sexta-feira, 4 de julho de 2025

A igualdade com a qual os socialistas mais se importam é a igualdade de poder

No filme Cassino de Martin Scorsese de 1995, Robert De Niro interpreta o chefe do cassino Ace Rothstein, ligado à máfia. Ace tenta garantir que todos os aspectos de sua operação sejam perfeitos. Em uma cena particularmente engraçada, ele está comendo um muffin de mirtilo durante uma reunião de negócios no restaurante do cassino. Quando ele percebe que há menos mirtilos em seu muffin do que no de seu sócio, ele volta furioso para a cozinha e impõe a lei. “De agora em diante, quero que você coloque uma quantidade igual de mirtilos em cada muffin!” O chef o encara incrédulo e pergunta: “Você sabe quanto tempo isso levaria?”

Quando socialistas falam em superar a desigualdade econômica, conservadores e libertários às vezes reagem como se isso fosse tão absurdo e irreal quanto garantir que cada bolinho tenha exatamente a mesma quantidade de mirtilos. Como poderíamos impor a igualdade perfeita? Mesmo que todos começassem com partes iguais dos recursos da sociedade, algumas pessoas não ganhariam inevitavelmente ativos ao longo do tempo, enquanto outras os perderiam? Como poderíamos evitar que tais desigualdades surgissem naturalmente?

<><> Que tipo de igualdade?

Imagine que Jane reservasse parte de cada salário que recebe para comprar uma casa, enquanto seu colega de trabalho James gasta a mesma quantia em uísque escocês caro. Eventualmente, Jane se tornará proprietária de uma casa. Talvez o valor da casa aumente com o tempo, e ela eventualmente consiga vendê-la por um valor maior do que pagou. James, por sua vez, não tem nada para mostrar em troca de suas decisões, exceto boas lembranças e um fígado um pouco deteriorado. Essa desigualdade é de alguma forma questionável ou injusta?

O filósofo Robert Nozick desenvolveu uma versão sofisticada desse argumento anti-igualitário em Anarquia, Estado e Utopia (1974), onde escreveu a famosa frase: “a liberdade rompe padrões”. O argumento de Nozick era que, se pares de indivíduos como James e Jane fossem livres para se envolver no que ele chama de “atos capitalistas consentidos entre adultos” — gastar seu dinheiro como bem entendessem —, o resultado não se assemelharia à igualdade perfeita ou a qualquer outro padrão distributivo que pudesse ser imaginado por filósofos. Devemos respeitar a liberdade econômica, pensa Nozick, mesmo que o resultado seja uma grande desigualdade.

Há pelo menos duas razões pelas quais argumentos como este não deveriam incomodar os socialistas. Primeiro, você pode pensar que os recursos de uma sociedade devem ser distribuídos de forma razoavelmente igualitária, sem exigir exatamente a mesma quantidade de mirtilos em cada bolinho. Em 2020, por exemplo, o CEO médio ganhava trezentas e cinquenta vezes mais do que o trabalhador médio. Você pode pensar que isso é muito mais desigualdade do que a justiça permite, sem insistir que cada pessoa tenha o mesmo valor em sua conta bancária.

“Quando os socialistas falam sobre superar a desigualdade econômica, os conservadores e libertários às vezes reagem como se isso fosse absurdo e irrealista, como garantir que cada bolinho tenha exatamente a mesma quantidade de mirtilos.”

Se o “padrão” com o qual nos importamos é que ninguém ganhe absurdamente trezentas e cinquenta vezes mais do que outra pessoa, em teoria nem precisamos impedir a capacidade das pessoas de se envolverem em “atos capitalistas”. Podemos simplesmente intervir de vez em quando — digamos, todo dia 15 de abril — para redistribuir parte da riqueza das pessoas no topo para as pessoas na base. Os libertários podem alegar que isso é uma violação da “liberdade” econômica porque estaríamos “roubando” dos ricos, mas, como argumentei em outra ocasião, não há razão para levar essa alegação a sério.

Em segundo lugar, embora todos, de socialistas a liberais do New Deal, concordem que disparidades de renda de 350:1 são obscenas, de uma perspectiva socialista o tipo mais importante de igualdade econômica não é a desigualdade de renda em si, mas a desigualdade de poder econômico. No capitalismo, as pessoas compram e vendem não apenas bens, mas também a propriedade (ou cotas de propriedade) de empresas. Isso significa que a sociedade está dividida entre uma classe de proprietários e uma classe de trabalhadores, e há um desequilíbrio de poder impressionante entre elas.

O nível obsceno de desigualdade de renda dentro das empresas capitalistas decorre dessa desigualdade básica de poder. Em vez de todos em uma empresa decidirem democraticamente como dividir a receita gerada por seu esforço coletivo, alguém como Jeff Bezos pode decidir unilateralmente ficar com uma parte suficiente dos lucros da Amazon para poder literalmente comprar sua própria nave espacial. É isso que nós, os socialistas, queremos dizer quando falamos de “exploração” — a parcela da receita produzida coletivamente que um proprietário obtém não porque tenha alguma reivindicação convincente que possa convencer os trabalhadores a aceitar, mas simplesmente porque tem o poder de tirá-la deles.

<><> O exemplo Mondragon

Mesmo sob o capitalismo, os trabalhadores podem introduzir um grau de democracia em seus locais de trabalho organizando um sindicato. É um grande passo na direção certa. Mas os trabalhadores ainda têm menos controle sobre as decisões de seus chefes do que os parlamentos tinham sobre as ações dos reis em algumas versões do feudalismo.

Compare isso com a empresa administrada por trabalhadores mais bem-sucedida do mundo: a espanhola Mondragon, uma federação de cooperativas com dezenas de milhares de membros. Nenhum trabalhador da Mondragon ganha mais do que cerca de seis vezes e meia o salário do membro com menor remuneração. Se a economia espanhola fosse dominada por cooperativas — para que a Mondragon não precisasse competir por talentos gerenciais e técnicos com as corporações capitalistas tradicionais — essas disparidades salariais provavelmente seriam menores.

“Não vamos acabar com algumas pessoas ganhando centenas de vezes mais do que outras quando todos têm o direito de votar com base em escalas salariais.”

No entanto, é revelador que a diferença na Mondragon seja tão pequena em comparação com a norma capitalista. Não se acaba com algumas pessoas ganhando centenas de vezes mais do que outras quando todos votam em escalas salariais. Talvez seja possível convencer seus colegas de trabalho de que você deveria ganhar um pouco mais se assumir mais estresse ou responsabilidade, ou se tiver que realizar tarefas particularmente sujas ou perigosas. Mas boa sorte em convencê-los de que você precisa ganhar o suficiente para poder comprar sua própria nave espacial.

<><> O veto empresarial

Aigualdade de poder no local de trabalho também é um pré-requisito para a igualdade de poder na sociedade como um todo. Eu disse anteriormente que, “em teoria”, as piores desigualdades do capitalismo podem ser corrigidas no nível político sem mudar o sistema econômico. Isso é verdade até certo ponto — mas apenas até certo ponto, visto que desigualdades no poder econômico sempre se traduzem em desigualdades no poder político.

Se você possui uma fábrica que emprega metade dos trabalhadores do seu distrito eleitoral, você tem direito a um voto na época da eleição, assim como seus funcionários — mas se ligar para o gabinete do seu deputado, há uma grande chance de ser conectado ao próprio deputado. Um operário da sua fábrica teria sorte se conseguisse uma longa conversa com um estagiário. Mesmo em países capitalistas com leis rígidas de financiamento de campanha, os políticos têm todos os motivos para apaziguar os proprietários. Afinal, os capitalistas têm um trunfo na manga: eles podem exercer seu “veto empresarial” sobre políticas que desagradam, fechando as portas e se mudando para outro lugar.

“Os capitalistas têm um trunfo no bolso: eles podem exercer seu ‘veto empresarial’ sobre políticas que não gostam fechando empresas e se mudando para outro lugar.”

O único poder de “veto” de que os trabalhadores desfrutam é o poder de saída — e, mais cedo ou mais tarde, eles terão que reingressar na economia em algum outro ambiente de trabalho igualmente hierárquico, onde poderão ter muitas das mesmas reclamações. Ah, e não exerça esse poder de saída com muita frequência nem considere suas opções por muito tempo, ou essas lacunas em seu histórico profissional serão um problema na sua próxima entrevista de emprego!

Além de esse tipo de desigualdade no local de trabalho ter inúmeros efeitos negativos — desde ambientes de trabalho inseguros até a terceirização e o esvaziamento da democracia política —, desequilíbrios extremos de poder são inaceitáveis ​​por si só. Certamente, todo empreendimento complexo que envolva cooperação humana em larga escala requer algum grau de hierarquia operacional.

Sem que determinadas pessoas tenham o poder de tomar decisões específicas no dia a dia, sem ter que consultar todos sobre cada detalhe, muito pouco será feito. No entanto, se quem dá ordens não for democraticamente responsável perante quem as executa, acabaremos com alguns seres humanos dependentes dos caprichos de outros de uma forma intrinsecamente degradante.

<><> Socialismo e igualdade

Como o falecido sociólogo marxista Erik Olin Wright aponta em seu livro “Como Ser um Anticapitalista no Século XXI”, seu direito como indivíduo de fazer o que quiser em contextos onde ninguém mais é prejudicado por suas decisões está intimamente ligado ao direito de todos de ter voz ativa em decisões que impactam a coletividade. Ambos são aspectos do valor único que ele chama de “autodeterminação”.

Se eu quiser ficar sentado chapado assistindo aos filmes da franquia Madrugada Muito Louca na privacidade da minha casa, não deveria importar que você ache que isso é um mau uso do meu tempo, porque somos iguais e você não deveria ter o poder de tomar decisões por mim. Mas se eu sou seu chefe e quero acabar com a sua vida fechando o supermercado onde você e dezenas de outras pessoas trabalham, eu não deveria poder utilizar exatamente o mesmo argumento.

Em um sistema totalmente socialista, todas as empresas seriam de propriedade dos trabalhadores, de propriedade pública ou uma combinação das duas. Não tenho ilusões de que tal sociedade seria uma utopia imaculada, onde todos teriam exatamente o mesmo que todos os outros. Algumas pessoas desfrutariam de sucessos e vantagens em uma área ou outra de suas vidas, que outras não teriam. Conflitos interpessoais, ressentimentos e invejas persistiriam. O mesmo aconteceria com os conflitos políticos por causa de mil questões que não desapareceriam apenas porque a sociedade não seria dividida em classes econômicas.

Mas quaisquer que fossem os conflitos que tivéssemos, poderíamos enfrentá-los em pé de igualdade. E isso é o que importa.

 

Fonte: Por Ben Burgis – Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil

 

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