A
ideologia de gênero e o fantasma do comunismo
O termo
“ideologia de gênero” virou figurinha carimbada nos discursos de lideranças
conservadoras no Brasil. Mas o que exatamente essa expressão coloca em
funcionamento? E por que ela é tão poderosa? Nas últimas duas décadas,
“ideologia de gênero” tornou-se um eixo mobilizador da política reacionária
global, atravessando fronteiras e operando como uma gramática transnacional do
medo moral.
De
cartilhas escolares no Brasil a debates parlamentares na Hungria, passando
pelas eleições nos Estados Unidos e pelos protestos anti-LGBTQIA+ na França e
na Itália, o que se desenha é uma guerra simbólica em torno do gênero, da
sexualidade e da infância. Na França, o avanço de Marine Le Pen e do
Rassemblement National é acompanhado por uma retórica que acusa escolas e
políticas públicas de promoverem uma suposta “doutrinação de gênero”. Já nos
Estados Unidos, leis estaduais como a “Don’t say gay”, aprovada na Flórida,
vetam discussões sobre identidade de gênero nas salas de aula, ecoando a lógica
de censura moral que já orientava o projeto “Escola sem partido” durante o
governo Bolsonaro no Brasil. Trata-se de uma cruzada transcontinental que
reconfigura a sexualidade como campo de batalha ideológica, instrumentalizando
a infância e mobilizando afetos em nome de uma suposta salvação civilizacional.
Ao
centro dessa guerra discursiva está uma construção poderosa. Estamos falando da
figura da criança em perigo. O medo sexualizado em torno da infância é
mobilizado por porta-vozes conservadores, igrejas e grupos ultradireitistas
para justificar políticas de controle, censura e perseguição, em nome de uma
suposta proteção moral. Mas, afinal, o que realmente está em disputa nessa
guerra contra o gênero?
Minha
pesquisa de doutorado investigou como essa expressão funciona como uma “fórmula
discursiva”, ou seja, um tipo de chavão polêmico que produz sentidos
cristalizados, mesmo que o que esteja por trás dele seja confuso, contraditório
ou simplesmente inexistente. Não importa o conteúdo exato da tal “ideologia de
gênero”. O que importa é o medo que ela mobiliza.
Analisei
materiais considerados referência entre os ultradireitistas latino-americanos:
textos de Olavo de Carvalho, o livro El libro negro de la nueva izquierda, de
Nicolás Márquez e Agustín Laje, e discursos da Conferência de Ação Política
Conservadora (CPAC), realizada no México em 2022. Evento que reuniu a elite do
conservadorismo continental. O que encontrei foi uma operação bem arquitetada
daquilo que estou chamando de “manualização do medo”.
Esses
discursos funcionam como manuais didáticos. Explicam “passo a passo” quem são
os inimigos da sociedade: feministas, professores, artistas, movimentos LGBT+,
negros, indígenas… Todos apresentados como cúmplices de uma suposta conspiração
comunista para destruir a família, a moral, a infância e até mesmo a realidade
biológica. É uma linguagem pedagógica que ensina o que deve ser temido e contra
quem lutar.
Trata-se
da fabricação de uma “ultra-realidade”, na qual o medo é explorado ao máximo
como ferramenta política. Nesse regime enunciativo, a “ideologia de gênero” se
torna o bode expiatório perfeito. Culpada por sexualizar crianças, promover a
pedofilia, destruir a família, dividir a sociedade e até causar o colapso
econômico. A frustração diante do fracasso pessoal, consequência direta do
imperativo neoliberal de ser o “empreendedor de si”, é redirecionada contra as
minorias, acusadas de terem privilégios demais.
O
ressentimento é alimentado pela crença de que o Estado, tomado por pautas
identitárias e “gastos supérfluos”, abandonou o “cidadão comum”. Na lógica
ultradireitista, ao homem branco, heterossexual e trabalhador, nada restou. O
resultado é um discurso de guerra moral, que desloca a culpa do colapso social
do capitalismo para um inimigo fantasioso, gerando afetos tristes e convertendo
frustração em cruzada moral.
Nesse
cenário, a Igreja, enquanto braço ideológico do Estado, é mobilizada para
densificar a produção do inimigo. A religião, longe de ser um refúgio ético ou
espiritual, se mostra arma política, funcionando em regime de mutualismo com o
poder econômico e estatal. Não se trata apenas do funcionamento “espontâneo” do
neoliberalismo, que já opera despolitizando a crise e protegendo o modo de
produção capitalista por meio da fabricação de inimigos internos.
Há
também, de modo intencional e estratégico (os interesses das elites religiosas
e dos burocratas sacerdotais), a instrumentalização das crenças religiosas como
ferramenta de captura dos afetos e de reprodução da obediência. A guerra contra
o gênero transforma-se, então, em espetáculo dramático e perverso. Um teatro
que encena a salvação moral enquanto legitima o acúmulo de poder, prestígio e
capital pelos líderes religiosos. Pastores, bispos e burocratas da fé,
amparados por uma aliança profana com o mercado e a política ordinária, lucram
com a guerra que travam contra corpos dissidentes, mulheres e sujeitos
subalternizados.
Nesse
arranjo, o sagrado é prostituído em nome do lucro. A cruz, longe de qualquer
transcendência, se mostra como aquilo que sempre foi nesse teatro do poder. Um
dildo ideológico que masturba o capitalismo com a repressão da diferença. O
moralismo religioso, longe de proteger a fé, apenas excita a máquina punitiva,
oferecendo prazer à ordem enquanto ela castiga corpos desviantes. A fé é
fetiche de controle; e a promessa de salvação, mera isca para a manutenção de
um mundo velho, hierárquico e brutal.
O mais,
digamos, irônico é que essa “guerra” assume a forma de saber científico. Apesar
do negacionismo que muitos desses grupos apresentam em relação à ciência, eles
mimetizam a linguagem acadêmica para dar aparência de legitimidade. Produzem
livros, artigos, vídeos e conferências que imitam o discurso universitário.
Criam, assim, um sistema de educação paralelo, uma espécie de pedagogia do
medo, que ensina o cidadão comum a “identificar” a ameaça e combatê-la.
Nos
discursos que analisei, a expressão “ideologia de gênero” aparece com o peso de
um verbete de dicionário. Ou seja, “é isso e ponto”. Funciona como um enunciado
definidor, que encerra o debate antes mesmo que ele comece. Ao operar assim,
apaga a história conflituosa e múltipla da qual emergiu. Poucos sabem, e os
discursos da ultradireita fazem questão de silenciar isso, que o termo foi
inicialmente formulado por feministas marxistas nos anos 1980 para denunciar
como o capitalismo estrutura e explora a divisão sexual do trabalho,
subordinando os corpos das mulheres e naturalizando o trabalho doméstico não
remunerado. Ou seja, uma crítica à própria ideologia do capital.
O que
os setores ultraconservadores fazem é um sequestro semântico. Arrancam o termo
de sua origem crítica, esvaziam sua complexidade e o recheiam com medo e
repulsa. Transformam-no em um significante flutuante que resume todas as
ameaças morais, da pedofilia à destruição da família, e ao mesmo tempo fixam
seu sentido como verdade absoluta, impermeável ao debate. Assim, “ideologia de
gênero” deixa de ser uma crítica à dominação para se tornar uma ferramenta da
dominação. Um rótulo disciplinador, um dispositivo de controle simbólico e
afetivo, um enunciado que produz inimigos e desvia a atenção das verdadeiras
violências do capital.
Ao se
tornar fórmula discursiva, “ideologia de gênero” passa a operar como
dispositivo de convocação: você não pode ficar neutro. Ou está contra, ou está
“a favor”, mesmo que esse “a favor” seja apenas tentar explicar que o termo não
faz sentido. Isso cria um jogo perverso, onde até os críticos acabam
alimentando a circulação da fórmula.
Meu
argumento é que essa fórmula discursiva está no centro de uma política do medo
(que chamei de deimopolítica),1 que transforma qualquer tentativa de mudança
social em ameaça à civilização. É a forma atual de uma velha estratégia.
Desviar a atenção das contradições do capitalismo (desemprego, racismo,
desigualdade, destruição ambiental) e canalizar o medo para os corpos
dissidentes e para a sexualidade. Em outras palavras, o discurso da “ideologia
de gênero” funciona como uma armadilha, parece falar de valores, mas na verdade
trata de poder. E de como manter tudo como está.
A
fórmula discursiva “ideologia de gênero” atualiza o pânico da Guerra Fria com
cores mais “vivas” e muito mais perversas. Se antes o inimigo vestia
verde-oliva ou boina vermelha, hoje ele usa saia, esmalte, pronome neutro e
fala de afeto, desejo e dissidência. Trata-se de um novo “fantasma” que
assombra o mundo ocidental, não mais o do comunismo marxista, mas o daquilo que
a ultradireita imagina como “sexo sem pátria”.
A
chamada “ideologia de gênero” funciona, nesse cenário, como uma gramática do
medo. Não é apenas uma expressão, mas sim um artefato discursivo altamente
produtivo que organiza a realidade e reativa os afetos da paranoia moral. Em
sua dimensão material, esse artefato opera como uma espécie de verbete de
manual, um enunciado definidor pronto para ser mobilizado como explicação total
de qualquer fenômeno social que escape à normatividade cis-hétero-capitalista.
Tudo o que desafia a família nuclear, o binarismo sexual, a divisão de papéis
de gênero ou os preceitos da moral cristã é imediatamente subsumido a essa
categoria pejorativa: “ideologia de gênero”.
O que
se configura não é apenas uma disputa semântica, mas o funcionamento de uma
engenharia política da linguagem, não como plano consciente ou arquitetado por
sujeitos isolados, mas como efeito de um processo discursivo atravessado por
interesses ideológicos e condições materiais. A expressão “ideologia de gênero”
emerge e se estabiliza como um ponto nodal que articula uma cadeia semântica
reativa, conectando feminismo, homossexualidade, aborto, marxismo,
anticristianismo e degeneração social. Transforma-se, assim, em um significante
flutuante. Vazio o bastante para ser preenchido com qualquer ameaça simbólica,
e fixado o suficiente para operar como dispositivo de controle e mobilização
afetiva. Essa maleabilidade, longe de ser um defeito, é precisamente o que a
torna tão eficaz. Ela permite que a ultradireita module suas ofensivas
culturais e institucionais sob a aparência de defesa moral e preservação
social, desviando o foco das contradições estruturais do capitalismo.
Essa
fabricação de um inimigo interno tem raízes profundas nas estratégias
autoritárias de controle social. No século XX, o comunista foi o corpo do
inimigo por excelência. Era a figura da ameaça interna que justificava a
censura, a tortura, a vigilância, o sequestro dos corpos pela razão de Estado.
No século XXI, o “comunista degenerado” é a bicha, a travesti, a professora
feminista, a artista transgressora, o pedagogo queer. São essas figuras que
representariam o risco da destruição da civilização. O pânico comunista da
Guerra Fria deu lugar ao pânico de gênero.
A
equação é simples e brutal. No regime discursivo da ultradireita, a corrosão da
sociedade estaria ligada à dissolução de seus supostos fundamentos sexuais. A
sexualidade torna-se, assim, o novo campo de batalha ideológico. Essa
reconfiguração do inimigo opera uma transmutação estratégica. Desloca-se a luta
de classes para uma guerra cultural. E isso é funcional ao capitalismo
contemporâneo. Ao mobilizar o medo do outro sexual e cultural, reconfigura-se o
ódio de classe em ódio ao diferente. Enquanto isso, os verdadeiros inimigos,
isto é, o capital e sua engrenagem de exploração, escapam ilesos, ocultos sob o
espetáculo moral da normalidade em risco.
O
bolsonarismo é exemplar nesse processo. No Brasil, ele soube mobilizar a
retórica da “ideologia de gênero” como operador central da sua gramática
afetiva. Transformou a bicha em comunista, o comunista em pedófilo, a
professora em agente do Foro de São Paulo. A máquina discursiva da ultradireita
funde moral sexual e paranoia anticomunista em um só gesto. Assim, não há
diferença radical entre um beijo gay e uma revolta armada. Ambos são partes do
mesmo plano conspiratório da esquerda globalista.
No
livro El libro negro de la nueva izquierda, de Nicolás Márquez e Agustín Laje,
um dos manuais mais disseminados da ultradireita latino-americana, a ideia de
que o “marxismo cultural” teria se infiltrado nas universidades, nas artes e
nos movimentos sociais para destruir a família é apresentada como verdade
inquestionável. A capa da obra é significante: nela, Che Guevara aparece
maquiado e com uma boina com o símbolo do movimento feminista e ao fundo uma
bandeira nas cores do arco-íris. A imagem não é apenas caricatural, ela é
sintomática. Ali se condensa o funcionamento de um dispositivo discursivo que
associa comunismo, sexualidade dissidente e ameaça moral. Trata-se de um efeito
material da linguagem, em que os sentidos se organizam para produzir uma narrativa
coesa e mobilizadora. Não é delírio, mas um operador ideológico. Um modo de
condensar afetos, organizar o medo e fabricar um inimigo simbólico que
justifique a cruzada política da ultradireita.
Essa
articulação entre discurso sexual e discurso político, mas também discurso
religioso, é fundamental para entender o funcionamento ideológico da fórmula
“ideologia de gênero”. Ela fabrica um inimigo múltiplo e difuso, que ao mesmo
tempo ameaça as crianças, a fé, a pátria, a economia, a liberdade. Um inimigo
que não tem fronteira, mas que pode estar no quarto da sua filha, no livro
didático, na novela da televisão, na campanha publicitária, no banheiro da
escola. Isso produz um estado de alerta constante, uma sensação de ameaça
difusa, mas contínua e, portanto, altamente funcional ao controle social.
Esse
funcionamento, que chamei, na esteira da deimopolítica, de deimofágico (deimo =
medo; fágico = devorar),2 devora os corpos produzidos como ameaçadores e
fabrica esperança na proteção estatal. O medo justifica o autoritarismo. E esse
autoritarismo se apresenta não como opressão, mas como cuidado. A repressão
aparece como amor: pelo filho, pela pátria, por “deus”. O ódio é vendido como
zelo. O fascismo se apresenta como segurança. A censura como moralidade.
Nesse
sentido, defendi a tese de que a “ideologia de gênero” não é apenas um pilar
discursivo da ultradireita na América Latina,3 mas seu dispositivo estratégico
central. Serve à constituição de identificações fascistas que mobilizam o
desejo social em torno de líderes autoritários, em nome da contenção do mal. Um
mal que é, antes de tudo, sexual. E, por isso mesmo, deve ser extirpado do
corpo social. Daí a obsessão com o ânus, com a vagina, com a genitália, com o
que se faz no quarto. Daí a necessidade de legislar sobre corpos, desejos e
identidades. Porque é no controle do sexo que se fundamenta a nova cruzada
política.
Se o
comunismo do século passado foi combatido em nome da propriedade, o “comunismo”
do presente é combatido em nome da família. O resultado é a fusão da moralidade
sexual com a ideologia de Estado. E essa fusão é o que define o novo fascismo.
Uma política de extermínio do outro travestida de proteção da infância. Uma
teologia do ódio disfarçada de amor cristão. Uma máquina de guerra sexual que
atualiza os horrores da ditadura com estética gospel-empresarial.
Trata-se
também de um mecanismo de profissionalização da contrainsurgência, conforme
discutem Thays Fidelis e Raphael Seabra.4 Eles destacam que o Estado
brasileiro, especialmente a partir da ditadura militar, configura-se como um
Estado de contrainsurgência, no qual há uma cooperação estrutural entre as
Forças Armadas e o capital financeiro, mantendo uma lógica corporativa
autoritária que persiste mesmo sob regimes formais democráticos. Essa
profissionalização da contrarrevolução não se reduz ao fascismo histórico
clássico, mas constitui uma forma própria de dominação autoritária no
capitalismo dependente, cuja função principal é conter os movimentos populares
e garantir a reprodução ampliada do capital, muitas vezes por meio do terror
institucionalizado e da militarização da vida social.
Nesse
contexto, as Forças Armadas atuam como agentes centrais na circulação da
chamada “ideologia de gênero”, que se tornou um discurso-chave para a
militarização da vida social e a construção de uma guerra cultural voltada à
defesa da “família tradicional” e dos “valores morais”. Essa circulação não é
apenas um efeito colateral, mas uma tática estratégica para mitigar as
condições de emergência da contrainsurgência em um neoliberalismo marcado pela
automatização subjetiva e pela fragmentação dos coletivos.
A
ideologia de gênero desempenha um papel estratégico para conter a
contrainsurgência que, em sua emergência, se torna improvável. Para além da
contenção direta, ela funciona como um mecanismo de contrarrevolução em um
período de quase inexistência da contrainsurgência efetiva. Conforme a lógica
descrita por Naomi Kleim, pode ser entendida como um “mecanismo de choque”. Uma
resposta ordinária das políticas neoliberais de austeridade que visa gerenciar
de forma superficial as tensões sociais, dispersar resistências e preservar o
funcionamento do sistema capitalista.
Assim,
a ideologia de gênero, mobilizada como discurso de medo e ameaça às estruturas
familiares e morais, não só desvia o foco das desigualdades econômicas e
políticas, mas atua como um dispositivo ideológico que permite a manutenção da
ordem neoliberal, reforçando práticas punitivas e repressivas em nome da
proteção da moralidade. Isso revela como a contrarrevolução contemporânea se
adapta às novas condições históricas, substituindo a violência direta da
contrainsurgência clássica por estratégias simbólicas e culturais que garantem
a reprodução do capital e a neutralização das disputas sociais.
A
“ideologia de gênero” é a nova encarnação da ameaça vermelha. Esse sintagma
guarda-chuva passa a significar tudo o que pode ser nomeado como “perigo
social”: feminismo, luta racial, indigenismo, aborto, homoafetividade, direitos
humanos, educação sexual e, claro, comunismo. A demonização dos corpos
dissidentes ganha função política clara, deslocando o debate da economia para a
moralidade. Com isso, neutraliza-se o antagonismo de classe, travestindo-o em
uma guerra cultural.
A
fantasia persecutória da ultradireita precisa de um inimigo constante e eterno.
Daí nasce a figura da eterna-bicha, um espectro que assombra a nação e precisa
ser exorcizado. Não há comunismo sem perversão moral. A bicha comunista é a
metonímia do caos. A produção discursiva desse inimigo sexual reforça a lógica
de pânico moral, que exige ação imediata: censura, repressão, “meter bala”. O
medo sexual justifica o autoritarismo político.
Faço
referência a uma das produções do cinema nazista, o filme O eterno judeu, de
1940, dirigido por Fritz Hippler. Em várias cenas, fica claro que a
periculosidade atribuída ao “judeu” estava em seu “polimorfismo”. Ele podia se
disfarçar, apresentando-se como um indivíduo comum, um cidadão ordinário. A
figura do “eterno judeu” se tornava ainda mais ameaçadora por poder imitar um
europeu ou, pior, um alemão. Essa habilidade de camuflagem era vista como uma
ameaça profunda.
Ao
traçar um paralelo entre essa construção e o que chamo de “eternidade da
bicha”, notamos um funcionamento semelhante. Assim como o “eterno judeu” se
infiltrava nas estruturas sociais, a “eterna bicha” é evocada como agente de
transformação ameaçadora, capaz de subverter normas e valores tradicionais. A
“bicha” deixa de ser apenas uma figura a ser combatida e passa a expressar um
medo profundo, que a sociedade contemporânea supostamente carrega. Trata-se de
um efeito produzido pelo discurso social, que mantém viva essa ameaça
imaginária.
O
discurso da “ideologia de gênero” inaugura a realidade que denuncia. Ao
esquematizar o inimigo como um projeto de destruição civilizacional, convoca o
sujeito bolsonarista à guerra santa. O combate à “ideologia de gênero”
torna-se, assim, o mais importante operador de produção de afetos tristes no
cis-hétero-bolsonarismo.
E, como
toda “boa” guerra simbólica que se preze, ela vem com seus manuais de ódio,
seus mártires da moralidade e seus apóstolos do retrocesso. “Eles”, os supostos
inimigos da família, da religião e da infância, precisam ser meticulosamente
nomeados, caçados, silenciados, eliminados. A “ideologia de gênero” não é
apenas um conceito. É o novo nome do terror moderno, o bode expiatório perfeito
para a cruzada moral-religiosa disfarçada de virtude. E contra esse “terror”,
tudo é permitido: fake news escancaradas, doutrinação religiosa disfarçada de
ensino, censura ardilosa, e até a violência física, tudo pela “salvação” da
pátria, da “moral” e da “criança”. A cruzada moral não conhece limites, não
tolera dúvidas, não admite o meio-termo. É uma máquina brutal de exclusão que
mascara seu fascismo com preces e hipocrisia. Assim funciona o discurso da
“ideologia de gênero” na cena política e social da América Latina no
contemporâneo.
Em tons
irônicos. Eis o novo fantasma que ronda o Ocidente, não o proletariado de boina
vermelha, mas a bicha de batom coral, a travesti de saia longa, o professor que
ousa dizer “elu”, o desejo que se recusa a dobrar a espinha diante da norma.
Diante dele, a velha bíblia já não consola, apenas se agita em púlpitos febris,
com versículos esfregados em nome da ordem, como quem se masturba diante do
sofrimento alheio, num fetiche de pureza que só excita a engrenagem do capital.
A cruz, antigo instrumento de tortura convertido em insígnia de poder e de
transcendência, não aponta para o alto, mas para o aparelho repressivo do
Estado, marcando os corpos que devem ser crucificados em nome da moral. No
teatro da contrarrevolução, a fé constitui mera performance de autoridade, e o
corpo dissidente expressa a oferenda sacrificial. Resta-nos desmascarar o
exorcismo e encarar o fantasma: porque ele não veio para destruir a
civilização, mas para revelar que ela sempre esteve apodrecida, para relevar a
crueza de sua decomposição.
Fonte:
Por Rick Afonso-Rocha, no Le Monde

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