sábado, 28 de junho de 2025

Michel Goulart da Silva: A crise das esquerdas no Brasil

Os últimos anos mostraram um recuo da influência política das esquerdas, ainda que tenha conseguido voltar à presidência por meio de uma candidatura encabeçada pelo Partidos do Trabalhadores (PT). Percebe-se uma crise na esquerda, tanto do ponto de vista eleitoral como de uma perspectiva estratégica e organizativa.

Em certa medida parece que a experiência desses partidos em governos e prefeituras, bem como na presidência do Brasil, além de sua atuação parlamentar, que passa inclusive pela aliança com partidos de direita, fez com que uma parcela de seu antigo eleitorado tenha migrado para alternativas políticas, inclusive para partidos de direita. Por outro lado, não se observa há anos grandes lutas envolvendo os trabalhadores e, aquelas que ocorreram, tiveram como escopo questões mais imediatas, como reivindicações salariais ou de direitos sob ataque de governos e do parlamento.

Esse cenário de crise não é uma novidade na esquerda. Na segunda metade da década de 1930, Leon Trotsky escreveu importantes reflexões dentro do contexto das chamadas frentes populares, em que os partidos representantes dos trabalhadores assumiam governos em aliança com a burguesia. Esses governos visavam pôr fim à instabilidade política provocada por crises econômicas e sociais.

Na conjuntura em que foram criadas, as frentes populares eram formações políticas cuja principal tarefa passava por se constituir enquanto blocos institucionais para tentar barrar o avanço do fascismo. Contudo, essas formações políticas também assumiram o papel de desviar mobilizações dos trabalhadores em curso no período, direcionando essas lutas para a defesa da estabilidade do Estado, como se deu em meio à Revolução Espanhola e à onda de greves na França, em 1936.

Nas décadas seguintes essa tática se tornou comum entre as organizações de esquerda em diversos países. No Brasil, a adaptação da política de frente popular foi utilizada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), costurando alianças com setores do trabalhismo ou outros segmentos da burguesia “progressista”. O golpe de 1964 se deu num contexto de apoio do PCB ao governo João Goulart, no qual o central da política do partido passava pelo apoio ao governo como questão estratégica e não apenas como tática diante de ameaças do imperialismo.

Essa política de colaboração entre esquerda e setores da direita também viria a ser largamente utilizada pelo PT. Se o PT, em determinado momento de sua história, chegou a falar em construir o socialismo, ainda que fosse algo distante e dependesse de um impreciso “acúmulo de forças”, sua chegado ao governo deixou explícito que o partido pretendia ser um gestor do capitalismo. Diante dessa estratégia, não haveria a necessidade de superação das instituições burguesas ou da ordem capitalista; bastariam ações do governo no sentido de ampliar direitos para o “povo”.

O PT e outras agremiações que se reivindicam de esquerda estão bastante adaptados à institucionalidade e, por isso, buscam as alianças com a direita como estratégia de longo prazo e não apenas como uma tática momentânea. Com isso, deixou-se lado até mesmo o projeto democrático popular, que apontava para reformas na sociedade capitalista que poderiam colocar em choque setores da burguesia ou mesmo do imperialismo. Essa defesa de reformas foi substituída pela perspectiva de que as ações dos governos não devem colidir com os interesses da burguesia.

Mesmo em cenários no qual esteve colocada a possibilidade de uma ruptura protagonizada pelos trabalhadores, opta-se pela defesa da institucionalidade burguesa. Um exemplo recente se deu no governo Bolsonaro, em que a defesa da derrubada do governo pela ação dos trabalhadores organizados foi desviada para a estratégia de eleição do terceiro mandato de Lula, em 2022.

No âmbito da esquerda, as alternativas políticas que hoje se colocam como novas são a reedição caricata de teorizações do passado, como a das frentes populares. Com o abandono do programa de reformas pelo PT, essas ações passaram a ser defendidas por outras agremiações, como é o caso do PSOL.
O PSOL, ainda que aponte para a necessidade da mobilização e do socialismo, tem voltado suas ações para o fortalecimento das ações parlamentares e o apoio ao governo federal do PT. De um ponto de vista estratégico, o PSOL aderiu à lógica do “acúmulo de forças”, em que conquistas dentro do capitalismo não são vistas como uma ferramenta para o avanço na consciência da classe no sentido da revolução, mas como conquistas que, ao se acumularem, podem levar ao socialismo.

O processo de crise que vem passando o PT, bem como a maior parte da esquerda em outros países, mostra, de um lado, a degeneração do capitalismo e, do outro, o quanto é ilusório ainda apostar em políticas de colaboração de classe, como é o caso das frentes populares.

Como bússola, ainda parece cabível pensar que a esquerda deve tomar o que há de melhor na teoria e da prática desenvolvidas ao longo do século 20, se articular com as lutas concretas que se travam em todo o mundo e construir um caminho que possa levar a uma efetiva transformação da realidade. Assim, aumenta-se a possibilidade de um salto de qualidade na organização dos trabalhadores e na construção de uma perspectiva estratégica que se coloque para além da institucionalidade burguesa.

¨      Lula (e a esquerda) na encruzilhada. Por Eduardo Vasco

A situação internacional tem passado por uma drástica mudança qualitativa, em particular a partir da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. O regime neoliberal – transição da democracia parlamentar para o fascismo puro e simples – se esgotou. O capitalismo não consegue mais nenhuma via de escape que lhe permita o mínimo desenvolvimento real. A alternativa da burguesia imperialista, portanto, é o protecionismo, a industrialização pelo rearmamento e, finalmente, a guerra mundial. Essa política só pode ser implementada de maneira rigorosa e sistemática pela via fascista. Não se trata de uma escolha, mas sim do resultado natural do desmoronamento do sistema capitalista. Nos EUA e em importantes países europeus (Itália, Holanda, Áustria, Hungria etc.), a extrema-direita já chegou ao governo, e em outros (França, Alemanha, Portugal) é apenas questão de tempo.

É claro que esse cenário afeta o Brasil. A burguesia imperialista precisa intensificar a exploração das semicolônias e, para isso, necessita estabelecer um rígido controle político sobre elas. Como escrevi em fevereiro, o ajuste fiscal do final do ano foi a gota d’água para toda a burguesia brasileira e internacional. Aqueles setores que acreditavam em um pleno controle sobre o governo Lula se juntaram aos que sabiam que isso não era possível desde o primeiro momento. Forma-se uma frente única das variadas camadas da burguesia por uma mudança de regime no Brasil, pela derrubada de Lula e do PT.

A burguesia tem muitas armas para controlar um governo, mesmo que ele não seja o seu governo. Ainda na campanha eleitoral, a imposição de alianças com setores supostamente democráticos, o que leva necessariamente à incorporação desses setores às estruturas do governo eleito. A integração de um setor da esquerda fabricado pelas entidades imperialistas, que servem mais a estas do que às bases populares. Já empossado, a dependência do Congresso Nacional, para o qual é necessário entregar boa parte do funcionamento do governo, a fim de evitar que ele pare de funcionar. A ala da burguesia que é representada pela oposição contundente da extrema-direita. Logicamente também os instrumentos econômicos tradicionais, como a dívida pública, os juros, o Banco Central “autônomo” (do governo, não dos banqueiros) e os próprios alicerces da economia capitalista.

Neste terceiro governo Lula, houve uma inovação. Logo em seus primeiros dias, um setor da burguesia usou o outro no 8 de janeiro para prender uma bola de ferro no tornozelo do governo, obrigando-o a carregá-la pelo restante do mandato, minando as suas possibilidades de aplicação de uma política independente. No final das contas, enfraquecendo-o e fortalecendo-se (em todos os seus aspectos, legislativo, judicial, policial). A armadilha foi tão bem montada que não só Lula e o PT caíram nela, mas toda a esquerda nacional.

Nada disso foi suficiente para corrigir os rumos do governo, na visão da burguesia. A ofensiva que vinha sendo gestada ganhou impulso após a frustração do pacotinho de gastos. Isso coincidiu com o início do segundo e derradeiro período da atual administração, aquele quando as forças políticas se preparam com maior vigor para as próximas eleições. Não devemos nos enganar por nenhum instante: o escândalo do INSS não é sobre corrupção ou piedade para com os velhinhos. É mais uma alavanca para fortalecer a iniciativa golpista da burguesia. Novamente, começam a aparecer pesquisas de opinião, nas quais a popularidade de Lula está em queda livre. Através da propaganda da oposição, essas pesquisas afetam as bases eleitorais; pela repercussão na imprensa, afetam sobretudo o resíduo da elite política e econômica minimamente identificado com o governo até o momento, e que agora desembarcam gradualmente e numa velocidade crescente, com medo de serem excluídas do futuro clube de vencedores.

Tamanha desagregação do governo, representada pela saída do PDT e pela sabotagem e iminente debandada de União, Republicanos, PP e mesmo PSD e MDB, é facilitada pela probabilidade crescente de inviabilidade de uma candidatura bolsonarista competitiva. Se afastada a possibilidade de vitória da extrema-direita mais radical, aqueles que tiveram de apoiar Lula pontualmente em 2022 se livrarão desse fardo em 2026. Mas não se iludam: a própria Simone Tebet (MDB), ministra de Lula, revelou que será preciso um verdadeiro ajuste fiscal (não o que Lula fez) em 2027.

Os elogios de Tarcísio de Freitas, no Banco Safra, a Javier Milei, são sintomáticos: não importa o candidato da burguesia e do imperialismo contra Lula, ele será apoiado para aplicar a mesma política exterminadora que o presidente da Argentina vem aplicando em seu país, abençoado pelo deus mercado. Milei (assim como Zelensky e Netanyahu) é a prova de que a preparação do fascismo não é incompatível – pelo contrário, correspondente perfeitamente – com discursos e propaganda sobre liberdade econômica, já que essa liberdade em todos os países em questão, incluindo o Brasil, é a da exploração intensiva pelas potências imperialistas a caminho do regime fascista.

Ainda que, no primeiro turno, os partidos da burguesia compitam entre si – afinal, alguns setores ainda preferem um Eduardo Leite a um Tarcísio – e usem um Ciro Gomes para tirar votos da esquerda, em um segundo turno a tendência é a de que se unam para derrotar Lula, exatamente como declarou Kassab.

O presidente da República parece estar captando o sentido de toda essa trama e dá sinais de uma possível tentativa de reação. No âmbito interno, não está seguro de ceder ainda mais posições ao centrão, ao mesmo tempo em que esboça medidas econômicas “populistas” e “eleitoreiras”, conforme o linguajar da imprensa golpista. Mas é especialmente no âmbito externo que Lula busca um suporte. A sua ida ao Dia da Vitória é o gesto de maior afronta ao imperialismo em toda a história da política externa brasileira. Nem a recusa de Vargas de enviar soldados à Coreia para servirem de bucha de canhão dos EUA, nem a condecoração oferecida por Jânio Quadros a Che Guevara, nem a visita de Jango à China maoísta se compara ao corajoso e excepcional prestígio dado por Lula a Putin, o demônio pintado pelo Ocidente, responsável pelo maior enfrentamento ao imperialismo desde a II Guerra Mundial. Essa ação de Lula é imperdoável. Se Vargas caiu alguns anos depois, por obra de “forças ocultas”; se também foram “forças ocultas” que levaram à renúncia de Jânio Quadros; se essas mesmas “forças ocultas” finalmente se revelaram ao deporem Jango; por que duvidaríamos que o imperialismo quer derrubar Lula?

A reação da imprensa burguesa – a mesma que elogia Milei e vem minando o governo, a mesma que derrubou todos os presidentes acima citados – à “infâmia” (nas palavras do Estadão) de Lula fala por si. Essa imprensa, e as camadas políticas e econômicas da burguesia que ela representa, está formando uma frente única com a extrema-direita – incluindo a bolsonarista – na sua ofensiva contra o governo Lula. O aprofundamento da crise do sistema econômico mundial e da polarização política tem levado setores cada vez maiores da burguesia a apoiar uma solução drástica para as crises internas de seus respectivos países. No caso do Brasil, isso passa pela derrubada do governo do PT e a ascensão de um governo violento e vassalo do capital imperialista.

No entanto, à medida que a resposta da burguesia internacional à crise econômica neoliberal é a industrialização – ainda que pela via armamentista –, essa própria política industrial, paradoxalmente, favorecerá a reorganização dos trabalhadores e a ascensão das lutas operárias nos países ricos. A tímida política industrial de Lula já sinaliza essa tendência também no Brasil, ainda que limitada. Os representantes da burguesia e do imperialismo no Brasil, no entanto, já trabalham para “desacelerar a economia”, pois há mais emprego que nos últimos anos e, comparado com o período golpista, a vida dos trabalhadores está melhor. O remédio para esse mal, do ponto de vista da burguesia (que comprova que ela é um impeditivo para o desenvolvimento das forças produtivas), é uma devastação como a que promove Milei.

Diante desse cenário, Lula e o PT, completamente abandonados pela burguesia, terão de se apoiar na classe operária e nas massas populares para sobreviver ao golpe. As eleições de 2026 não se parecerão em nada com as de 2022. Se, em todas as eleições anteriores, quando a burguesia viu que Lula poderia vencer, aproximou-se dele e, precisando de seu apoio, Lula e o PT ofereceram concessões a ela, sem a burguesia para se apoiar Lula terá de oferecer concessões aos trabalhadores a fim de garantir o seu apoio. O nível das concessões oferecidas por Lula dependerá da autoridade que as organizações populares terão aos olhos de Lula e dos dirigentes do PT. Autoridade essa que só pode existir pelo apoio organizado das bases trabalhadoras. Daí a necessidade urgente de reorganizar o movimento operário, relativamente facilitada pelas medidas econômicas parciais do atual governo.

Para os trabalhadores, Lula é novamente um instrumento de luta. Considerando tais condições expostas acima, a candidatura Lula serve aos interesses da classe operária, à medida que deverá ser, necessariamente, uma base de luta contra a burguesia e o imperialismo. Desse modo, será um erro imperdoável se as direções dos trabalhadores trocarem essa reorganização voltada para a luta por uma aliança eleitoral com o centrão supostamente antibolsonarista (STF incluso), porque essa aliança já mostrou que não é verdadeira, e agora os trabalhadores estão em uma posição mais vantajosa, objetiva e subjetivamente, dada a experiência acumulada nos últimos anos, apesar de erros que persistem. A burguesia, como sempre, vai tentar capturar esse movimento para impedir que ele se desenvolva de maneira independente, e as organizações operárias e populares não podem, de modo algum, cair mais uma vez nesse canto de sereia.

Essa mobilização deve começar desde já, porque a crise política do país se aprofunda em ritmo acelerado. Nos próximos meses a burguesia estará atenta se a tendência de mobilização popular em torno da candidatura Lula poderá ameaçar levar à sua reeleição, ante a deterioração das condições de vida dos trabalhadores (com a decomposição do regime e as reações no sentido de desacelerar a economia, isto é, atacar os direitos e a qualidade de vida do povo) e o choque crescente do PT com o imperialismo. Se essa tendência se comprovar, a burguesia poderá tentar uma outra saída, desesperada. Se o golpe eleitoral for muito arriscado e tiver poucas chances de êxito, a alternativa será um golpe preventivo.

De fato, escândalos artificiais como os do INSS não servem apenas para minar as possibilidades de Lula se reeleger, mas também para medir a probabilidade do avanço de tais crises em direção a um impeachment. Por último, dada essa hipotética situação, de grande probabilidade de vitória de Lula, não se pode descartar a repetição de uma tática utilizada (ainda que sem sucesso) pelo imperialismo nas eleições passadas nos EUA: a tentativa de assassinato.

As organizações dos trabalhadores devem cerrar fileiras em uma frente única sob sua própria direção, a única maneira de enfrentar de forma contundente, efetiva e vitoriosa a guerra que a burguesia e o imperialismo estão abrindo contra as massas populares. Esse movimento deve ser integralmente independente da burguesia para aproveitar a necessidade que Lula terá de fazer alianças com as massas e arrancar o máximo de concessões, coisa que o movimento popular não fez em 2002, 2006 nem em 2022.

Ao exigir o rompimento do PT com seus “aliados” sabotadores, as massas trabalhadoras e suas organizações devem apresentar um programa mínimo de forma clara, começando pela reversão de todas as medidas tomadas no período golpista, passando pela reestatização de todas as empresas privatizadas pelo choque neoliberal dos anos 1990 e terminando com medidas novas, que não apenas compensem os danos causados, mas avancem na construção de um verdadeiro governo dos trabalhadores da cidade e do campo, daqueles que produzem todas as riquezas do nosso país e que anseiam por usufruir dessas riquezas que lhes são roubadas todos os dias.

 

Fonte: Correio da Cidadania

 

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