sexta-feira, 11 de julho de 2025

A ideologia de gênero e o fantasma do comunismo

O termo “ideologia de gênero” virou figurinha carimbada nos discursos de lideranças conservadoras no Brasil. Mas o que exatamente essa expressão coloca em funcionamento? E por que ela é tão poderosa? Nas últimas duas décadas, “ideologia de gênero” tornou-se um eixo mobilizador da política reacionária global, atravessando fronteiras e operando como uma gramática transnacional do medo moral. 

De cartilhas escolares no Brasil a debates parlamentares na Hungria, passando pelas eleições nos Estados Unidos e pelos protestos anti-LGBTQIA+ na França e na Itália, o que se desenha é uma guerra simbólica em torno do gênero, da sexualidade e da infância. Na França, o avanço de Marine Le Pen e do Rassemblement National é acompanhado por uma retórica que acusa escolas e políticas públicas de promoverem uma suposta “doutrinação de gênero”. Já nos Estados Unidos, leis estaduais como a “Don’t say gay”, aprovada na Flórida, vetam discussões sobre identidade de gênero nas salas de aula, ecoando a lógica de censura moral que já orientava o projeto “Escola sem partido” durante o governo Bolsonaro no Brasil. Trata-se de uma cruzada transcontinental que reconfigura a sexualidade como campo de batalha ideológica, instrumentalizando a infância e mobilizando afetos em nome de uma suposta salvação civilizacional.

Ao centro dessa guerra discursiva está uma construção poderosa. Estamos falando da figura da criança em perigo. O medo sexualizado em torno da infância é mobilizado por porta-vozes conservadores, igrejas e grupos ultradireitistas para justificar políticas de controle, censura e perseguição, em nome de uma suposta proteção moral. Mas, afinal, o que realmente está em disputa nessa guerra contra o gênero?

Minha pesquisa de doutorado investigou como essa expressão funciona como uma “fórmula discursiva”, ou seja, um tipo de chavão polêmico que produz sentidos cristalizados, mesmo que o que esteja por trás dele seja confuso, contraditório ou simplesmente inexistente. Não importa o conteúdo exato da tal “ideologia de gênero”. O que importa é o medo que ela mobiliza.

Analisei materiais considerados referência entre os ultradireitistas latino-americanos: textos de Olavo de Carvalho, o livro El libro negro de la nueva izquierda, de Nicolás Márquez e Agustín Laje, e discursos da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), realizada no México em 2022. Evento que reuniu a elite do conservadorismo continental. O que encontrei foi uma operação bem arquitetada daquilo que estou chamando de “manualização do medo”.

Esses discursos funcionam como manuais didáticos. Explicam “passo a passo” quem são os inimigos da sociedade: feministas, professores, artistas, movimentos LGBT+, negros, indígenas… Todos apresentados como cúmplices de uma suposta conspiração comunista para destruir a família, a moral, a infância e até mesmo a realidade biológica. É uma linguagem pedagógica que ensina o que deve ser temido e contra quem lutar.

Trata-se da fabricação de uma “ultra-realidade”, na qual o medo é explorado ao máximo como ferramenta política. Nesse regime enunciativo, a “ideologia de gênero” se torna o bode expiatório perfeito. Culpada por sexualizar crianças, promover a pedofilia, destruir a família, dividir a sociedade e até causar o colapso econômico. A frustração diante do fracasso pessoal, consequência direta do imperativo neoliberal de ser o “empreendedor de si”, é redirecionada contra as minorias, acusadas de terem privilégios demais. 

O ressentimento é alimentado pela crença de que o Estado, tomado por pautas identitárias e “gastos supérfluos”, abandonou o “cidadão comum”. Na lógica ultradireitista, ao homem branco, heterossexual e trabalhador, nada restou. O resultado é um discurso de guerra moral, que desloca a culpa do colapso social do capitalismo para um inimigo fantasioso, gerando afetos tristes e convertendo frustração em cruzada moral.

Nesse cenário, a Igreja, enquanto braço ideológico do Estado, é mobilizada para densificar a produção do inimigo. A religião, longe de ser um refúgio ético ou espiritual, se mostra arma política, funcionando em regime de mutualismo com o poder econômico e estatal. Não se trata apenas do funcionamento “espontâneo” do neoliberalismo, que já opera despolitizando a crise e protegendo o modo de produção capitalista por meio da fabricação de inimigos internos. 

Há também, de modo intencional e estratégico (os interesses das elites religiosas e dos burocratas sacerdotais), a instrumentalização das crenças religiosas como ferramenta de captura dos afetos e de reprodução da obediência. A guerra contra o gênero transforma-se, então, em espetáculo dramático e perverso. Um teatro que encena a salvação moral enquanto legitima o acúmulo de poder, prestígio e capital pelos líderes religiosos. Pastores, bispos e burocratas da fé, amparados por uma aliança profana com o mercado e a política ordinária, lucram com a guerra que travam contra corpos dissidentes, mulheres e sujeitos subalternizados. 

Nesse arranjo, o sagrado é prostituído em nome do lucro. A cruz, longe de qualquer transcendência, se mostra como aquilo que sempre foi nesse teatro do poder. Um dildo ideológico que masturba o capitalismo com a repressão da diferença. O moralismo religioso, longe de proteger a fé, apenas excita a máquina punitiva, oferecendo prazer à ordem enquanto ela castiga corpos desviantes. A fé é fetiche de controle; e a promessa de salvação, mera isca para a manutenção de um mundo velho, hierárquico e brutal.

O mais, digamos, irônico é que essa “guerra” assume a forma de saber científico. Apesar do negacionismo que muitos desses grupos apresentam em relação à ciência, eles mimetizam a linguagem acadêmica para dar aparência de legitimidade. Produzem livros, artigos, vídeos e conferências que imitam o discurso universitário. Criam, assim, um sistema de educação paralelo, uma espécie de pedagogia do medo, que ensina o cidadão comum a “identificar” a ameaça e combatê-la.

Nos discursos que analisei, a expressão “ideologia de gênero” aparece com o peso de um verbete de dicionário. Ou seja, “é isso e ponto”. Funciona como um enunciado definidor, que encerra o debate antes mesmo que ele comece. Ao operar assim, apaga a história conflituosa e múltipla da qual emergiu. Poucos sabem, e os discursos da ultradireita fazem questão de silenciar isso, que o termo foi inicialmente formulado por feministas marxistas nos anos 1980 para denunciar como o capitalismo estrutura e explora a divisão sexual do trabalho, subordinando os corpos das mulheres e naturalizando o trabalho doméstico não remunerado. Ou seja, uma crítica à própria ideologia do capital. 

O que os setores ultraconservadores fazem é um sequestro semântico. Arrancam o termo de sua origem crítica, esvaziam sua complexidade e o recheiam com medo e repulsa. Transformam-no em um significante flutuante que resume todas as ameaças morais, da pedofilia à destruição da família, e ao mesmo tempo fixam seu sentido como verdade absoluta, impermeável ao debate. Assim, “ideologia de gênero” deixa de ser uma crítica à dominação para se tornar uma ferramenta da dominação. Um rótulo disciplinador, um dispositivo de controle simbólico e afetivo, um enunciado que produz inimigos e desvia a atenção das verdadeiras violências do capital.

Ao se tornar fórmula discursiva, “ideologia de gênero” passa a operar como dispositivo de convocação: você não pode ficar neutro. Ou está contra, ou está “a favor”, mesmo que esse “a favor” seja apenas tentar explicar que o termo não faz sentido. Isso cria um jogo perverso, onde até os críticos acabam alimentando a circulação da fórmula.

Meu argumento é que essa fórmula discursiva está no centro de uma política do medo (que chamei de deimopolítica),1 que transforma qualquer tentativa de mudança social em ameaça à civilização. É a forma atual de uma velha estratégia. Desviar a atenção das contradições do capitalismo (desemprego, racismo, desigualdade, destruição ambiental) e canalizar o medo para os corpos dissidentes e para a sexualidade. Em outras palavras, o discurso da “ideologia de gênero” funciona como uma armadilha, parece falar de valores, mas na verdade trata de poder. E de como manter tudo como está.

A fórmula discursiva “ideologia de gênero” atualiza o pânico da Guerra Fria com cores mais “vivas” e muito mais perversas. Se antes o inimigo vestia verde-oliva ou boina vermelha, hoje ele usa saia, esmalte, pronome neutro e fala de afeto, desejo e dissidência. Trata-se de um novo “fantasma” que assombra o mundo ocidental, não mais o do comunismo marxista, mas o daquilo que a ultradireita imagina como “sexo sem pátria”.

A chamada “ideologia de gênero” funciona, nesse cenário, como uma gramática do medo. Não é apenas uma expressão, mas sim um artefato discursivo altamente produtivo que organiza a realidade e reativa os afetos da paranoia moral. Em sua dimensão material, esse artefato opera como uma espécie de verbete de manual, um enunciado definidor pronto para ser mobilizado como explicação total de qualquer fenômeno social que escape à normatividade cis-hétero-capitalista. Tudo o que desafia a família nuclear, o binarismo sexual, a divisão de papéis de gênero ou os preceitos da moral cristã é imediatamente subsumido a essa categoria pejorativa: “ideologia de gênero”.

O que se configura não é apenas uma disputa semântica, mas o funcionamento de uma engenharia política da linguagem, não como plano consciente ou arquitetado por sujeitos isolados, mas como efeito de um processo discursivo atravessado por interesses ideológicos e condições materiais. A expressão “ideologia de gênero” emerge e se estabiliza como um ponto nodal que articula uma cadeia semântica reativa, conectando feminismo, homossexualidade, aborto, marxismo, anticristianismo e degeneração social. Transforma-se, assim, em um significante flutuante. Vazio o bastante para ser preenchido com qualquer ameaça simbólica, e fixado o suficiente para operar como dispositivo de controle e mobilização afetiva. Essa maleabilidade, longe de ser um defeito, é precisamente o que a torna tão eficaz. Ela permite que a ultradireita module suas ofensivas culturais e institucionais sob a aparência de defesa moral e preservação social, desviando o foco das contradições estruturais do capitalismo.

Essa fabricação de um inimigo interno tem raízes profundas nas estratégias autoritárias de controle social. No século XX, o comunista foi o corpo do inimigo por excelência. Era a figura da ameaça interna que justificava a censura, a tortura, a vigilância, o sequestro dos corpos pela razão de Estado. No século XXI, o “comunista degenerado” é a bicha, a travesti, a professora feminista, a artista transgressora, o pedagogo queer. São essas figuras que representariam o risco da destruição da civilização. O pânico comunista da Guerra Fria deu lugar ao pânico de gênero.

A equação é simples e brutal. No regime discursivo da ultradireita, a corrosão da sociedade estaria ligada à dissolução de seus supostos fundamentos sexuais. A sexualidade torna-se, assim, o novo campo de batalha ideológico. Essa reconfiguração do inimigo opera uma transmutação estratégica. Desloca-se a luta de classes para uma guerra cultural. E isso é funcional ao capitalismo contemporâneo. Ao mobilizar o medo do outro sexual e cultural, reconfigura-se o ódio de classe em ódio ao diferente. Enquanto isso, os verdadeiros inimigos, isto é, o capital e sua engrenagem de exploração, escapam ilesos, ocultos sob o espetáculo moral da normalidade em risco.

O bolsonarismo é exemplar nesse processo. No Brasil, ele soube mobilizar a retórica da “ideologia de gênero” como operador central da sua gramática afetiva. Transformou a bicha em comunista, o comunista em pedófilo, a professora em agente do Foro de São Paulo. A máquina discursiva da ultradireita funde moral sexual e paranoia anticomunista em um só gesto. Assim, não há diferença radical entre um beijo gay e uma revolta armada. Ambos são partes do mesmo plano conspiratório da esquerda globalista.

No livro El libro negro de la nueva izquierda, de Nicolás Márquez e Agustín Laje, um dos manuais mais disseminados da ultradireita latino-americana, a ideia de que o “marxismo cultural” teria se infiltrado nas universidades, nas artes e nos movimentos sociais para destruir a família é apresentada como verdade inquestionável. A capa da obra é significante: nela, Che Guevara aparece maquiado e com uma boina com o símbolo do movimento feminista e ao fundo uma bandeira nas cores do arco-íris. A imagem não é apenas caricatural, ela é sintomática. Ali se condensa o funcionamento de um dispositivo discursivo que associa comunismo, sexualidade dissidente e ameaça moral. Trata-se de um efeito material da linguagem, em que os sentidos se organizam para produzir uma narrativa coesa e mobilizadora. Não é delírio, mas um operador ideológico. Um modo de condensar afetos, organizar o medo e fabricar um inimigo simbólico que justifique a cruzada política da ultradireita.

Essa articulação entre discurso sexual e discurso político, mas também discurso religioso, é fundamental para entender o funcionamento ideológico da fórmula “ideologia de gênero”. Ela fabrica um inimigo múltiplo e difuso, que ao mesmo tempo ameaça as crianças, a fé, a pátria, a economia, a liberdade. Um inimigo que não tem fronteira, mas que pode estar no quarto da sua filha, no livro didático, na novela da televisão, na campanha publicitária, no banheiro da escola. Isso produz um estado de alerta constante, uma sensação de ameaça difusa, mas contínua e, portanto, altamente funcional ao controle social.

Esse funcionamento, que chamei, na esteira da deimopolítica, de deimofágico (deimo = medo; fágico = devorar),2 devora os corpos produzidos como ameaçadores e fabrica esperança na proteção estatal. O medo justifica o autoritarismo. E esse autoritarismo se apresenta não como opressão, mas como cuidado. A repressão aparece como amor: pelo filho, pela pátria, por “deus”. O ódio é vendido como zelo. O fascismo se apresenta como segurança. A censura como moralidade.

Nesse sentido, defendi a tese de que a “ideologia de gênero” não é apenas um pilar discursivo da ultradireita na América Latina,3 mas seu dispositivo estratégico central. Serve à constituição de identificações fascistas que mobilizam o desejo social em torno de líderes autoritários, em nome da contenção do mal. Um mal que é, antes de tudo, sexual. E, por isso mesmo, deve ser extirpado do corpo social. Daí a obsessão com o ânus, com a vagina, com a genitália, com o que se faz no quarto. Daí a necessidade de legislar sobre corpos, desejos e identidades. Porque é no controle do sexo que se fundamenta a nova cruzada política.

Se o comunismo do século passado foi combatido em nome da propriedade, o “comunismo” do presente é combatido em nome da família. O resultado é a fusão da moralidade sexual com a ideologia de Estado. E essa fusão é o que define o novo fascismo. Uma política de extermínio do outro travestida de proteção da infância. Uma teologia do ódio disfarçada de amor cristão. Uma máquina de guerra sexual que atualiza os horrores da ditadura com estética gospel-empresarial.

Trata-se também de um mecanismo de profissionalização da contrainsurgência, conforme discutem Thays Fidelis e Raphael Seabra.4 Eles destacam que o Estado brasileiro, especialmente a partir da ditadura militar, configura-se como um Estado de contrainsurgência, no qual há uma cooperação estrutural entre as Forças Armadas e o capital financeiro, mantendo uma lógica corporativa autoritária que persiste mesmo sob regimes formais democráticos. Essa profissionalização da contrarrevolução não se reduz ao fascismo histórico clássico, mas constitui uma forma própria de dominação autoritária no capitalismo dependente, cuja função principal é conter os movimentos populares e garantir a reprodução ampliada do capital, muitas vezes por meio do terror institucionalizado e da militarização da vida social.

Nesse contexto, as Forças Armadas atuam como agentes centrais na circulação da chamada “ideologia de gênero”, que se tornou um discurso-chave para a militarização da vida social e a construção de uma guerra cultural voltada à defesa da “família tradicional” e dos “valores morais”. Essa circulação não é apenas um efeito colateral, mas uma tática estratégica para mitigar as condições de emergência da contrainsurgência em um neoliberalismo marcado pela automatização subjetiva e pela fragmentação dos coletivos.

A ideologia de gênero desempenha um papel estratégico para conter a contrainsurgência que, em sua emergência, se torna improvável. Para além da contenção direta, ela funciona como um mecanismo de contrarrevolução em um período de quase inexistência da contrainsurgência efetiva. Conforme a lógica descrita por Naomi Kleim, pode ser entendida como um “mecanismo de choque”. Uma resposta ordinária das políticas neoliberais de austeridade que visa gerenciar de forma superficial as tensões sociais, dispersar resistências e preservar o funcionamento do sistema capitalista. 

Assim, a ideologia de gênero, mobilizada como discurso de medo e ameaça às estruturas familiares e morais, não só desvia o foco das desigualdades econômicas e políticas, mas atua como um dispositivo ideológico que permite a manutenção da ordem neoliberal, reforçando práticas punitivas e repressivas em nome da proteção da moralidade. Isso revela como a contrarrevolução contemporânea se adapta às novas condições históricas, substituindo a violência direta da contrainsurgência clássica por estratégias simbólicas e culturais que garantem a reprodução do capital e a neutralização das disputas sociais.

A “ideologia de gênero” é a nova encarnação da ameaça vermelha. Esse sintagma guarda-chuva passa a significar tudo o que pode ser nomeado como “perigo social”: feminismo, luta racial, indigenismo, aborto, homoafetividade, direitos humanos, educação sexual e, claro, comunismo. A demonização dos corpos dissidentes ganha função política clara, deslocando o debate da economia para a moralidade. Com isso, neutraliza-se o antagonismo de classe, travestindo-o em uma guerra cultural.

A fantasia persecutória da ultradireita precisa de um inimigo constante e eterno. Daí nasce a figura da eterna-bicha, um espectro que assombra a nação e precisa ser exorcizado. Não há comunismo sem perversão moral. A bicha comunista é a metonímia do caos. A produção discursiva desse inimigo sexual reforça a lógica de pânico moral, que exige ação imediata: censura, repressão, “meter bala”. O medo sexual justifica o autoritarismo político.

Faço referência a uma das produções do cinema nazista, o filme O eterno judeu, de 1940, dirigido por Fritz Hippler. Em várias cenas, fica claro que a periculosidade atribuída ao “judeu” estava em seu “polimorfismo”. Ele podia se disfarçar, apresentando-se como um indivíduo comum, um cidadão ordinário. A figura do “eterno judeu” se tornava ainda mais ameaçadora por poder imitar um europeu ou, pior, um alemão. Essa habilidade de camuflagem era vista como uma ameaça profunda.

Ao traçar um paralelo entre essa construção e o que chamo de “eternidade da bicha”, notamos um funcionamento semelhante. Assim como o “eterno judeu” se infiltrava nas estruturas sociais, a “eterna bicha” é evocada como agente de transformação ameaçadora, capaz de subverter normas e valores tradicionais. A “bicha” deixa de ser apenas uma figura a ser combatida e passa a expressar um medo profundo, que a sociedade contemporânea supostamente carrega. Trata-se de um efeito produzido pelo discurso social, que mantém viva essa ameaça imaginária.

O discurso da “ideologia de gênero” inaugura a realidade que denuncia. Ao esquematizar o inimigo como um projeto de destruição civilizacional, convoca o sujeito bolsonarista à guerra santa. O combate à “ideologia de gênero” torna-se, assim, o mais importante operador de produção de afetos tristes no cis-hétero-bolsonarismo.

E, como toda “boa” guerra simbólica que se preze, ela vem com seus manuais de ódio, seus mártires da moralidade e seus apóstolos do retrocesso. “Eles”, os supostos inimigos da família, da religião e da infância, precisam ser meticulosamente nomeados, caçados, silenciados, eliminados. A “ideologia de gênero” não é apenas um conceito. É o novo nome do terror moderno, o bode expiatório perfeito para a cruzada moral-religiosa disfarçada de virtude. E contra esse “terror”, tudo é permitido: fake news escancaradas, doutrinação religiosa disfarçada de ensino, censura ardilosa, e até a violência física, tudo pela “salvação” da pátria, da “moral” e da “criança”. A cruzada moral não conhece limites, não tolera dúvidas, não admite o meio-termo. É uma máquina brutal de exclusão que mascara seu fascismo com preces e hipocrisia. Assim funciona o discurso da “ideologia de gênero” na cena política e social da América Latina no contemporâneo.

Em tons irônicos. Eis o novo fantasma que ronda o Ocidente, não o proletariado de boina vermelha, mas a bicha de batom coral, a travesti de saia longa, o professor que ousa dizer “elu”, o desejo que se recusa a dobrar a espinha diante da norma. Diante dele, a velha bíblia já não consola, apenas se agita em púlpitos febris, com versículos esfregados em nome da ordem, como quem se masturba diante do sofrimento alheio, num fetiche de pureza que só excita a engrenagem do capital. A cruz, antigo instrumento de tortura convertido em insígnia de poder e de transcendência, não aponta para o alto, mas para o aparelho repressivo do Estado, marcando os corpos que devem ser crucificados em nome da moral. No teatro da contrarrevolução, a fé constitui mera performance de autoridade, e o corpo dissidente expressa a oferenda sacrificial. Resta-nos desmascarar o exorcismo e encarar o fantasma: porque ele não veio para destruir a civilização, mas para revelar que ela sempre esteve apodrecida, para relevar a crueza de sua decomposição.

 

Fonte: Por Rick Afonso-Rocha, no Le Monde

 

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