de ter voz ativa em decisões que
impactam a coletividade. Ambos são aspectos do valor único que ele chama de
“autodeterminação”.
Se eu
quiser ficar sentado chapado assistindo aos filmes da franquia Madrugada
Muito Louca na privacidade da minha casa, não deveria importar que
você ache que isso é um mau uso do meu tempo, porque somos iguais e você não
deveria ter o poder de tomar decisões por mim. Mas se eu sou seu chefe e quero
acabar com a sua vida fechando o supermercado onde você e dezenas de outras
pessoas trabalham, eu não deveria poder utilizar exatamente o mesmo
argumento.
Em um
sistema totalmente socialista, todas as empresas seriam de propriedade dos
trabalhadores, de propriedade pública ou uma combinação das duas. Não tenho
ilusões de que tal sociedade seria uma utopia imaculada, onde todos teriam
exatamente o mesmo que todos os outros. Algumas pessoas desfrutariam de
sucessos e vantagens em uma área ou outra de suas vidas, que outras não teriam.
Conflitos interpessoais, ressentimentos e invejas persistiriam. O mesmo
aconteceria com os conflitos políticos por causa de mil questões que não
desapareceriam apenas porque a sociedade não seria dividida em classes
econômicas.
Mas
quaisquer que fossem os conflitos que tivéssemos, poderíamos enfrentá-los em pé
de igualdade. E isso é o que importa.
Fonte: Por Ben
Burgis – Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil

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