Netanyahu,
Malafaia e um diabo chamado Asmodeus
Tem o
interesse do império norte-americano, tem a destrutiva ganância capitalista,
tem o racismo, tem a crueldade pura, mas tem também o fanatismo religioso entre
as motivações para o infame crime que vem sendo cometido em Gaza.
Parte
dos fundamentalistas judaicos e cristãos babam diante da perspectiva de que o
genocídio palestino vá liberar espaço para a reconstrução do Templo de Salomão
onde agora está o Domo da Rocha e a Mesquita de Al-Aqsa, dois dos santuários
mais importantes do islamismo.
Na
visão dos fanáticos, a reconstrução do Templo marcará a realização da profecia
e a chegada do Messias esperado pelo judaísmo. Na versão cristã, a profecia tem
adendo: o Messias dos judeus será na verdade o Anticristo, então acontecerá uma
espécie de crossover apocalíptico das duas mitologias, com o Messias/Anticristo
enfrentando Jesus. Israel será devastada, a maior parte de sua população será
massacrada e os poucos sobreviventes terão que se converter ao cristianismo. Ou
seja, os fanáticos judeus e cristãos se aliam pragmaticamente agora com
objetivo de se matarem depois.
A ideia
de que a reconstrução do Templo está ligada à vinda do Messias é mais ou menos
consensual no judaísmo. Assim como a ideia de que sem Templo não há Apocalipse
é mais ou menos consenso no evangelismo cristão. Mas há perspectivas diversas a
respeito do assunto mesmo entre os judeus mais religiosos e entre evangélicos.
Dentre os últimos, tem os grupos — para os quais quanto pior melhor — que
pretendem acelerar o Apocalipse (Silas Malafaia e assembleianos), há os que
querem impedir isso — minoria, talvez alguns batistas e adventistas — e há os
que tentam não interferir — ficam na arquibancada, torcendo ou apenas
assistindo. Já entre os judeus religiosos, há os que defendem deixar a Mesquita
e o Domo em paz e reconstruir o Templo em algum outro lugar da vizinhança,
outros— talvez maioria — acham que o Messias, à ocasião de seu retorno, é quem
deve decidir quando, como e onde o novo Templo deve ser construído. Alas da
ortodoxia judaica consideram a própria ideia aceleracionista de forçar a vinda
do Messias com a construção do Templo, uma ideia “satânica”. Ainda assim, os
aceleracionistas têm bastante força no governo israelense atual. Netanyahu não
faz questão de disfarçar o desejo de bombardear os dois santuários.
E não é
só no governo israelense: os aceleracionistas também abundam no governo Trump.
A principal razão para Mike Huckabee ser o indicado de Trump para o cargo de
embaixador em Israel foi certamente suas credenciais de sionista cristão e
aceleracionista. “Eu nunca uso o termo Cisjordânia (West Bank)”, disse em
dezembro de 2023, “Acho ofensivo. Estamos falando da Judeia e Samaria…
Precisamos usar a linguagem bíblica”. E mais: referindo-se aos ataques
efetuados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, Huckabee declarou que “Não
estamos lidando com uma questão política, social, econômica ou geográfica.
Estamos lidando com uma questão espiritual. Isso é o mal”.
O
Secretário de Defesa Pete Hegseth, também um sionista cristão, declarou que
“não há razão para impedir o milagre da recolocação do templo no Monte do
Templo” (aliás, ele foi visto berrando “matem todos os muçulmanos” em um evento
para veteranos das Forças Armadas). O aceleracionismo domina também, cada vez
mais, a direção das Big Techs, e Peter Thiel e Elon Musk são alguns de seus
pastores. Isso tem muita relação, por exemplo, com obsessão de tantos desses
multibilionários com o planeta Marte (hora da propaganda: esse é um dos temas
do meu romance Um Santo em Marte).
“Curiosamente,
em um momento em que as elites seculares do Vale do Silício estão de repente
encontrando Jesus”, dizem Naomi Klein e Astra Taylor no texto “Rise of end
times fascism”, publicado mês passado no The Guardian, “suas visões têm muito
em comum com a interpretação fundamentalista cristã do arrebatamento bíblico,
quando os fiéis serão supostamente elevados a uma cidade dourada no céu,
enquanto os condenados serão deixados para suportar uma batalha final
apocalíptica aqui na Terra”. Klein e Astra chamam tal movimento de “fascismo do
fim dos tempos”, porque é um fascismo que pretende acelerar o apocalipse.
Nesse
sentido, parece coerente que o Templo que os fanáticos religiosos pretendem
reconstruir tenha sido originalmente construído pelo “príncipe dos demônios”,
Asmodeus.
No
segundo volume de Jerusalém, de Alan Moore, é o próprio demônio quem conta ao
menino Mike Warren (personagem que Moore criou baseado em Mike Moore, seu irmão
mais novo) como isso aconteceu. É famosa a capacidade imaginativa de Moore,
mas, nesse caso, ele segue rigorosamente o que diz o Talmude, o Testamento de
Salomão e outros livros e lendas a respeito do episódio.
O
Asmodeus (ou Asmodeu, Asmodai, Shamdon, Osmodeus, Shinodai, Hammadai e Samael,
o Negro) é um dos demônios mais populares do Ocidente. Seria ele a serpente que
serviu o fruto da árvore do conhecimento à Eva. No Livro de Tobias, Asmodeus,
apaixonado por Sara, mata todos os seus candidatos a marido. No Malleus
Maleficarum (1486), o sinistro manual dos inquisidores, Asmodeus é o demônio da
luxúria e do abominável pecado da fornicação (“gosto de pensar que eu era o
mais romântico”, comenta o Asmodeus de Jerusalém). Jeanne des Anges,
madre-superiora das ursulinas de Loudun, diz que é Asmodeus que a leva à
impudência, no famoso caso da possessão das freiras na Loudun do século
XVII[5]. Asmodeus é o marido de Lilith
e, no Clavícula de Salomão, é o chefe dos “Golab, ou Incendiários, gênios da
ira e da sedição”. Mas em outras tradições, é retratado como um personagem
prometeico que teria ensinado à humanidade as artes da aritmética, geometria,
astronomia e mecânica. É nele que teria sido baseado o gênio da lâmpada das Mil
e Uma Noites.
O
escritor espanhol Luís Velez de Guevara publicou em 1641 a sátira El Diablo
Cojuelo [O Diabo Manco], em que Asmodeus é liberto de uma garrafa por um
estudante e em retribuição mostra ao rapaz os segredos e podres da sociedade
madrilenha. Inspirado no livro de Guevara, o francês Alain-René Lesage escreveu
Le Diable Boiteux (1707), em que descreve Asmodeus como um cavalheiro bonito,
educado, elegante, simpático, bem-humorado, que ri da sociedade dos homens e
manca por causa de uma certa queda. O livro de Lesage é a inspiração para o
nome do jornal humorístico Diabo Coxo, que Angelo Agostini e Luiz Gama criaram
em 1864. É no Diabo Coxo que Agostini inicia sua carreira de quadrinista.
Guevara,
que tinha ascendência judaica, talvez tenha se inspirado no próprio Talmude,
que, com frequência, apresenta Asmodeus como um sujeito até simpático, que tem
senso de humor e mesmo certa piedade pelos humanos. Gershom Scholem, em seu
clássico Cabala, aponta que a tradição judaica fala de “demônios bons, que são
preparados para ajudar e fazer favores aos homens. Isso é particularmente
verdadeiro quanto aos demônios comandados por Ashmedai (Asmodeus), que aceitam
a Torah e são considerados ‘demônios judeus’. Sua existência é mencionada pelos
chassídicos asquenazes e também no Zohar’”. Uma lenda diz, inclusive, que
Asmodeus foi morto como mártir em 1096, no massacre de Mainz, quando várias
centenas de judeus foram cruelmente assassinados pela primeira Cruzada.
Mas
voltemos ao Templo. No Livro dos Reis, explica-se que ele foi construído sem
que se ouvisse o barulho dos machados e martelos. O Talmude talvez dê a
explicação:
Salomão
foi aos rabinos, perguntou como deveria ser construído o templo e eles disseram
que ele precisaria de uma pedra especial, o esmeril de Naxos. Como quisesse
indicação mais precisa, Salomão perguntou onde poderia encontrar essa pedra. Ao
invés de responderem em Naxos, ora!, os rabinos disseram: “Trazei aqui
demônios, tanto machos como fêmeas: eles saberão dizer onde se encontra”.
Salomão
capturou vários demônios, e eles disseram: “Nós não sabemos onde tem essa
pedra, mas talvez Asmodeus, príncipe dos demônios, saiba”. “E onde eu encontro
ele?”, perguntou Salomão.
“Ele
está numa montanha, onde cavou uma cisterna e a encheu de água. Todo dia ele
sobe aos Céus, aprende uma ou duas coisas na escola celestial, desce à terra e
aprende uma ou duas coisas na escola terrestre, depois volta à cisterna, bebe
um pouco de água e vai dormir”.
Salomão
chamou um assistente, Benaia. Deu a ele uma corrente e uma tornozeleira com o
inefável Nome de Deus gravado nelas. Deu também fios de lã e odres cheios de
vinho. Benaia foi à tal montanha, trocou a água da cisterna de Asmodeus por
vinho e foi se esconder atrás de uma árvore. Ao chegar, o demônio notou que era
vinho o que havia na cisterna, então se lembrou de dois alertas bíblicos contra
o vinho (Provérbios 20:1 e Oséias 4: 11) e decidiu não beber. Mas estava com
bastante sede e depois de um tempo lembrou: “‘O vinho alegra o coração do
homem, e torna o rosto mais radiante que o azeite!’ Livro dos Salmos 104:15!”.
E bebeu até cair de bêbado. Benaia então aproveitou e o acorrentou. No dia
seguinte Benaia obrigou Asmodeus a ir como prisioneiro até Salomão.
Mas
voltemos ao Templo. No Livro dos Reis, explica-se que ele foi construído sem
que se ouvisse o barulho dos machados e martelos. O Talmude talvez dê a
explicação:
Salomão
foi aos rabinos, perguntou como deveria ser construído o templo e eles disseram
que ele precisaria de uma pedra especial, o esmeril de Naxos. Como quisesse
indicação mais precisa, Salomão perguntou onde poderia encontrar essa pedra. Ao
invés de responderem em Naxos, ora!, os rabinos disseram: “Trazei aqui
demônios, tanto machos como fêmeas: eles saberão dizer onde se encontra”.
Salomão
capturou vários demônios, e eles disseram: “Nós não sabemos onde tem essa
pedra, mas talvez Asmodeus, príncipe dos demônios, saiba”. “E onde eu encontro
ele?”, perguntou Salomão.
“Ele
está numa montanha, onde cavou uma cisterna e a encheu de água. Todo dia ele
sobe aos Céus, aprende uma ou duas coisas na escola celestial, desce à terra e
aprende uma ou duas coisas na escola terrestre, depois volta à cisterna, bebe
um pouco de água e vai dormir”.
Salomão
chamou um assistente, Benaia. Deu a ele uma corrente e uma tornozeleira com o
inefável Nome de Deus gravado nelas. Deu também fios de lã e odres cheios de
vinho. Benaia foi à tal montanha, trocou a água da cisterna de Asmodeus por
vinho e foi se esconder atrás de uma árvore. Ao chegar, o demônio notou que era
vinho o que havia na cisterna, então se lembrou de dois alertas bíblicos contra
o vinho (Provérbios 20:1 e Oséias 4: 11) e decidiu não beber. Mas estava com
bastante sede e depois de um tempo lembrou: “‘O vinho alegra o coração do
homem, e torna o rosto mais radiante que o azeite!’ Livro dos Salmos 104:15!”.
E bebeu até cair de bêbado. Benaia então aproveitou e o acorrentou. No dia
seguinte Benaia obrigou Asmodeus a ir como prisioneiro até Salomão.
Moore
segue mais o Testamento de Salomão que a versão talmúdica. Conto aqui a versão
do Talmude do final da história:
Depois
de um tempo, os rabinos passaram a estranhar o comportamento do suposto rei. O
aumento gigantesco e repentino de seu apetite sexual, por exemplo. Eles
descobriram o verdadeiro Salomão na terra distante e o trouxeram de volta, com
os amuletos devidos. Quando Asmodeus viu Salomão entrando no palácio, fugiu
voando.
Mesmo
assim, Salomão viveu o resto de seus dias tremendo de terror ao pensar na
possibilidade de Asmodeus voltar. Passou a estar sempre cercado de sessenta
guerreiros, dos mais valentes e experientes de Israel. Todos eles estavam
sempre com a espada em punho, com medo da noite.
Fonte:
Por Rogério de Campos, no blog da Veneta

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