Michel
Goulart da Silva: A crise das esquerdas no Brasil
Os
últimos anos mostraram um recuo da influência política das esquerdas, ainda que
tenha conseguido voltar à presidência por meio de uma candidatura encabeçada
pelo Partidos do Trabalhadores (PT). Percebe-se uma crise na esquerda, tanto do
ponto de vista eleitoral como de uma perspectiva estratégica e organizativa.
Em
certa medida parece que a experiência desses partidos em governos e
prefeituras, bem como na presidência do Brasil, além de sua atuação
parlamentar, que passa inclusive pela aliança com partidos de direita, fez com
que uma parcela de seu antigo eleitorado tenha migrado para alternativas
políticas, inclusive para partidos de direita. Por outro lado, não se observa
há anos grandes lutas envolvendo os trabalhadores e, aquelas que ocorreram,
tiveram como escopo questões mais imediatas, como reivindicações salariais ou
de direitos sob ataque de governos e do parlamento.
Esse
cenário de crise não é uma novidade na esquerda. Na segunda metade da década de
1930, Leon Trotsky escreveu importantes reflexões dentro do contexto das
chamadas frentes populares, em que os partidos representantes dos trabalhadores
assumiam governos em aliança com a burguesia. Esses governos visavam pôr fim à
instabilidade política provocada por crises econômicas e sociais.
Na
conjuntura em que foram criadas, as frentes populares eram formações políticas
cuja principal tarefa passava por se constituir enquanto blocos institucionais
para tentar barrar o avanço do fascismo. Contudo, essas formações políticas
também assumiram o papel de desviar mobilizações dos trabalhadores em curso no
período, direcionando essas lutas para a defesa da estabilidade do Estado, como
se deu em meio à Revolução Espanhola e à onda de greves na França, em 1936.
Nas
décadas seguintes essa tática se tornou comum entre as organizações de esquerda
em diversos países. No Brasil, a adaptação da política de frente popular foi
utilizada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), costurando alianças com
setores do trabalhismo ou outros segmentos da burguesia “progressista”. O golpe
de 1964 se deu num contexto de apoio do PCB ao governo João Goulart, no qual o
central da política do partido passava pelo apoio ao governo como questão
estratégica e não apenas como tática diante de ameaças do imperialismo.
Essa
política de colaboração entre esquerda e setores da direita também viria a ser
largamente utilizada pelo PT. Se o PT, em determinado momento de sua história,
chegou a falar em construir o socialismo, ainda que fosse algo distante e
dependesse de um impreciso “acúmulo de forças”, sua chegado ao governo deixou
explícito que o partido pretendia ser um gestor do capitalismo. Diante dessa
estratégia, não haveria a necessidade de superação das instituições burguesas
ou da ordem capitalista; bastariam ações do governo no sentido de ampliar
direitos para o “povo”.
O PT e
outras agremiações que se reivindicam de esquerda estão bastante adaptados à
institucionalidade e, por isso, buscam as alianças com a direita como
estratégia de longo prazo e não apenas como uma tática momentânea. Com isso,
deixou-se lado até mesmo o projeto democrático popular, que apontava para
reformas na sociedade capitalista que poderiam colocar em choque setores da
burguesia ou mesmo do imperialismo. Essa defesa de reformas foi substituída
pela perspectiva de que as ações dos governos não devem colidir com os
interesses da burguesia.
Mesmo
em cenários no qual esteve colocada a possibilidade de uma ruptura
protagonizada pelos trabalhadores, opta-se pela defesa da institucionalidade
burguesa. Um exemplo recente se deu no governo Bolsonaro, em que a defesa da
derrubada do governo pela ação dos trabalhadores organizados foi desviada para
a estratégia de eleição do terceiro mandato de Lula, em 2022.
No
âmbito da esquerda, as alternativas políticas que hoje se colocam como novas
são a reedição caricata de teorizações do passado, como a das frentes
populares. Com o abandono do programa de reformas pelo PT, essas ações passaram
a ser defendidas por outras agremiações, como é o caso do PSOL.
O PSOL, ainda que aponte para a necessidade da mobilização e do socialismo, tem
voltado suas ações para o fortalecimento das ações parlamentares e o apoio ao
governo federal do PT. De um ponto de vista estratégico, o PSOL aderiu à lógica
do “acúmulo de forças”, em que conquistas dentro do capitalismo não são vistas
como uma ferramenta para o avanço na consciência da classe no sentido da
revolução, mas como conquistas que, ao se acumularem, podem levar ao
socialismo.
O
processo de crise que vem passando o PT, bem como a maior parte da esquerda em
outros países, mostra, de um lado, a degeneração do capitalismo e, do outro, o
quanto é ilusório ainda apostar em políticas de colaboração de classe, como é o
caso das frentes populares.
Como
bússola, ainda parece cabível pensar que a esquerda deve tomar o que há de
melhor na teoria e da prática desenvolvidas ao longo do século 20, se articular
com as lutas concretas que se travam em todo o mundo e construir um caminho que
possa levar a uma efetiva transformação da realidade. Assim, aumenta-se a
possibilidade de um salto de qualidade na organização dos trabalhadores e na
construção de uma perspectiva estratégica que se coloque para além da
institucionalidade burguesa.
¨
Lula (e a esquerda) na encruzilhada. Por Eduardo Vasco
A
situação internacional tem passado por uma drástica mudança qualitativa, em
particular a partir da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. O regime
neoliberal – transição da democracia parlamentar para o fascismo puro e simples
– se esgotou. O capitalismo não consegue mais nenhuma via de escape que lhe
permita o mínimo desenvolvimento real. A alternativa da burguesia imperialista,
portanto, é o protecionismo, a industrialização pelo rearmamento e, finalmente,
a guerra mundial. Essa política só pode ser implementada de maneira rigorosa e
sistemática pela via fascista. Não se trata de uma escolha, mas sim do
resultado natural do desmoronamento do sistema capitalista. Nos EUA e em
importantes países europeus (Itália, Holanda, Áustria, Hungria etc.), a
extrema-direita já chegou ao governo, e em outros (França, Alemanha, Portugal)
é apenas questão de tempo.
É claro
que esse cenário afeta o Brasil. A burguesia imperialista precisa intensificar
a exploração das semicolônias e, para isso, necessita estabelecer um rígido
controle político sobre elas. Como escrevi em fevereiro, o ajuste fiscal do
final do ano foi a gota d’água para toda a burguesia brasileira e
internacional. Aqueles setores que acreditavam em um pleno controle sobre o
governo Lula se juntaram aos que sabiam que isso não era possível desde o
primeiro momento. Forma-se uma frente única das variadas camadas da burguesia
por uma mudança de regime no Brasil, pela derrubada de Lula e do PT.
A
burguesia tem muitas armas para controlar um governo, mesmo que ele não seja o
seu governo. Ainda na campanha eleitoral, a imposição de alianças com setores
supostamente democráticos, o que leva necessariamente à incorporação desses
setores às estruturas do governo eleito. A integração de um setor da esquerda
fabricado pelas entidades imperialistas, que servem mais a estas do que às
bases populares. Já empossado, a dependência do Congresso Nacional, para o qual
é necessário entregar boa parte do funcionamento do governo, a fim de evitar
que ele pare de funcionar. A ala da burguesia que é representada pela oposição
contundente da extrema-direita. Logicamente também os instrumentos econômicos
tradicionais, como a dívida pública, os juros, o Banco Central “autônomo” (do
governo, não dos banqueiros) e os próprios alicerces da economia capitalista.
Neste
terceiro governo Lula, houve uma inovação. Logo em seus primeiros dias, um
setor da burguesia usou o outro no 8 de janeiro para prender uma bola de ferro
no tornozelo do governo, obrigando-o a carregá-la pelo restante do mandato,
minando as suas possibilidades de aplicação de uma política independente. No
final das contas, enfraquecendo-o e fortalecendo-se (em todos os seus aspectos,
legislativo, judicial, policial). A armadilha foi tão bem montada que não só
Lula e o PT caíram nela, mas toda a esquerda nacional.
Nada
disso foi suficiente para corrigir os rumos do governo, na visão da burguesia.
A ofensiva que vinha sendo gestada ganhou impulso após a frustração do
pacotinho de gastos. Isso coincidiu com o início do segundo e derradeiro
período da atual administração, aquele quando as forças políticas se preparam
com maior vigor para as próximas eleições. Não devemos nos enganar por nenhum
instante: o escândalo do INSS não é sobre corrupção ou piedade para com os
velhinhos. É mais uma alavanca para fortalecer a iniciativa golpista da
burguesia. Novamente, começam a aparecer pesquisas de opinião, nas quais a
popularidade de Lula está em queda livre. Através da propaganda da oposição,
essas pesquisas afetam as bases eleitorais; pela repercussão na imprensa,
afetam sobretudo o resíduo da elite política e econômica minimamente
identificado com o governo até o momento, e que agora desembarcam gradualmente
e numa velocidade crescente, com medo de serem excluídas do futuro clube de
vencedores.
Tamanha
desagregação do governo, representada pela saída do PDT e pela sabotagem e
iminente debandada de União, Republicanos, PP e mesmo PSD e MDB, é facilitada
pela probabilidade crescente de inviabilidade de uma candidatura bolsonarista
competitiva. Se afastada a possibilidade de vitória da extrema-direita mais
radical, aqueles que tiveram de apoiar Lula pontualmente em 2022 se livrarão
desse fardo em 2026. Mas não se iludam: a própria Simone Tebet (MDB), ministra
de Lula, revelou que será preciso um verdadeiro ajuste fiscal (não o que Lula
fez) em 2027.
Os
elogios de Tarcísio de Freitas, no Banco Safra, a Javier Milei, são
sintomáticos: não importa o candidato da burguesia e do imperialismo contra
Lula, ele será apoiado para aplicar a mesma política exterminadora que o
presidente da Argentina vem aplicando em seu país, abençoado pelo deus mercado.
Milei (assim como Zelensky e Netanyahu) é a prova de que a preparação do
fascismo não é incompatível – pelo contrário, correspondente perfeitamente –
com discursos e propaganda sobre liberdade econômica, já que essa liberdade em
todos os países em questão, incluindo o Brasil, é a da exploração intensiva
pelas potências imperialistas a caminho do regime fascista.
Ainda
que, no primeiro turno, os partidos da burguesia compitam entre si – afinal,
alguns setores ainda preferem um Eduardo Leite a um Tarcísio – e usem um Ciro
Gomes para tirar votos da esquerda, em um segundo turno a tendência é a de que
se unam para derrotar Lula, exatamente como declarou Kassab.
O
presidente da República parece estar captando o sentido de toda essa trama e dá
sinais de uma possível tentativa de reação. No âmbito interno, não está seguro
de ceder ainda mais posições ao centrão, ao mesmo tempo em que esboça medidas
econômicas “populistas” e “eleitoreiras”, conforme o linguajar da imprensa
golpista. Mas é especialmente no âmbito externo que Lula busca um suporte. A
sua ida ao Dia da Vitória é o gesto de maior afronta ao imperialismo em toda a
história da política externa brasileira. Nem a recusa de Vargas de enviar
soldados à Coreia para servirem de bucha de canhão dos EUA, nem a condecoração
oferecida por Jânio Quadros a Che Guevara, nem a visita de Jango à China
maoísta se compara ao corajoso e excepcional prestígio dado por Lula a Putin, o
demônio pintado pelo Ocidente, responsável pelo maior enfrentamento ao
imperialismo desde a II Guerra Mundial. Essa ação de Lula é imperdoável. Se
Vargas caiu alguns anos depois, por obra de “forças ocultas”; se também foram
“forças ocultas” que levaram à renúncia de Jânio Quadros; se essas mesmas
“forças ocultas” finalmente se revelaram ao deporem Jango; por que duvidaríamos
que o imperialismo quer derrubar Lula?
A
reação da imprensa burguesa – a mesma que elogia Milei e vem minando o governo,
a mesma que derrubou todos os presidentes acima citados – à “infâmia” (nas
palavras do Estadão) de Lula fala por si. Essa imprensa, e as camadas políticas
e econômicas da burguesia que ela representa, está formando uma frente única
com a extrema-direita – incluindo a bolsonarista – na sua ofensiva contra o
governo Lula. O aprofundamento da crise do sistema econômico mundial e da
polarização política tem levado setores cada vez maiores da burguesia a apoiar
uma solução drástica para as crises internas de seus respectivos países. No
caso do Brasil, isso passa pela derrubada do governo do PT e a ascensão de um
governo violento e vassalo do capital imperialista.
No
entanto, à medida que a resposta da burguesia internacional à crise econômica
neoliberal é a industrialização – ainda que pela via armamentista –, essa
própria política industrial, paradoxalmente, favorecerá a reorganização dos
trabalhadores e a ascensão das lutas operárias nos países ricos. A tímida
política industrial de Lula já sinaliza essa tendência também no Brasil, ainda
que limitada. Os representantes da burguesia e do imperialismo no Brasil, no
entanto, já trabalham para “desacelerar a economia”, pois há mais emprego que
nos últimos anos e, comparado com o período golpista, a vida dos trabalhadores
está melhor. O remédio para esse mal, do ponto de vista da burguesia (que
comprova que ela é um impeditivo para o desenvolvimento das forças produtivas),
é uma devastação como a que promove Milei.
Diante
desse cenário, Lula e o PT, completamente abandonados pela burguesia, terão de
se apoiar na classe operária e nas massas populares para sobreviver ao golpe.
As eleições de 2026 não se parecerão em nada com as de 2022. Se, em todas as
eleições anteriores, quando a burguesia viu que Lula poderia vencer,
aproximou-se dele e, precisando de seu apoio, Lula e o PT ofereceram concessões
a ela, sem a burguesia para se apoiar Lula terá de oferecer concessões aos
trabalhadores a fim de garantir o seu apoio. O nível das concessões oferecidas
por Lula dependerá da autoridade que as organizações populares terão aos olhos
de Lula e dos dirigentes do PT. Autoridade essa que só pode existir pelo apoio
organizado das bases trabalhadoras. Daí a necessidade urgente de reorganizar o
movimento operário, relativamente facilitada pelas medidas econômicas parciais
do atual governo.
Para os
trabalhadores, Lula é novamente um instrumento de luta. Considerando tais
condições expostas acima, a candidatura Lula serve aos interesses da classe
operária, à medida que deverá ser, necessariamente, uma base de luta contra a
burguesia e o imperialismo. Desse modo, será um erro imperdoável se as direções
dos trabalhadores trocarem essa reorganização voltada para a luta por uma
aliança eleitoral com o centrão supostamente antibolsonarista (STF incluso),
porque essa aliança já mostrou que não é verdadeira, e agora os trabalhadores
estão em uma posição mais vantajosa, objetiva e subjetivamente, dada a
experiência acumulada nos últimos anos, apesar de erros que persistem. A
burguesia, como sempre, vai tentar capturar esse movimento para impedir que ele
se desenvolva de maneira independente, e as organizações operárias e populares
não podem, de modo algum, cair mais uma vez nesse canto de sereia.
Essa
mobilização deve começar desde já, porque a crise política do país se aprofunda
em ritmo acelerado. Nos próximos meses a burguesia estará atenta se a tendência
de mobilização popular em torno da candidatura Lula poderá ameaçar levar à sua
reeleição, ante a deterioração das condições de vida dos trabalhadores (com a
decomposição do regime e as reações no sentido de desacelerar a economia, isto
é, atacar os direitos e a qualidade de vida do povo) e o choque crescente do PT
com o imperialismo. Se essa tendência se comprovar, a burguesia poderá tentar
uma outra saída, desesperada. Se o golpe eleitoral for muito arriscado e tiver
poucas chances de êxito, a alternativa será um golpe preventivo.
De
fato, escândalos artificiais como os do INSS não servem apenas para minar as
possibilidades de Lula se reeleger, mas também para medir a probabilidade do
avanço de tais crises em direção a um impeachment. Por último, dada essa
hipotética situação, de grande probabilidade de vitória de Lula, não se pode
descartar a repetição de uma tática utilizada (ainda que sem sucesso) pelo
imperialismo nas eleições passadas nos EUA: a tentativa de assassinato.
As
organizações dos trabalhadores devem cerrar fileiras em uma frente única sob
sua própria direção, a única maneira de enfrentar de forma contundente, efetiva
e vitoriosa a guerra que a burguesia e o imperialismo estão abrindo contra as
massas populares. Esse movimento deve ser integralmente independente da
burguesia para aproveitar a necessidade que Lula terá de fazer alianças com as
massas e arrancar o máximo de concessões, coisa que o movimento popular não fez
em 2002, 2006 nem em 2022.
Ao
exigir o rompimento do PT com seus “aliados” sabotadores, as massas
trabalhadoras e suas organizações devem apresentar um programa mínimo de forma
clara, começando pela reversão de todas as medidas tomadas no período golpista,
passando pela reestatização de todas as empresas privatizadas pelo choque
neoliberal dos anos 1990 e terminando com medidas novas, que não apenas
compensem os danos causados, mas avancem na construção de um verdadeiro governo
dos trabalhadores da cidade e do campo, daqueles que produzem todas as riquezas
do nosso país e que anseiam por usufruir dessas riquezas que lhes são roubadas
todos os dias.
Fonte:
Correio da Cidadania

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