Gabriel
Freitas: Marxismo e teoria da evolução
Em
um artigo publicado no site A Terra
é Redonda, argumentei que a tradição marxista tende a uma negligência
sistemática ou a um tratamento superficial da língua e, dessa forma, apresentei
as bases de um realismo materialista-semiótico. Introduzi conceitos como
linguística ontológica, construção de nicho semiótico e a semiose como força
produtiva constitutiva da realidade social humana, destacando a coevolução
entre língua e cérebro.
Neste
novo artigo, apresento mais elementos para sustentar minha proposta, explorando
com mais detalhes as contribuições da Teoria da evolução para a consolidação de
um realismo material-semiótico que possa contribuir para a atualização do
marxismo contemporâneo. Mais especificamente, pretendo demonstrar como a
síntese estendida da evolução, em contraste com o neodarwinismo tradicional,
oferece um quadro teórico profundamente alinhado com o materialismo
histórico-dialético e com as intuições fundamentais de Karl Marx sobre a
relação entre os seres humanos e suas circunstâncias históricas.
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Síntese estendida da evolução: superando o neodarwinismo
A
síntese estendida da evolução representa o quadro teórico contemporâneo que
busca expandir e superar a síntese moderna (também conhecida como
neodarwinismo), incorporando avanços recentes no campo da biologia evolutiva
que não são adequadamente contemplados no paradigma neodarwinista. O quadro
teórico da síntese estendida, formalizado principalmente a partir dos anos
2000, tem como principais proponentes, entre outros, pesquisadores como Massimo
Pigliucci, Eva Jablonka e Kevin Lala, mas suas raízes podem ser encontradas
décadas antes, no trabalho pioneiro de biólogos marxistas como Richard Lewontin
e Richard Levins.
A
síntese moderna, consolidada entre as décadas de 1930 e 1950, representou a
integração da teoria darwinista da seleção natural com a genética mendeliana e
a genética populacional. Esta síntese estabeleceu um paradigma centrado em
alguns princípios fundamentais: a evolução ocorre principalmente por meio de
pequenas mudanças genéticas (mutações) e recombinação; a seleção natural é o
principal mecanismo direcional da evolução; os genes são a única unidade de
herança; o ambiente é uma força seletiva externa e independente dos organismos;
e o desenvolvimento é um processo secundário na evolução.
Definido
dessa maneira, o paradigma neodarwinista apresenta uma série de limitações
significativas. Ele tende a um determinismo genético, a uma visão
adaptacionista excessiva (criticada por Gould – também um biólogo marxista – e
Lewontin, em um famoso artigo intitulado “The Spandrels of San Marco“),
e a uma concepção unidirecional da relação organismo-ambiente.
A
síntese estendida, por sua vez, incorpora novos processos e mecanismos
evolutivos. Seus principais componentes incluem:
(i)
Construção de nicho: Os organismos não são meros objetos passivos da seleção
natural; são, na verdade, agentes ativos que modificam seus ambientes e,
consequentemente, as pressões seletivas que atuam sobre si mesmos e sobre
outras espécies.
(ii)
Múltiplos sistemas de herança: A síntese estendida reconhece múltiplos sistemas
de herança além do genético, incluindo herança epigenética (modificações
químicas do DNA e proteínas associadas), herança comportamental (transmissão de
comportamentos por meio da aprendizagem social), herança ecológica
(modificações ambientais construídas por antepassados e herdadas pela geração
atual) e herança simbólica (sistemas de comunicação e significado).
(iii)
Plasticidade fenotípica: A capacidade dos organismos de modificar seu fenótipo
em resposta a condições ambientais, sem alterações genéticas. A plasticidade
não é apenas uma “resposta” passiva, podendo ser adaptativa e direcionar a
evolução.
(iv)
Viés de desenvolvimento: As restrições e possibilidades impostas pelos sistemas
de desenvolvimento influenciam as trajetórias evolutivas, canalizando a
variação em certas direções e limitando-a em outras.
(v)
Causalidade recíproca: em contraste com a visão unidirecional da síntese
moderna, a síntese estendida enfatiza a causalidade recíproca entre genes,
organismos e ambientes – em outras palavras, uma perspectiva dialética.
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Lewontin e Levins – os biólogos dialéticos
É
notável como muitos dos conceitos centrais da síntese estendida foram
antecipados pelo trabalho de Richard Lewontin e Richard Levins, biólogos
explicitamente marxistas que aplicaram o materialismo dialético à biologia
evolutiva. Em obras como The Dialectical Biologist (O
Biólogo Dialético, de 1985) e artigos como “The Organism as the Subject
and Object of Evolution” (O Organismo como Sujeito e Objeto da Evolução, de
1983), Richard Lewontin já criticava o adaptacionismo excessivo, o determinismo
genético e a visão passiva do organismo em relação ao ambiente.
Richard
Lewontin argumenta que os organismos, em vez de se adaptarem a ambientes
preexistentes, constroem ativamente seus nichos ecológicos, alterando as
pressões seletivas que atuam sobre si mesmos. Esta visão dialética da relação
organismo-ambiente é agora central para a síntese estendida, mas foi
inicialmente desenvolvida a partir de uma perspectiva marxista.
Da
mesma forma, a crítica de Gould e Lewontin ao “programa adaptacionista”
antecipou muitas das críticas que a síntese estendida faz ao neodarwinismo.
Eles argumentavam contra a tendência de ver todas as características dos
organismos como adaptações otimizadas pela seleção natural, destacando a
importância de restrições históricas e de desenvolvimento.
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A causalidade dialética na biologia evolutiva
Richard
Levins e Richard Lewontin, juntos, demonstraram a interpenetração dialética
entre gene, organismo e ambiente. Eles criticaram a metáfora do “gene egoísta”
e a ideia de que a evolução é meramente uma questão de otimização adaptativa a
um ambiente fixo. Para eles, a evolução é um processo histórico complexo,
contingente e multifatorial, em que as totalidades (como o organismo ou o
ecossistema) têm propriedades emergentes que não podem ser reduzidas à soma de
suas partes.
A
causalidade recíproca ou dialética é central nessa abordagem. Não se trata de
uma simples interação na qual A causa B e B causa A de forma linear. Trata-se
de um processo em que A e B se coproduzem e se transformam mutuamente ao longo
do tempo, de modo que nem A nem B permanecem os mesmos. O organismo é produto
de seus genes e de seu ambiente, mas também é produtor de seu ambiente e,
indiretamente, influencia a seleção de seus próprios genes e dos genes de seus
descendentes. Esta visão reflete a dialética materialista de Marx, que via os
seres humanos como produtos de suas circunstâncias históricas e sociais, mas
também como agentes capazes de transformar essas circunstâncias através de sua
práxis.
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Herança ecossemiótica e a sombra do passado
A
compreensão da construção de nicho e da causalidade dialética nos leva a um
conceito central para a proposta do realismo materialista-semiótico: a herança
ecossemiótica. Se os organismos, incluindo os humanos, constroem ativamente
seus nichos, e se esses nichos modificados persistem no tempo, então as
gerações subsequentes não nascem em um vácuo, mas herdam um ambiente já
profundamente moldado pelas atividades de seus predecessores. Essa herança não
é apenas genética; ela é também, e fundamentalmente para os humanos, uma
herança ecológica e, inseparavelmente, semiótica.
Explicado
de forma mais detalhada, a síntese estendida enfatiza que os organismos não são
meros “objetos” da seleção natural; eles são também agentes ativos que
modificam seus ambientes através de seu metabolismo, suas atividades e suas
escolhas. Ao fazerem isso, eles alteram as próprias pressões seletivas que
atuam sobre si mesmos, sobre seus descendentes e sobre outras espécies com as
quais coabitam. Esse processo é a construção de nicho.
Exemplos
clássicos na biologia incluem a construção de represas por castores, que
transformam radicalmente ecossistemas fluviais, ou a produção de solo pelas
minhocas, que alteram a estrutura e a composição química da terra. Esses
organismos, ao modificarem seus ambientes, criam novas oportunidades e novos
desafios ecológicos. Nesse sentido, um aspecto crucial da teoria da construção
de nicho é o conceito de herança ecológica: as modificações ambientais
persistentes criadas pelos organismos são legadas às gerações subsequentes como
uma forma de herança, tão importante quanto a herança genética. Essa herança
ecológica pode influenciar drasticamente as trajetórias evolutivas.
No caso
humano, pensemos em campos agriculturáveis, cidades e estradas, – todos são
componentes de uma herança ecológica que afeta profundamente as condições de
vida e as possibilidades de desenvolvimento das gerações futuras. No entanto,
para a espécie humana, essa herança ecológica está intrinsecamente entrelaçada
com uma herança semiótica.
Os
sistemas linguísticos, os corpos de conhecimento, as tradições orais e
escritas, os mitos, as leis, as normas sociais, os rituais, os sistemas de
valores, as tecnologias da informação e comunicação – tudo isso constitui um
vasto e complexo aparato semiótico que é transmitido, aprendido, internalizado
e modificado ao longo das gerações. Essa herança semiótica não é um mero adorno
cultural; ela é o meio pelo qual a herança ecológica é interpretada, utilizada,
mantida e transformada. É por meio da língua e de outros sistemas semióticos
que aprendemos a usar as ferramentas legadas, a navegar pelos ambientes
construídos, a participar das instituições sociais e a dar sentido ao mundo que
herdamos.
Assim,
falamos de uma herança ecossemiótica para enfatizar a indissociabilidade desses
dois componentes. Os nichos que nós, humanos, herdamos são sempre nichos
semiótico-materiais. As estruturas físicas de uma cidade (herança ecológica)
são inseparáveis dos sistemas de signos (nomes de ruas, mapas, leis de
zoneamento, discursos sobre a vida urbana – herança semiótica) que as organizam
e as tornam habitáveis e significativas.
É dessa
maneira que a famosa passagem de Marx em O Dezoito de Brumário de Luís
Bonaparte passa a possuir uma nova camada de significado quando lida
através da lente da herança ecossemiótica: “Os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua
escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como
um pesadelo o cérebro dos vivos”.
As
“circunstâncias com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo
passado” podem ser entendidas, em grande medida, como o nicho ecossemiótico
herdado. Este nicho não é uma tela em branco sobre a qual os indivíduos podem
inscrever livremente seus projetos. Ele é um campo de possibilidades e
constrangimentos, um conjunto de recursos e limitações, de caminhos abertos e
de obstáculos sedimentados pela história das gerações anteriores.
A
“tradição de todas as gerações mortas” que “oprime como um pesadelo o cérebro
dos vivos” não se refere apenas a ideias ou crenças abstratas. Ela se
materializa nos sistemas linguísticos que estruturam nosso pensamento, nos
discursos hegemônicos que naturalizam certas relações de poder, nos rituais
sociais que reproduzem normas e hierarquias, nas instituições que cristalizam
práticas passadas e nos próprios artefatos e ambientes construídos que carregam
consigo as marcas e as lógicas de quem os produziu.
Essa
herança ecossemiótica, portanto, desempenha um papel dialético crucial na
agência humana e na transformação histórica.
Condição
de possibilidade para a ação: O nicho herdado fornece os recursos (materiais e
semióticos) sem os quais a ação humana seria impossível. Aprendemos a pensar, a
falar, a agir e a nos relacionar dentro das coordenadas desse nicho. As
ferramentas, as tecnologias, os conhecimentos e as formas de organização social
legadas pelo passado são a matéria-prima com a qual as novas gerações constroem
seu presente.
Fonte
de constrangimento e limitação: Ao mesmo tempo, o nicho herdado impõe limites.
Os discursos marginalizam vozes dissidentes. As instituições resistem à
mudança. As infraestruturas materiais perpetuam desigualdades. A “tradição”
pode, de fato, oprimir, tornando certas alternativas impensáveis ou
impraticáveis.
Objeto
de transformação (práxis): De forma crucial, e em consonância com a perspectiva
marxista, os seres humanos não são meros prisioneiros de seu nicho herdado. Por
meio da práxis – a atividade consciente, social e transformadora – podemos
modificar, subverter e, eventualmente, revolucionar os nichos ecossemióticos
que herdamos. Essa transformação, no entanto, nunca parte do zero. Ela sempre
ocorre a partir das condições legadas, utilizando e ressignificando os recursos
disponíveis, e lutando contra os constrangimentos existentes. A história, nesse
sentido, é um processo contínuo de construção, desconstrução e reconstrução de
nichos semiótico-materiais.
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Implicações para um marxismo biossociossemiótico
A
síntese estendida da evolução oferece uma base científica robusta para um
marxismo que possa dialogar com a teoria da evolução contemporânea, superando
as limitações do determinismo genético e do adaptacionismo que muitas vezes
foram usados para naturalizar desigualdades sociais e justificar o status
quo. Algumas implicações importantes incluem:
(1)
Superação do determinismo: Ao reconhecer múltiplos sistemas de herança e a
plasticidade fenotípica, a Síntese Estendida rejeita o determinismo genético
simplista, alinhando-se com a visão marxista de que os seres humanos são
produtos de suas circunstâncias sociais, mas também agentes capazes de
transformá-las.
(2)
Causalidade dialética: A ênfase na causalidade recíproca entre genes,
organismos e ambientes reflete a dialética marxista, que rejeita relações
causais unidirecionais e enfatiza a interpenetração e transformação mútua dos
fenômenos.
(3)
Agência coletiva: O conceito de construção de nicho oferece uma base evolutiva
para entender como a ação coletiva humana pode transformar as condições
materiais e semióticas de existência, criando novas possibilidades para o
desenvolvimento humano.
(4)
Historicidade: A síntese estendida enfatiza a contingência histórica e as
restrições de desenvolvimento, alinhando-se com a ênfase marxista na
especificidade histórica e na importância das condições materiais herdadas.
(5)
Crítica ao reducionismo: Ao reconhecer múltiplos níveis de organização e
causalidade na evolução, a síntese estendida rejeita o reducionismo genético,
assim como o marxismo rejeita o reducionismo econômico simplista.
Ao
incorporar a teoria da construção de nicho e, fundamentalmente, a crítica
dialética de Lewontin e Levins, o realismo materialista-semiótico busca
oferecer uma base teórica sólida para afirmar a materialidade e a agência da
língua e da semiose, não como entidades separadas da vida material, mas como
dimensões constitutivas e transformadoras dela. Isso abre caminho para uma
análise marxista mais detalhada e poderosa das formas de poder, ideologia e
hegemonia.
A
aproximação entre marxismo e teoria evolutiva, particularmente através da lente
da Síntese Estendida, nos oferece uma compreensão mais sofisticada de como os
sistemas semióticos emergem, persistem e se transformam em relação dialética
com as condições materiais de existência.
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Por um marxismo sem medos teóricos
A
síntese teórica aqui proposta busca trazer implicações para a práxis política e
para a elaboração teórica. Se os nichos semióticos são construídos e não dados,
se a herança ecossemiótica é tanto um recurso quanto um constrangimento, então
a luta por transformação social deve necessariamente incluir uma dimensão
semiótica. Além de mudar as relações de propriedade, é preciso também
transformar os sistemas de significado, as narrativas, os discursos e as
práticas simbólicas que sustentam e naturalizam as relações de poder.
Partindo
dessas compreensões, busco contribuir para um marxismo que dialogue sem medo
com a teoria da evolução, fundamentado com a síntese estendida, reconhecendo
que a luta de classes é também uma luta por significados, por narrativas, por
hegemonia discursiva. Dessa forma, a construção de alternativas ao capitalismo
envolve, além da reorganização das relações de produção, a criação de novos
nichos semióticos que possibilitem formas de vida mais justas, sustentáveis e
emancipatórias.
Em
última análise, o que proponho é uma atualização do marxismo que leve a sério
tanto a materialidade quanto a semiose, tanto a economia política quanto a
ecologia simbólica. Um marxismo que compreenda que a transformação social é
sempre, simultaneamente, uma transformação material e semiótica, e que a práxis
revolucionária envolve a tomada dos meios de produção e a reconstrução dos
nichos semióticos que habitamos.
Essa
proposta de aproximação entre marxismo e teoria evolutiva não visa diluir a
especificidade do marxismo em um ecletismo teórico, mas sim enriquecê-lo com
contribuições científicas recentes que possam fortalecer sua capacidade
analítica.
Ao
reconhecer a centralidade da construção de nicho semiótico e da herança
ecossemiótica, podemos desenvolver um marxismo mais atento à complexidade da
vida sociossemiótica e mais capaz de orientar a práxis transformadora em um
mundo onde a semiose e a materialidade estão umbilicalmente entrelaçadas.
Fonte:
A Terra é Redonda

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