De
pai para filho, de mãe para filha: em Caruaru (PE), produção de comida sem
veneno atravessa gerações
Às 5h30
o mototáxi me espera na porta. Meu destino é a casa de Dona Maria José Barbosa,
mais conhecida como Zezé, e de seu esposo, Aluísio Barbosa, no Sítio Serrote
dos Bois, em Caruaru (PE). Quando chegamos, pontualmente às 6h, havia uma leve
serração no ar, e o cheiro da cidade já tinha dado espaço ao de terra molhada.
No fogo, havia café e Seu Aluísio me recebia na sala enquanto Zezé terminava o
preparo da primeira refeição do dia.
A
macaxeira servida veio diretamente da plantação da família. Na mesa do café
também tinha cuscuz, leite, carne,
queijo e bolo. Uma mesa que está na contramão dos atuais caminhos da
alimentação no Nordeste.
Olhando
os dados das três últimas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF),
do IBGE, o Nordeste tem um aumento de 4,4 pontos percentuais no consumo de
ultraprocessados nos últimos 16 anos. Isso significa que, em 2017 e 2018, esses
produtos representavam 14,4% da disponibilidade diária de energia do nordestino
– abaixo da média nacional, de 18,4%. Mesa do café da manhã no sítio de Dona
Zezé e Seu Aluísio. Foto: Hellen Gouveia
O casal
faz parte da segunda geração a trabalhar com agricultura e conta com seus
filhos para continuarem a atividade. “A família toda trabalha com isso. Aí, os
que vão casando vão se amuando mais eu, entendeu?” diz Maria José.
O casal
tem três filhos: As duas mulheres, já casadas, participam da produção familiar.
Já o filho optou por seguir outra profissão e mora em Minas Gerais. Os genros
também integraram a produção e organizaram juntos uma rotina para cuidar dos
animais, da plantação, gerenciar os trabalhadores e entregar produtos.
Conheci
dona Maria José na Feira da Agricultura
Familiar de Caruaru. Criada em 22 de março de 2018, a partir de uma iniciativa
da Prefeitura Municipal da cidade através da Secretaria de Desenvolvimento
Rural, ela tem como objetivo conectar o campo à cidade, escoando a produção dos
agricultores e agricultoras e viabilizar
a venda direta para o consumidor final.
O
Secretário da pasta, Wesley Nascimento, conta que, semanalmente, circulam pela
feira cerca de 250 pessoas, que gastam uma média de R$ 90 gerando uma
movimentação econômica de mais de R$ 80.000 ao mês. Hoje, 36 famílias trabalham na feira e a
maioria das barracas é gerida por mulheres.
Inflação
sobe, inflação desce, mas em sete anos de feira, o abacate continua a R$ 2. É o
que conta o ferista Lucas Luis a consumidores que se aproximavam de sua
barraca.
Muitos
agricultores familiares utilizam práticas agroecológicas e produzem seus
próprios insumos, o que os torna menos vulneráveis às oscilações do mercado.
Isso gera mais estabilidade de custos e, consequentemente, de preços. Lucas tem 20 anos, é feirante e videomaker.
Na sua barraca, vende produtos como laranja, mamão, jambo, coentro, carambola e
entre outros. A tradição da agricultura começou com seu avô, foi tocada pelo
tio e pelo pai que cuidam da roça e das
plantações.
Lucas
escoa os produtos em outras quatro feiras da região. “É por paixão. Meu pai não
gosta de estar aqui na feira. O negócio dele é a enxada, é o que ele gosta de
fazer”, completa.
Esse é
um reflexo de uma profissão que resiste de geração a geração. “Pra mim, para
ser agricultora precisa ter muita força e coragem. Porque o serviço é pesado,
entendeu? O serviço é pesado, mas é uma coisa gratificante”, diz Zezé.
Com a
feira, Dona Zezé, Aluísio e Lucas conseguem ter um retorno financeiro maior do
que quando vendiam para terceiros, mantendo uma relação direta de
produtor-consumidor.
São
iniciativas como essa que diminuem a migração rural-urbana e fazem uma
manutenção da renda mínima. De acordo com a vice-presidente do Sindicato de
Trabalhadores Rurais de Caruaru, Conceição Aparecida, as linhas de crédito são
fundamentais para fortalecer a atuação e permanência do produtor rural no
campo. “Ajuda a evitar a saída de
trabalhadores da área rural e a promover o desenvolvimento sustentável do
município”, diz.
Os
irmãos Francisco e Nazaré da Silva e a produtora Maria Aparecida, conhecida
como Cida são alguns agricultores que toda quinta-feira, montam suas barracas
na principal via da cidade.
A
produção de cada agricultor tem
histórias, produtos e origens distintas, mas têm uma característica em comum: o
não uso de agrotóxicos. Ter produtos
orgânicos é um dos requisitos para participar da feira. “Hoje em dia a gente vê
os mercadões lotados de verduras, mas tudo cheio de veneno, cheio de
agrotóxicos. Por isso que muitas vezes as pessoas acham que comem saudável, mas
na verdade, tudo tem veneno e nem sabem disso, né?”, conta Lucas.
Cida
afirma: “As minhas coisas são tudo pequenininha mas eu uso sem agrotóxico” e
lembra dos riscos de doenças que podem ser causadas a quem consome produtos com
agrotóxico.
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Em família, do campo à feira
No
Brasil, há 917 feiras orgânicas ou agroecológicas, de acordo com o
Mapa de Feiras Orgânicas, realizado pelo
Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC). Já em Pernambuco, são 59.
De
acordo com o Censo Agropecuário do IBGE, em 2017, mais de 578 mil pessoas
estavam ocupadas nos estabelecimentos familiares pernambucanos. Dentre esses,
estão os irmãos Nazaré e Francisco da Silva. Trabalham juntos desde que
nasceram e hoje dividem a barraca na feira, há sete anos. Tradição que veio de
seus pais e avós no mesmo sítio em que moram hoje, no Sítio Serrote dos Bois,
em Caruaru.
Nazaré
tem 60 anos e relata que se sente com saúde quando está na roça. Conta que seu único “remédio” é uma cerveja gelada
para passar a dor de cabeça. Quando pergunto sobre seus filhos, ela
imediatamente pega o celular para mostrar as fotos. Estão em São Paulo. “E a
senhora não quis ir, não?”, pergunto. “Meu lugar é onde eu estou. A gente tem
que ficar como os passarinhos ali. Meio livre.”
Durante
nossa conversa, uma cliente passa e comenta que frequenta a feira desde o
início e é fiel a Nazaré e Francisco.
Francisco
conta que antes de trabalhar na feira, “vendia era no chão, no centro da
cidade. Não era organizado que nem é aqui”. Na sua barraca há batata doce,
milho, feijão preto, carioca e mulatinho, fava, mandioca e macaxeira. Para
levar os produtos, acordam ainda sem a luz do sol e contam com a ajuda de um
carro da prefeitura para o transporte.
A movimentação na feira inicia por volta das 5
horas da manhã. Os irmãos Nazaré e Francisco da Silva vivem no mesmo sítio que
os pais e os avós viveram e trabalharam.
O escritor Gustavo Maia Gomes afirma, em seu
livro Velhas Secas em Novos Sertões, que no Nordeste, de um modo geral, o campo
vem progressivamente sendo esvaziado, permanecendo pessoas idosas e do sexo
feminino. O Censo Agropecuário do IBGE, em 2017, traz em números que não há
renovação geracional nos estabelecimentos agrícolas. Em 2006, 3,3% das
atividades eram comandadas por menores de 25, já em 2017, caiu para 2%. Em
contrapartida, a liderança de maiores de 65
anos subiu de 17,5% para 23,2%.
Sobre o
gênero, a quantidade de mulheres na direção dos estabelecimentos aumentou entre
2006 e 2017, passando de 12,7% para 18,7%. Com a criação do Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em 1996, e a diversificação
de linhas de crédito voltadas para a agricultura familiar, as políticas
públicas e demais alternativas são meios para o fomento e sustentação desses
modelos de vida.
Um
deles é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criado em 1955, que contribui para a segurança alimentar e
nutricional dos alunos e tem parcerias com diversos setores, como a agricultura
familiar.
De
acordo com o Censo Agropecuário, Pernambuco é destaque na produção de algodão,
arroz, cebola, feijão, mandioca e milho, superior à do Nordeste. Ou seja, nas
culturas em que predomina o agronegócio, a participação da agricultura familiar
decresce, a exemplo da cana-de-açúcar.
Dessas
culturas, a família de Dona Zezé cultiva feijão, mandioca e milho. E na feira
comercializa a goma de mandioca e a tapioca pronta produzida pela sua filha e
genro. No sítio, plantam macaxeira para
consumo da família e mandioca para comercialização.
Zezé
conta que a casa que moram atualmente
foi concedida pelo governo e o terreno é o mesmo que os pais moravam. A casa
antiga ainda permanece de pé. Já na sua fase adulta, a vivência foi mudando a
partir do câncer de pele adquirido por anos de exposição ao sol e sem proteção.
Hoje em dia ela aproveita os tempos de inverno para ir para a roça, que tem 10
hectares. Lá ela planta feijão mulatinho, feijão de corda, maniva e milho. Usa
roupas longas e chapéu. Eram essas as vestimentas que usava quando nos preparávamos
para sair.
Ela me
leva à casa de farinha dentro do sítio. Nos arredores, há 50 anos, havia pelo menos 130 casas de farinha na zona rural
da cidade e, hoje, restam quatro ou cinco. Muitos filhos não quiseram dar
continuidade às produções por optarem pelo ramo da confecção ou trabalhos com
carteira assinada.
“Antigamente,
a renda dessa região todinha era farinha. Era tão animado, que quando você se
casava, você se preocupava em fazer uma casinha de farinha”, completam.
Seu
Aluísio me conta com bastante afeto o funcionamento dos equipamentos. Tinha
mais física ali do que eu jamais aprendi na escola. A prensagem da mandioca,
onde a pressão é usada para retirar o líquido, na torração, que envolve
transferência de calor para secar a farinha, nas alavancas na prensa ou no uso
da gravidade.
Zezé
fala que o chão da casa de farinha tem 1,55 m de comprimento e foi feito por
ela, com 12 anos, e sua irmã. Hoje, semanalmente, são produzidos 100 kg de
goma, 80 kg de massa de bolo e 50 kg de massa de beiju, e vendidos na Feira da
Agricultura Familiar.
Andamos
mais um pouco e começo a visualizar as soluções do sítio que facilitam o dia a
dia, como o uso do esterco de boi para produzir biogás, que pode ser usado como
gás de cozinha e a cisterna-calçadão que
capta a água da chuva por meio de um calçadão de cimento construído sobre o
solo. Com essa área do calçadão, 300 milímetros de chuva são suficientes para
encher a cisterna. Tecnologia de alto nível. Chegamos no roçado. Zezé e Seu
Aluísio contam que 2025 já traz
desafios. Do milho plantado, metade se perdeu por falta das chuvas e a outra
metade não está madura como deveria. Dona Zezé diz que a esperança é junho,
época de São João, período onde o milho se destaca além das plantações de
feijão, mandioca e arroz.
Confesso
que embora nascida e criada no agreste de Pernambuco, nunca tinha visto a
maniva e uma mandioca saindo do solo. A mandioca plantada ali,conta Dona Zezé,
irá durar um ano. Enquanto caminhamos pelo sítio, o casal conta que as feiras
sempre fizeram parte da família. A mãe de Zezé tinha uma barraca na feira do Parque 18 de Maio, mas acabaram
perdendo por falta de documentação, após seu falecimento. Passaram alguns anos
vendendo ovo, umbu cajá, goma e entre outros para atravessadores. Até que
decidiram retomar o trabalho na feira. “Foi via um projeto do Pronaf que eu fiz
parte. Pegamos uma parte e compramos
gado e outro, guardamos no banco. Aí veio a barraquinha, estreita que fazia
dó”, contam Zezé e Aluísio.
Na
época, havia pouca clientela, crianças dormindo no chão e braços se esbarrando
pelo pouco espaço. Ao longo do tempo, os fregueses começaram a aparecer, o
casal comprou uma barraca maior e a
situação estabilizou. “Dá pra pagar as contas, dá pra colocar comida em casa,
dá pra viver bem”, diz Zezé Na barraca, a família comercializa goma, massa de bolo, massa de beiju e a
tapioca pronta. Foto: Hellen Gouveia Em 2018, dona Zezé foi procurada pela
Secretaria de Desenvolvimento Rural para fazer parte da Feira de Agricultura
Familiar de Caruaru. Feira de rua e sem agrotóxicos que fortalece uma cultura
que permanece viva.
Fonte:
O Joio e O Trigo

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