Natalia
Calfat: Tudo que você sabe sobre o Irã está errado
Uma das
ativistas feministas mais conhecidas do movimento antiguerra nos Estados
Unidos, Medea Benjamin faz seu début ao público brasileiro com
uma sofisticada obra sobre o Irã e sua Revolução. A tradução inédita desta
publicação feita pela Autonomia Literária aparece num cenário
editorial em que as obras sobre o país e sua política contemporânea são
escassas, razão pela qual chega ao público brasileiro com urgência
indispensável.
Se em
português o leitor se via sitiado, de um lado, por autores que condenam a
proclamada brutalidade e atraso iranianos e, de outro lado, por outros poucos
mais entusiastas da revolução enquanto revolta subalterna, no livro Por dentro do Irã: a
verdadeira história política da República Islâmica, a autora nos
oferece uma espécie de meio-termo entre o orientalismo eurocêntrico e
inferiorizante e o ocidentalismo purista.
Em
linguagem simples, mas oferecendo um conteúdo nuançado e complexo, com
habilidade e lucidez, Medea escapa do simplismo pró ou contra a Revolução
Iraniana, posição rara mesmo entre estudiosos. Ao longo da obra, o leitor
poderá ver por que o povo iraniano é culto e orgulhoso de seu passado, suas
ciências e suas artes. A não binariedade talvez seja reflexo do próprio caráter
iraniano, que convive com a dualidade persa de ter sido islamizado mas não
arabizado, que mantém a tradição zoroastra ao lado da xiita, da filosofia sufi
que convive com elementos pré-islâmicos, de ser palco da efervescência cultural
a despeito do autoritarismo, dos elementos republicanos e descentralizados
paralelos ao governo islâmico – ou do forte antiamericanismo e antissionismo ao
lado da admiração aos estadunidenses e judeus.
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Uma potência anti-imperialista histórica?
Ariqueza
histórica e cultural foi frequentemente rodeada por episódios de ingerência e
manipulações estrangeiras, russas, britânicas, francesas e estadunidenses.
Demonstrando resiliência única, o Irã foi capaz de manter a unidade territorial
e a soberania mesmo tendo sido repetidamente invadido desde o Império
Aquemênida. Ainda assim, foi justamente através das diferentes invasões
mongóis, timúridas e árabes que puderam exportar ou fazer os diferentes povos
incorporarem elementos da língua, literatura e arquitetura persas. Aliás, a Era
de Ouro deve em boa medida aos persas que traduziram filósofos, cientistas e
matemáticos gregos ao árabe. O leitor verá, ao longo da obra, como a autora se
coloca em constante diálogo com essa dualidade constitutiva da identidade
iraniana.
A era
moderna, marcada por desconfiança e disputa por soberania autônoma, registrou
sucessivas concessões econômicas de recursos naturais, industriais e de
infraestrutura aos britânicos mesmo antes da dinastia Pahlavi. Uma das
características marcantes do livro é dar notoriedade à habilidade política dos
clérigos desde muito antes da Revolução Islâmica. Como demonstra Medea, o clero
xiita era politicamente forte e ativo desde a estabilidade permitida pelo
período safávida, quando o persa era a “língua da diplomacia e da literatura” –
ou seja, desde o início da história persa moderna, período de forte
florescimento cultural e comercial e que instalou o xiismo como religião
oficial, com características marcadamente sufis.
“O Irã
atualmente oferece um eixo moral e narrativo-ideológico vanguardista do chamado
Eixo da Resistência, composto também pelo Hezbollah no Líbano, Ansar Allah
(Houthis) no Iêmen, Hashd al-Shaabi no Iraque e pelo Hamas na Palestina.”
A
exemplo da Fatwa do Tabaco em 1890, do seu papel na Revolução Constitucional de
1906 e durante a guerra civil de 1908-1910, do apoio à Frente Nacional contra
as concessões à Anglo-Iranian Oil Company e da oposição à imunidade diplomática
total dos militares estadunidenses concedida na década de 1960, os clérigos
xiitas se opuseram firmemente à corrupção e posição dos monarcas em favor de
interesses estrangeiros, limitando seu poder e demandando que os tribunais
equilibrassem as leis parlamentares com as religiosas. Ao lado dos comerciantes
dos bazares, o clero demandava reformas tributárias, combatia concessões
econômicas e demandava mais descentralização administrativa e poder ao
parlamento.
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As raízes da Revolução
Ainda
que seu conservadorismo tenha, ao longo do século XX, sido alvo da oposição
liberal e das classes mais abastadas pró-monarquia, o que a obra demonstra é
que, apesar de ter ocorrido sem precedentes e tendo verdadeiramente alterado as
estruturas sociopolíticas e econômicas do Irã, a Revolução de 1979 não se
tratou de um fenômeno excepcional ex machina. Em outras palavras,
foi possível porque as bases já estavam postas décadas antes, ou seja, não
aparece num vácuo, sendo reflexo dos vários ensaios constitucionalistas e em
oposição ao Ocidente realizados anteriormente.
Assim,
a obra nos convida a perceber que a Revolução Islâmica ocorre não porque o Irã
seja uma sociedade ferrenhamente religiosa, ou pela suposta radicalidade
intrínseca aos xiitas, mas pelo poder reunido ao longo de décadas pelo seu
clero, por sua capacidade de mobilização popular, por sua narrativa
político-ideológica e pelos setores da sociedade que foram capaz de reunir em
torno de si. Foi, igualmente, resultado da própria repressão conduzida pela
dinastia Pahlavi, que baniu organizações políticas e partidos seculares –
restando somente ao clero xiita a autoridade moral e robustez institucional
enquanto oposição ao status quo.
“Fruto
do engajamento das elites clericais de forma crescente nas arenas
político-sociais, o revivalismo e o ressurgimento do ativismo político xiita no
Irã e no Levante se deu desde antes da década de 1970.”
Ademais,
a modernização cultural autoritária do xá forjou o caráter moderno iraniano,
estabelecendo administração de infraestrutura, defesa e identidade nacional,
mas afastou-a da persa e gerou forte clientelismo, esvaziando o poder do
parlamento e promovendo severa repressão política – além de reprimir
manifestações culturais e linguísticas tradicionais, inclusive religiosas. A
liberalização dos costumes foi acompanhada de uma apropriação por parte do
regime da direção religiosa e espiritual, de forma que o revivalismo xiita
responde precisamente à esta insatisfação. Nesse cenário, além dos estudantes e
da intelectualidade, da classe trabalhadora urbana e do jovem clero, o
carismático Khomeini unificou em torno de si também as demandas dos
comerciantes da classe média conservadora dos bazares, as insatisfações dos
liberais seculares e dos grandes proprietários.
Medea
demonstra como a Revolução Islâmica refletia a latente disputa social sobre as
formas que o bom governo deveria assumir no Irã. Fruto do engajamento das
elites clericais de forma crescente nas arenas político-sociais, o revivalismo
e o ressurgimento do ativismo político xiita no Irã e no Levante se deu desde
antes da década de 1970, cujo ethos concentra-se na luta
contra a opressão e a injustiça das quais o segmento se percebe como sendo
alvo. Dentro dessa cosmovisão, a resistência contra a opressão, marginalização
e sub-representação, fez com que o chamado à ação contra a tirania e o
despotismo (ingerência externa, doméstica e regional pró-Ocidente) se
apresentasse como dever. Deste modo, dentro da doutrina do jurisconsulto ou
do wilayat al-faqih (tutela bem guiada na ausência do Mahdi),
autossuficiência e soberania autônoma, boa governança, equidade, moralidade e
justiça estão mutuamente imbricadas. Ao longo da obra é possível identificar
como os debates em torno desses elementos estão presentes e vão se modificando
no decorrer do tempo depois da Revolução de 1979.
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As contradições do regime
Com
igual desembaraço aos inúmeros episódios de deslealdade e ingerência ocidental
– da coordenação da CIA no golpe de 1953 ao prolongamento da guerra Irã-Iraque
e do continuado apoio ao obscuro Mojahedin-e-Khalq (MEK) –, a autora não se
furta de abordar as contradições internas geradas como consequências
indesejadas do novo regime. Tratando a Revolução enquanto processo e dando
destaque aos seus matizes, o leitor não deixará de entrar em contato com as
novas formas de clientelismo e monopólio econômico, com a hierarquia clerical
produzida, a repressão aos direitos políticos e civis e o aumento da pobreza
rural e desigualdade econômica.
“O Irã
permanece se apresentando como uma ideologia emancipadora e de resistência
terceiro-mundista, que, ao se opor tanto à esquerda marxista quanto ao
secularismo pan-arabista, quanto ao liberalismo quanto ao wahabismo, se propõe
como um paradigma alternativo anti-ocidental.”
Um
tamanho significativo da obra de Medea é apresentado como que em formato de
manual para leigos, debruçando-se sobre todas as questões que seguramente o
público brasileiro gostará de saber acerca do Irã: indo de como é o trabalho
dos ativistas e o panorama geral dos direitos humanos no país até como o regime
lida com o álcool, o sexo, o aborto e as drogas, além da liberdade de culto e
representação legislativa de minorias religiosas como zoroastras e outras
denominações. Medea tampouco se omite de analisar o já conhecido fetiche pela
mulher iraniana e pelo uso do véu, reforçando a atuação das iranianas como
agentes de mudança antes e depois da Revolução.
Passados
45 anos, o Irã permanece se apresentando como uma ideologia emancipadora e de
resistência terceiro-mundista, que, ao se opor tanto à esquerda marxista quanto
ao secularismo pan-arabista, quanto ao liberalismo quanto ao wahabismo, se
propõe como um paradigma alternativo anti-ocidental. O caráter marcadamente
transnacional dessa terceira via lhe permite não somente promover seus
interesses políticos e securitários na região, cooperando financeira, logística
e tecnicamente com seus aliados, como também oferece um eixo moral e
narrativo-ideológico vanguardista do chamado Eixo da Resistência, composto
também pelo Hezbollah no Líbano, Ansar Allah (Houthis) no Iêmen, Hashd
al-Shaabi no Iraque e pelo Hamas na Palestina. Essa posição permite ao Irã
desempenhar um papel fundamental na região e no universo islâmico como
plataforma que se propõe unificadora por ser pró-Palestina e antissectária.
Essa atuação, contraditoriamente, se dá em reação ao isolamento imposto sobre
os iranianos e a recusa a sua participação nos arranjos securitários do
pós-guerra na região.
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A reconfiguração no Oriente Médio e a guerra sionista
Sendo o
Oriente Médio um palco de mudanças constantes, a obra de Medea é anterior ao
prolongamento da guerra israelense contra Gaza desde outubro de 2023 e à
abertura de novos fronts regionais, como no Líbano e no
próprio Irã. É também anterior tanto à queda do regime de Bashar al-Assad na
Síria, em dezembro de 2024, meses após a morte do presidente iraniano Ebrahim
Raisi e seu ministro das Relações Exteriores, Hossein Amir-Abdollahian, quanto
ao assassinato de Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah. Esses
acontecimentos, agora sob o segundo mandato do presidente estadunidense Donald
Trump – que se retirara unilateralmente do acordo nuclear histórico com o Irã
alcançado em 2018 – podem significar o desenho de uma nova arquitetura de
segurança para o Oriente Médio. A nova conjuntura deve considerar,
particularmente, a restauração dos laços diplomáticos entre Irã e Arábia
Saudita, esforço mediado pela China em 2023, e os Acordos de Abrão normalizando
as relações entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein em 2020.
Se por
um lado a evolução dos acontecimentos conjunturais recentes apontam para
cenários potencialmente distintos, por outro refletem a própria complexidade
desta esfera e a ausência de linearidade da política externa iraniana.
Oscilando de forma pendular entre o rompimento do isolacionismo internacional
conduzido por presidentes mais pragmáticos e reformistas e as reações
conservadoras retroagindo a abertura quando suas expectativas se provaram
frustradas, a autora demonstra como nas últimas décadas o país vem sofrendo o
forte impacto das sanções e demandas internas por reforma. Paradoxalmente, não
somente as sanções geram efeitos-rebote no que diz respeito à legitimidade do
regime, como elas os levam a desenvolver estratégias criativas de
autossuficiência, como uso de engenharia reversa, diversificação da indústria
nacional e desenvolvimento da cultura tradicional.
Por
dentro do Irã,
além de se propor a um resgate honesto da história política recente iraniana,
se apresenta como um grande convite para que o leitor, após tomar posse desse
instrumental, possa refletir sobre sua legitimidade, seus avanços e
retrocessos. A obra, ademais, nos convida a pensar como tradição e modernidade
devem se inter-relacionar, como política e religião podem ser combinadas
através de um sistema sofisticado de pesos e contrapesos e como agentes
transnacionais disruptivos respondem à crise da democracia e do
multilateralismo.
O
convite que nos faz a editora Autonomia Literária é
principalmente para refletirmos de que modo a população iraniana pode ser a
protagonista formuladora de uma modalidade de governo soberano e independente
que esteja acompanhado do seu sistema jurídico equivalente. E que esse
resultado ressignifique a tradição e reformule seu nacionalismo a partir desta
e em concerto com os anseios e contradições domésticas – oriundas das demandas
morais, (a)religiosas, econômicas e políticas da sociedade iraniana – mas sem
que esse resultado de governança signifique, necessariamente, entrar no formato
do sistema ocidental. Afastando-se ao mesmo tempo de um paroquialismo
essencializante que tudo culturaliza e de um orientalismo estranhado que tudo
exotiza, o leitor verá que a obra reforça a multiplicidade da identidade
iraniana, abandonando uma visão estática e linear sobre seu presente mas também
sobre seu futuro.
¨
Estados Unidos: a desforra tardia e temerária contra o
Irã. Por Virgílio Arraes
Na
Guerra Fria, os Estados Unidos distanciaram-se a contragosto de dois outrora
firmes aliados em função da radical alteração política: Cuba e Irã. Com o
primeiro, o embate havia ocorrido na segunda metade do final do mandato de
Dwight Eisenhower, republicano, ao acompanhar a defenestração de Fulgêncio
Batista em prol do Governo Provisório.
Todavia,
o enfrentamento incisivo se desenrolaria sob John Kennedy, democrata, com
resultado desastroso, dado o fracasso da patrocinada invasão da baía dos Porcos
em abril de 1961. O malogro público levaria ao escalonamento da tensão entre
Washington e Moscou e quase desaguaria em conflito nuclear em outubro de 1962,
evento afamado como a crise dos mísseis de Cuba. A partir de então, Havana
afinaria de vez o relacionamento diplomático com o Kremlin.
Com o
segundo, o rompimento havia acontecido em abril de 1980, ao ruir a monarquia
filo-ocidental, com a fuga da família imperial em janeiro de 1979 para o Egito,
e ser substituída por república teocrática xiita. O esgarço final do
relacionamento entre os dois países adviria da ocupação da embaixada em Teerã
em novembro daquele ano, ao transformá-la em cativeiro de dezenas de servidores
civis e militares.
O
aceite da Casa Branca de acolher para tratamento de saúde o último xá despertou
a inesperada investida à representação por estudantes da capital. Desejava o
novo governo a extradição do dirigente deposto, a fim de julgá-lo por inúmeras
medidas no decorrer de mais de três décadas e meia de reinado. Nem a riqueza
adicional obtida pela elevação súbita da cotação de petróleo desde 1973 havia
sido destinada, ainda que parcial, em benefício da sociedade como um todo.
Sob
administração democrata de Jimmy Carter, a Casa Branca, em vista da eleição de
novembro de 1980, planejaria o resgaste dos reféns. Em abril de 1980, a
execução da operação aérea seria catastrófica, ao nem sequer se aproximar do
destino. A repercussão negativa seria imediata e contribuiria para a derrota no
pleito presidencial para Ronald Reagan, em cujo primeiro dia de mandato
assistiria à libertação dos norte-americanos. Apesar disso, o Irã não
desfrutaria de estabilidade, ao ter logo diante de si a confrontação durante
quase um decênio com o Iraque.
Nos
anos noventa, a extinção da rivalidade bipolar não proporcionaria a Washington
o retorno da ascendência sobre Havana e Teerã, ao continuar ambos como
lembranças incômodas do desaire estadunidense daquele período. O ideário do
chamado ‘fim da história’ não atingiria nenhum dos dois, a despeito da
dificuldade derivada do relativo isolamento.
No
momento da derradeira agonia da União Soviética, a presença castrense dos
Estados Unidos, com seus parceiros, se reforçaria no Oriente Médio, ao obter
Washington a autorização da Organização das Nações Unidas em novembro de 1990
para expulsar o Iraque do território coveitiano.
Depois
do atentado terrorista de setembro de 2001, a Casa Branca atacaria no mês
seguinte o Afeganistão e em março de 2003 voltaria a enviar seus contingentes
para o Iraque, com o propósito oficial de desarmar o governo, embora o oficioso
fosse o de derrubá-lo. O insucesso nas duas frentes de combate pela gestão de
George Bush desestimularia outras incursões de porte por Barack Obama,
galardoado com o Nobel da Paz em 2009, Donald Trump e Joe Biden, seus
sucessores.
Surpreende,
pois, a alteração do norte diplomático, ao promover bombardeios contra
instalações atômicas do território iraniano, ao invocar a questão de segurança.
Sem consentimento onusiano, os norte-americanos de novo se intrometem de
maneira imprudente na região.
Em 2001
e 2003, Washington havia acreditado que investir contra nações antiocidentais
proporcionar-lhe-ia de forma espontânea e rápida a adesão das populações locais
com o propósito de implementar regime próximo do ideário democrático
neoliberal.
Duas
décadas mais tarde, parece incorrer no mesmo equívoco.
Fonte:
Jacobin Brasil/Correio da Cidadania

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