Luis
Felipe Miguel e a seletividade penal
O velho
Freud elaborou uma noção revolucionária que organiza o modo pelo qual nossas
relações são atravessadas: a transferência. A ideia central nessa categoria,
que fará história na psicanálise, é a de que usamos o outro como suporte de
nosso desejo. Transferimos a ele parte da responsabilização por aquilo que
gostaríamos de realizar. A transferência é, portanto, uma desresponsabilização
direta pela escolha, já que a fazemos mediante a aceitação do outro. Isso nos
alivia, pois se alguma coisa der errado podemos pôr no outro a culpa. Claro,
trata-se sobretudo de uma infantilização do eu. Algo, como diz Freud, a ser
manejado durante um tratamento.
Talvez
devêssemos evitar a transferência não só no setting clínico, já que ela também
se baseia num processo de identificação organizado pelos nossos gostos e gozos,
hoje capturados pelos algoritmos. Identificamos no outro o que nos falta, é ele
quem estabiliza nossa identidade imaginária dando suporte àquilo que
acreditamos ser — e, assim, essa relação de transferência serve para constituir
nossas identidades provisórias.
Quando
li os comentários “texto excelente”, “foi no ponto”, “quanta lucidez” acerca do
último artigo de Luis Felipe Miguel, intitulado “Funk, stand up e apologia ao
crime”, logo o velho Freud se encarnou: é curioso como a identidade
ego-gregária se realiza na internet. O texto é tão ruim — por ser formalista,
legalista e sintomático em vários sentidos — que conclui que o grande
“anti-identitário” de nossa época tinha constituído ao redor de si um séquito
de seguidores que transferiram para ele o lugar da verdade.
Se,
porém, o lugar da transferência deve ser manejado — trabalhando uma
contratransferência permanente — não só no setting clínico, mas também na
crítica, peço-lhe que não endosse as palavras aqui escritas a partir do lugar
da identificação, mas reflita e as coloque em suspensão para exame. Me tire do
lugar da verdade e me coloque no lugar da dúvida, que doravante vou esboçar uma
tentativa de exame crítico realizando um tête-à-tête com o “excelente” texto de
Miguel.
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Como uma ideia fixa pode levar ao legalismo seletivo
O ritmo
da prosa de Luis Miguel no seu substrack é sempre confessional e, por isso,
envolvente. Tem-se o pressentimento de estar próximo do autor. Há algo que
endereça uma identificação por parte do leitor — um recurso de escrita que,
aliás, virou moeda corrente por ser menos impessoal e mais direto. De início
ele confessa: “Eu nunca tinha ouvido falar nem do MC Poze do Rodo, nem de Leo
Lins. Não sou ligado nem em funk, nem em stand up.”
Quem
não se identifica? Aliás, muitos de seus leitores também nunca tinham ouvido
falar de ambos, assim como não sabiam da diferença entre o Funk e o TRAP. Mas
Miguel prevê que por isso será chamado de elitista; o mundo o condenará pelo
presentismo que “faz com que só importe o hit do momento e se ignore o
anteontem como passado remoto.” Que mundo terrível é esse, hein? Concordo.
Depois
de antecipar suas desculpas, o caminho está livre. Possível vítima do
cancelamento identitário, Miguel se coloca como aquele que quer apenas falar a
verdade para uma esquerda que perdeu prumo. O tom moralista e politicista de um
reconhecido marxista, porém, só evidencia o quão pernicioso é abandonar a
centralidade crítica na economia política.
E assim
ele inicia: “no caso de Poze do Rodo, dois fatos se impõem como acima de
qualquer dúvida. O primeiro é que sua prisão foi tornada espetáculo, em
desrespeito flagrante aos direitos do preso. Não é surpresa — é o modus
operandi da nossa polícia”. De fato, não é surpresa, mas o motivo da falta de
surpresa não é enunciado. Miguel não quer ir além: o que, afinal, não é
surpresa? A espetacularização de mais um negro sendo preso? É sempre flagrante
nos escritos de Miguel que o racismo é “algo menor”. A falta de surpresa é a do
racismo policial, só que admiti-lo colocaria em xeque o argumento subsequente:
“o outro fato evidente é que, sim, suas músicas se enquadram como apologia e
incitação ao crime. Serviriam de ilustração dos artigos 286 e 287 do Código Penal”.
Uma
breve história da música revela, porém, o caráter racial da aplicabilidade da
pena em voga nesses artigos penais. Não precisamos ir longe para saber que
agrupamentos e expressões culturais vindas de pessoas negras são amplamente
condenadas na prática constitucional brasileira, muitas delas denunciadas em
bons sambas — quem não lembra do delegado Chico Palha, “sem alma e sem
coração”, dos compositores Hélio dos Santos e Nilton Silva?
O
Código Penal de 1890 já aplicava uma lei contra a vagabundagem, legada depois
pela afamada Lei de Contravenções Penais de 1941, mais conhecida como lei de
vadiagem. Ambas permitiam na prática a perseguição policial aos sambistas e a
dissolução, na base do cassetete, das rodas de samba. Vistas como lugar de
perdição, as rodas eram frequentadas por Pixinguinha — a quem Miguel faz menção
como um dado “elitista”.
Do
ponto de vista do apuro estético-musical, Pixinguinha e Poze são separados por
um abismo histórico: o primeiro vive diante de uma utopia desenvolvimentista
que buscava integrar os negros (como subalternizados) ao capitalismo via
ideologia da democracia racial; ao passo que o segundo vive numa época em que
essa utopia ruiu, restando só o braço armado do Estado na defesa de um
capitalismo fim de linha — central à manutenção da relação facção-polícia —,
protagonizando o acintoso assassinato de jovens negros e periféricos. Há algo,
porém, que os une de maneira fundamental, a cor da pele. Isso não mudou.
Miguel, porém, não está tão interessado nessas mediações históricas complexas,
apesar de enunciar sua “preocupação” com o tema da apologia. “Podemos discutir
se ‘apologia’ deveria estar tipificada como crime no Código Penal”, pondera, e
logo arremata: [mas] “espero — que todo mundo concorde que incentivar crianças
a trocar os livros escolares por uma AK-47 é uma monstruosidade”.
E,
assim, na sua defesa moral tampouco faz questão de refletir sobre o contexto
social e político que organiza a condição de possibilidade de um MC como Poze.
No seu discurso, as facções são quase objetos etéreos: o domínio de um
território é quase uma contingência não delimitada pela história nem sequer
pela forte relação simbiótica que as facções têm com o Estado. E, portanto, é
como se a reprodução cultural pudesse escapar do seu lugar de produção. Sempre
patente no discurso politicista de certo marxismo: tudo é uma questão de
agência.
Sem se
preocupar com a realidade das favelas, ele também desconhece a realidade das
prisões, como declara candidamente neste excerto: “E a ligação do artista com o
CV é notória; ele mesmo a declarou ao entrar na cadeia.” Qualquer um que se
detenha sobre o modo de operacionalização das prisões e penitenciárias do
Brasil, ou à realidade de ser morador de um morro, sabe que o pressuposto de
sobrevivência numa cadeia é justamente declarar sua pertença. Usar isso como
prova criminal das ligações de Poze, criado num morro dominado pelo CV, é
justamente a operação que a polícia efetiva.
Seria Miguel um policial?
“Se”,
como o próprio Luis Miguel afirma, “as facções exercem uma forma de tirania
sobre as favelas — ‘comunidades’, para usar o eufemismo bem-pensante — que
controlam”, o que impede o professor de ver o funk como um sintoma que desnuda
esse processo? Por que diminuir o fato de que a criminalização do funk é mais
uma herança dessa prática estatal-administrativa claramente seletiva na
aplicabilidade da pena?
Miguel,
contudo, chama de “discurso fácil da esquerda” os estudos sérios que observam a
prática persecutória do Estado brasileiro às expressões culturais negras das
quais o funk é o último remanescente. Uma perseguição iniciada nos anos 1970,
em plena ditadura, e que se aprofundou mais e mais. Aliás, como comprova estudo
recente, o maior detonador das prisões de MC’s não são as letras, mas o artigo
35 da Lei nº 11.343: “associação para praticar, de forma reiterada ou não,
qualquer dos crimes previstos nos artigos 33 (tráfico de drogas) e 34 (atos
preparatórios para o tráfico)”.1 Mais uma vez é a — para sempre perdida —
guerra às drogas o real motivo das prisões.
Mas tal
associação exige um vínculo estável e permanente entre duas ou mais pessoas, o
que na prática leva às questões: Quais crimes são esses que juntam duas ou mais
pessoas? O que significa “atos preparatórios para o tráfico”? A resposta
concreta a essas perguntas foi dada dias depois da prisão de Poze.
Um
baile de festa junina ocorrido no morro de Santo Amaro foi simplesmente
invadido pelo Bope, que deixou cinco feridos e assassinou Herus Guimarães
Mendes, de apenas 24 anos. Uma festa — repleta de crianças, mulheres e idosos —
que sempre será vista pela polícia, e por seus defensores, como criminosa por
ser um “possível ato preparatório para o tráfico”. Mas para isso Miguel fecha
os olhos, assim como fechou os olhos para a tomada de posição desses mesmos
MC’s após os acontecimentos.
“Do
lado dos identitaristas”, dirá Miguel, “Poze do Rodo foi reduzido à cor da sua
pele: era negro, logo sua prisão era injusta. Sem ignorar o peso do racismo na
forma como ocorreu a ação da polícia, convém não deixar de lado outros
atributos do cantor” (atributos que Miguel faz questão de enfatizar a fim de
deixar a questão racial como mero acidente de percurso), “como dinheiro farto e
acesso a advogados de primeiro time, que logo o soltaram e que provavelmente
vão garantir sua liberdade por muito tempo, mesmo que crimes mais graves sejam
provados”.
O
racismo, que Miguel vê como mero acidente de percurso na prisão de Poze —
ignorando a celebração de policiais que adoraram tirá-lo da cama na frente dos
filhos, aliás, como se isso ocorresse com os filhos da elite — é minimizado,
para não dizer relativizado. Como sempre: algo menor. Até parece que vivemos
num país em que a polícia está sempre prendendo gente com grana e branca.
Fanon
falava sobre uma violência atmosférica em sociedades legatárias do
colonialismo. De maneira sintética, trata-se da normalização da violência
dirigida contra pessoas marcadas pela raça na mesma medida em que se enxergam
essas mesmas pessoas como radicalmente violentas e perigosas. Infelizmente, a
relativização de Miguel se marca justamente por esse olhar. O racismo é só um
detalhe… E, assim, incapaz de fazer a melhor pergunta, por não levar a questão
racial como algo determinante no sistema punitivo e prisional brasileiro,
Miguel não leva em consideração também que, mesmo tendo dinheiro, bons
advogados e ampla repercussão midiática, Poze foi arrastado descalço ao
camburão. E se ele foi assim conduzido, mesmo tendo recursos, o que a polícia
faz com quem não dinehiro, mas tem a mesma cor?
Não
bastasse, o encaminhamento do discurso resvala numa sentença. Após reclamar da
troca de mensagens entre Érica Hilton e Oruam, de mais uma vez criticar o
punitivismo progressista — algo efetivamente reativo —, ele diz que a esquerda
“aparece em público como amiga de bandidos”. Ora, se todo processo legal é
importante, como defende o legalista-marxista, quais os crimes de Oruam além da
tatuagem de Elias Maluco (algo enfatizado por Miguel para incriminá-lo), que
era ninguém menos que seu tio?
Destilando
todo o seu veneno — talvez o leitor possa dar nome à poção desse veneno —, após
todas as acusações feitas à esquerda, Miguel traz o caso Leo Lins. (O
interessante nesses textos mais ocasionais, mais íntimos ou confessionais, é
que deixam entrever o inconsciente do autor.) “O caso dele [Leo Lins] é, a meu
ver, um pouco mais complexo”. É interessante como o caso de Poze é mais
superficial, tranquilo, quase uma normalidade já que, bem… vocês sabem… Leo
Lins não. Esse caso merece atenção.
Num tom
paternalista, ele ruma à “complexidade” do caso: “o que parecia incomodar muita
gente progressista, até onde vi, era a insensibilidade. É um traço do mundo em
que vivemos, um traço bastante problemático — a ideia de que ser sensível e
empático é a obrigação nº 1 de cada um de nós.”
O
argumento é inválido, ser sensível ou não não estava em questão. Vamos nos
debruçar em apenas três “piadas” de Leo Lins — antes, porém, lembro que Miguel
ocultou a “piada” sobre pedofilia feita pelo “comediante”, enquanto detalhou as
características de Oruam. Mera coincidência? Decida, leitor! Enquanto isso
vamos às “piadas”:
“O cara
deixou assim: ‘Sou gordo! Adoro comer e não gosto de fazer exercício. Como vou
emagrecer?’ Pegando Aids! Você não adora comer de tudo? Sai comendo gay sem
camisinha!”
“Tem
ser humano que não é 100% humano. O nordestino do avião? 72%.”
“O rico
tenta ter filho e não consegue, vai para o médico, faz inseminação artificial,
aí vai para África buscar um, lá tem plantação. Lá você escolhe no pé, ‘esse tá
bem escurinho, vai dar like no Insta.”
Para
Miguel, as “piadas” de Leo Lins prefiguram figuras de linguagem da hipérbole,
sarcasmo e recurso ao absurdo. Lembrando que o “humorista” não foi conduzido à
prisão nem foi acordado por policiais, mas recebeu sua sentença no conforto de
casa e a decisão da juíza foi baseada nas Leis nº 7.716/1989 (preconceito de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional) e nº 13.146/2015
(discriminação contra pessoas com deficiência), agravados pelo contexto de
“atividades culturais destinadas ao público” — o que, segundo critérios
legalistas utilizados pelo próprio autor, deveriam configurar crime.
Ou
talvez, esse crime não seja visto por ele como “tão crime assim”, senão algo
inventado pelo “politicamente correto” dos identitários que tanto o perseguem.
Eis, a armadilha em que recai o próprio Miguel, sem levar em consideração a
questão racial envolvida e a violência institucional dirigida contra os
racializados, passa a fazer coro com a seletividade punitiva própria ao sistema
judiciário brasileiro.
De
minha parte, acredito firmemente que todo processo de judicialização ocorre
como sintoma de uma derrota política. A prisão não é uma saída para
“humoristas” como Leo Lins, o ostracismo e o escracho popular seriam a melhor
pena. Mas isso dá muito mais trabalho, pois necessita de uma politização real
da vida comum. Algo que nem grande parte da esquerda, nem o paladino moralista
Miguel querem bancar.
Seja
como for, a sentença foi quase um presente dado a um humorista rumando ao
ostracismo e que, de repente, se vê novamente alçado aos trending topics,
realimentando os imbecis que riem de suas piadas. Mais do que humorista, Leo
Lins é agora um mártir, e rapidamente a notícia foi instrumentalizada pela
indústria das fakes requentando a velha e insípida polarização das redes. A
receita de sucesso típica da extrema direita que já tem lugar cativo na câmara,
e que se tornou fonte de renda para centenas de jovens.
O
epílogo do texto é ainda mais sintomático: “Mas daí eu vi as piadas de Leo Lins
sobre pedofilia”, comenta Miguel, “e, nelas, um limite foi ultrapassado com
absoluta clareza. Não vou reproduzi-las, obviamente, mas o que o comediante faz
é um chamamento à violência sexual contra crianças.” Após essa constatação,
meio óbvia demais, Miguel segue relativizando e trazendo à baila Rafinha Bastos
para, no fim, arrematar que “as piadas de Leo Lins não apenas concedem
legitimidade ao pedófilo como também sabotam os esforços para fazer com que as
crianças sejam capazes de identificar e denunciar quando sofrem abuso sexual. É
caso de prisão? Não creio”.
Eu
poderia continuar este texto falando do grau de seletividade punitiva exercida
por Miguel, poderia falar sobre sua desejosa miopia ante questões raciais e da
gravidade de relativizar tanto aquilo que foi suporte de seus argumentos: a
legalidade burguesa. Mas confio na inteligência do leitor para completar a
mensagem deste breve artigo.
Fonte:
Por Douglas Barros, no Blog da Boitempo

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