sábado, 28 de junho de 2025

Antonio A. R. Ioris: Bioeconomia em uma Amazônia sem bio

Como diz o ditado, ninguém morre de tédio no Brasil. Pelo contrário, novos problemas surgem, sem que os velhos desafios tenham sido enfrentados. Entre as últimas urgências, vemos que a degradação ambiental se tornou crônica e incontrolável, a população tem um entendimento precário do que fazem e de quanto ganham os políticos, e a economia é cada vez mais dependente de atividades primárias (agricultura e mineração) e primitivas (garimpo, apostas virtuais e investimento especulativo).

Relacionado a tudo isso, juros altos, privilégios crescentes e tecnologias antigas deixam o futuro cada vez mais distante e o presente menos convincente.

Esses são temas fundamentais e serão tratados no seminário internacional “Questões Sócio-Ecológicas e Alternativas Bioeconômicas: Novas Perspectivas para o Desenvolvimento da Amazônia e Fronteiras da Justiça Ambiental”, que acontecerá de 6 a 11 de julho no campus de Sinop da Universidade Federal de Mato Grosso, com apoio do IFMT e organizado conjuntamente com a Universidade de Cardiff, no Reino Unido. O evento, que reunirá pesquisadores provenientes de diversas universidades brasileiras e britânicas, é parte da iniciativa Amazônia+10, a qual tem como meta apoiar a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico sobre a floresta tropical, as interações natureza-sociedade e o desenvolvimento sustentável e inclusivo da região Amazônica.

A importância de tais debates é ainda maior agora, uma vez que estamos chegando mais perto da COP30 em Belém, o encontro anual para tratar da emergência ambiental e da devastação causada pelas mudanças artificiais do clima. A pouco mais de quatro meses da grande conferência, fica a pergunta: o que o Brasil poderá apresentar como resultado concreto e prova de sua pretendida liderança internacional através do exemplo e não da força?

A agenda de bioeconomia poderia ser mencionada como prioridade das políticas públicas do atual governo. Foi inclusive criada uma secretaria na estrutura do Ministério do Meio Ambiente (pelo Decreto Presidencial 12.254 de novembro de 2024), dedicada especialmente a promover tecnologias e processos produtivos que sejam coerentes com a preservação dos ecossistemas e levando em conta as muitas necessidades dos moradores locais.

A bioeconomia é geralmente relacionada à produção de biocombustíveis, ao uso de biomassa de origem vegetal ou animal, à e exploração de produtos da biodiversidade, que incluem uma variedade de itens derivados da natureza, tanto diretamente, quanto por meio de processos biotecnológicos. Como se vê, são muitos conceitos derivadas do antigo sufixo grego ‘ βίος’ que foi incorporado ao português através da expressão latina pós-clássica ‘bio’. Contudo, muitas dúvidas persistem e serão exploradas durante o nosso evento no Mato Grosso.

Em vista disso, a contribuição da bioeconomia não pode estar restrita a aspectos tecnológicos e comerciais, mas precisa também considerar as severas responsabilidades pela devastação ambiental e pela falta de aplicação da legislação existente. Em outras palavras, é muito pouco insistir em novas técnicas bioeconômicas sem se levar em conta que a Amazônia passa por um período de ruína, marcado pela extinção em massa de plantas e animais, genocídio indígena, perseguição dos mais pobres e ‘menos brancos’, mineração ilegal, ou mesmo legal, e exploração bastante questionável de petróleo.

Arruinamento é hoje a marca da Amazônia e qualquer argumento em favor da bioeconomia ou de um desenvolvimento presumidamente sustentável não pode simplesmente sobrepor aspectos gerencias a tendências destruidoras e que basicamente enriquecem as elites regionais e seus aliados políticos. Não é possível aceitar uma bioeconomia em que o ‘bio’ seja menor que o ‘econômico’ e distante do ‘político’, resultando assim em medidas que se demonstram, na verdade, anti-natureza, porque anti-povo e anti-vida.

Como fica o agronegócio nesse debate? Muitos produtores de comodities agrícolas e suas associações defendem que o setor utiliza práticas agronômicas avançadas com mínimo impacto ambiental, tais como o plantio direto, sucessão de culturas (ou mesmo rotação) e controle integrado de pragas. Tais procedimentos não deixam de ter algum valor agroecológico, mas o que dizer da grilagem e do desmatamento que precederam a instalação de pastagens e campos de monocultura? Por que a falácia do marco temporal que apenas serve quem há muito pouco tempo está na terra e a utiliza de forma predatória? Por que o agronegócio prefere produzir soja para exportação, sem pagar imposto, ao invés de alimentos para a população regional e nacional? Por que o código ambiental e outras legislações precisam ser constantemente emendadas para dar ainda mais liberdade para a ampliação de desertos plantados? Por que tanto pesticida e maquinário de alto custo, se o desastre climático e a destruição de ecossistemas e bacias hidrográficas seguem, na prática, ignorados?

Uma explicação óbvia é o interesse imediatista e individualista de cada fazendeiro que quer sua propriedade valorizada e sua colheita exportada em dólar. Mas existe um fator ainda mais básico e muito mais perturbador: a subordinação da produção agrícola e do desenvolvimento nacional a uma política reacionária e ao domínio do capital financeiro.

O Brasil tem deputados e senadores caríssimos, juízes com ‘notório saber se beneficiar’ e militares que lutam bravamente para garantir a pensão de viúvas e filhas com casamentos fictícios, mas o verdadeiro centro de poder é evidentemente o setor financeiro, aliado histórico do latifúndio.

Algo muito parecido acontece no Reino Unido desde 1979, com a sucessão de privatizações, demissões e falências desencadeadas pelo governo da Baronesa Thatcher. Nas suas palavras, “a economia é apenas um método, o objetivo é mudar a alma das pessoas”, que deveriam atuar de acordo com o interesse individual e buscar o máximo lucro pessoal. O resto… bem, o resto não importava.

O desastre foi imediato e continua a ser sentido, com milhões sem emprego, empresas privatizadas e arruinadas (por exemplo, água, saneamento e trens sem investimento por décadas) e vasta destruição da agricultura, indústria, hospitais e, finalmente, das universidades.

Tudo em nome de um setor financeiro que, em grande medida, controla a vida privada e a atividade econômica do Reino Unido. Nem o parlamento em Westminster, nem o governo, nem ninguém consegue impor qualquer limite à autonomia e à voracidade dos bancos. Quase toda a atividade nacional serve para concentrar mais poder e lucros exponenciais nas mãos de cada vez menos gente. Parafraseando George Orwell, todos são desiguais, mas alguns poucos são muito mais desiguais e avantajados que os 99% restantes.

O Brasil vai cegamente por esse caminho suicida, já que insiste no mesmo equívoco de conceder independência ao Banco Central (verdade seja dita, emancipação do povo, mas total dependência da agiotagem bancária) e manter uma desorganização produtiva, que concentra quase todas as cartas no uso de sol e água (bens da natureza, roubados dos povos originários) para a produção de soja, carne, milho e algodão. Insiste-se, desse modo, em um progresso duvidoso e controlado por políticos demagógicos a serviço do rentismo bancário e da exportação primária.

Em vista de tantas distorções, propugnar de forma simplista por uma transição bioeconômica é colocar esparadrapo em alguém com traumatismo craniano. Sem que se repense seriamente as razões e responsabilidades pelas ruínas da Amazônia, bioeconomia não passa de “sonho de uma noite de verão” (expressão da comédia de William Shakespeare).

A democracia brasileira e o futuro do Brasil como nação dependem, cada vez mais diretamente, de uma preservação ambiental justa e de justiça socioeconômica em um ambiente de todos. Economia sem justiça ambiental não é simplesmente a carroça na frente dos bois, mas carroça sem bois, sem rodas e sem rumo.

•        61% dos créditos de carbono vendidos da Amazônia estão em áreas também destinadas à mineração, afirma relatório

Sessenta e um por cento de todo o crédito de carbono vendido da Amazônia brasileira estão em áreas também destinadas à mineração, de acordo com levantamento feito pela InfoAmazônia. Isso representa 40,1 milhões de toneladas de carbono, de um total de 65,8 milhões de toneladas comercializadas.

O montante foi negociado por 31 projetos, todos baseados no mecanismo REDD+, criado no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC). E mais de 3,6 mil empresas – incluindo algumas mineradoras, como a Vale e a Sigma –, entidades e organizações internacionais, compraram.

A investigação utilizou a base de dados do projeto Carbono Opaco, desenvolvida em parceria entre a InfoAmazonia e o Centro Latinoamericano de Jornalismo Investigativo (CLIP), que mapeou todos os projetos REDD+ e empresas que atuam nesse segmento do mercado voluntário de carbono no Brasil, Peru e Colômbia.

No Brasil, foram identificados 114 projetos de carbono REDD+, dos quais 73 estão sobrepostos totalmente, parcialmente ou tocam o limite de áreas destinadas à mineração, de acordo com a investigação. Do total, 31 já comercializaram créditos, 30 pela Verra, maior certificadora do mundo, e um pela colombiana Cercarbono.

O Pará é o estado com mais áreas de conflito entre mineração e mercado de carbono – são 12. Na sequência, aparecem Amazonas (8) e Rondônia (6). A InfoAmazônia destaca que os projetos fazem parte do chamado mercado voluntário de carbono, sistema não regulado que permite que empresas comprem créditos, sem que isso conte para as metas oficiais dos países no âmbito dos acordos climáticos da ONU.

"Estamos diante de uma economia altamente destrutiva de um lado, que é a mineração, e de uma suposta economia verde do outro, ambas explorando o mesmo território. Uma mesma área está sendo usada como ativo financeiro para captar investimentos tanto da indústria da mineração quanto do mercado de carbono, o que é absolutamente incompatível", disse a pesquisadora Marcela Vecchione Gonçalves, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA).

<><> Projetos em atenção

Segundo a investigação, pelo menos seis projetos de carbono identificados em áreas de mineração foram suspensos após a constatação de irregularidades pela certificadora Verra. Alguns deles venderam milhões de créditos antes das áreas começarem a ser desmatadas para projetos de mineração.

O Projeto Maísa REDD+, no município de Moju, no Pará, vendeu 635 mil créditos de carbono para 317 compradores, incluindo para revendedoras e empresas mundialmente conhecidas – casos de Uber, Google, Giorgio Armani, AstraZeneca e TIM.

Desenvolvido pela Biofílica em parceria com a Maísa Agropecuária, o projeto prometia preservar mais de 28 mil hectares de floresta por pelo menos 30 anos, entre 2012 e 2052, mas foi encerrado em 2022. O local destinado passou a ser usado para mineração e fazendas, segundo o relatório.

A InfoAmazônia relata que a Uber recebeu créditos do Maísa REDD+, adquiridos por meio da consultoria ambiental Anaconda Carbon, para neutralizar 1.545 toneladas de CO2 das suas operações no México, na Colômbia, no Equador, no Panamá e na República Dominicana.

Outro projeto, o Florestal Santa Maria (FSM-REDD+), no município de Colniza (MT), tem ao menos sete autorizações para pesquisa de ouro e cobre dentro de seus limites, segundo dados da Agência Nacional de Mineração (ANM) que constam no documento. E, pelas informações disponíveis na plataforma pública da certificadora Verra, já emitiu 8 milhões de créditos, comercializados com mais de 300 compradores diretos.

Esse projeto foi desenvolvido pela Florestal Santa Maria, controlada pela Bela Aliança Agronegócios, e promete manter intactos até 2039 mais de 17,7 mil hectares de floresta nativa no chamado “arco do desmatamento”, uma das regiões mais ameaçadas da Amazônia brasileira.

Entre os compradores de crédito de carbono do FSM-REDD+ estão a empresa de aviação Boeing e a mineradora Vale, além da Moss Earth, a maior comercializadora de créditos do Brasil.

A Vale informou à InfoAmazônia que a aquisição foi feita por terceiros, “em nome” da empresa, para compensar as emissões de dois eventos que ela patrocinou, a Conferência Internacional Vale Amazônia e o estande da Vale na Feira da Indústria do Pará (FIPA).

Outro exemplo de projetos é o Ipixuna REDD+, na Terra Indígena (TI) Ipixuna, no Amazonas, que comercializou 50 mil créditos. Nessa área, existem três processos de mineração ativos na borda da terra indígena.

<><> Atividades incompatíveis

Apesar de não haver uma proibição legal para que projetos de carbono e de mineração ocupem o mesmo espaço, especialistas consideram as duas atividades ambiental e climaticamente incompatíveis.

“A mineração é absolutamente incompatível com um projeto de carbono. Você não pode prometer conservação e, ao mesmo tempo, ter autorização oficial para escavar, derrubar floresta e abrir minas no mesmo território”, declarou a defensora pública Andreia Macedo Barreto, do Pará.

Ela disse ainda que o poder econômico da mineração dificulta qualquer enfrentamento. “É um sistema muito mais estruturado, com apoio de União, estados e municípios, que recebem os royalties da mineração. Enquanto isso, o mercado de carbono ainda é nebuloso, mal fiscalizado e com muita gente fingindo que entende como ele funciona”, apontou.

Barreto acrescentou que as métricas de cálculos dos projetos de carbono pressupõem o desmatamento de uma área, que é o que valoriza o crédito por desmatamento evitado no mecanismo REDD+. “O que a gente vê hoje é um sistema que se retroalimenta da desgraça do desmatamento. Se o desmatamento acabar, acabam também os projetos de crédito de carbono”, concluiu.

A ANM afirmou à InfoAmazônia que não há norma específica que regulamente a coexistência entre projetos de carbono e concessões minerárias na mesma área. E ressaltaou que “os recursos minerais pertencem à União, independente da titularidade da terra”.

Ainda segundo a agência, toda atividade de mineração depende de licenciamento ambiental e, atualmente, não há exigência de consulta prévia sobre a existência de projetos de carbono nas áreas requeridas, nem integração formal com entidades certificadoras dos projetos de carbono.

A Verra observou que possui mecanismos para lidar com casos em que projetos de compensação climática se sobrepõem a áreas com concessões minerárias. “Antes que os créditos possam ser emitidos, os projetos passam por um processo de validação e revisão de precisão, durante o qual a Verra analisa questões como direitos sobre a terra e possíveis sobreposições com áreas de mineração”, explicou a porta-voz Anne Thiel.

Ela complementou que, se uma concessão minerária estiver ativa no momento do registro do projeto de carbono, a área em questão tende a ser excluída do escopo do projeto. Já se a mineração for autorizada após o registro ou emissão dos créditos, “o projeto provavelmente terá que excluir essa parcela e assumir, de forma conservadora, que toda a emissão realizada na área foi perdida”.

Em casos assim, a certificadora considera que há uma “reversão inevitável”, ou seja, a floresta que deveria estar protegida foi desmatada, o que pode levar até à interrupção do projeto.

Sobre os projetos citados pela reportagem da InfoAmazônia, a Verra disse que apenas o Maísa foi oficialmente encerrado, a pedido do próprio desenvolvedor. Neste caso, os créditos de reserva do projeto, chamado de buffer, foram cancelados, e a empresa responsável deverá repor os créditos.

Os demais casos seguem em análise de forma confidencial, e a certificadora informou que “não comenta sobre projetos que estão sob revisão aberta”.

Questionada sobre a possibilidade de cancelar retroativamente créditos já vendidos quando surgem evidências de violações socioambientais graves, respondeu que esse tipo de revisão é possível e está previsto em seu regulamento.

Especificamente sobre o projeto FSM-REDD+, que teve parte de sua área liberada recentemente para garimpo de ouro, salientou que espera que os responsáveis incluam o episódio no próximo relatório de monitoramento, mas que irá revisar as informações e poderá abrir uma investigação com base em seu procedimento de queixas.

A InfoAmazônia procurou todas as empresas citadas. A Uber informou que desde 2023 não utiliza mais créditos de carbono da Anaconda Carbon. E a Moss comentou que deixou de intermediar créditos do projeto FSM-REDD e que, à época das transações, realizou as devidas diligências fundiária e minerária, sem identificar impedimentos.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Um só Planeta

 

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