segunda-feira, 30 de junho de 2025

De pai para filho, de mãe para filha: em Caruaru (PE), produção de comida sem veneno atravessa gerações

Às 5h30 o mototáxi me espera na porta. Meu destino é a casa de Dona Maria José Barbosa, mais conhecida como Zezé, e de seu esposo, Aluísio Barbosa, no Sítio Serrote dos Bois, em Caruaru (PE). Quando chegamos, pontualmente às 6h, havia uma leve serração no ar, e o cheiro da cidade já tinha dado espaço ao de terra molhada. No fogo, havia café e Seu Aluísio me recebia na sala enquanto Zezé terminava o preparo da primeira refeição do dia. 

A macaxeira servida veio diretamente da plantação da família. Na mesa do café também tinha  cuscuz, leite, carne, queijo e bolo. Uma mesa que está na contramão dos atuais caminhos da alimentação no Nordeste.

Olhando os dados das três últimas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, o Nordeste tem um aumento de 4,4 pontos percentuais no consumo de ultraprocessados nos últimos 16 anos. Isso significa que, em 2017 e 2018, esses produtos representavam 14,4% da disponibilidade diária de energia do nordestino – abaixo da média nacional, de 18,4%. Mesa do café da manhã no sítio de Dona Zezé e Seu Aluísio. Foto: Hellen Gouveia   

O casal faz parte da segunda geração a trabalhar com agricultura e conta com seus filhos para continuarem a atividade. “A família toda trabalha com isso. Aí, os que vão casando vão se amuando mais eu, entendeu?” diz Maria José.

O casal tem três filhos: As duas mulheres, já casadas, participam da produção familiar. Já o filho optou por seguir outra profissão e mora em Minas Gerais. Os genros também integraram a produção e organizaram juntos uma rotina para cuidar dos animais, da plantação, gerenciar os trabalhadores e entregar produtos. 

Conheci dona Maria José na  Feira da Agricultura Familiar de Caruaru. Criada em 22 de março de 2018, a partir de uma iniciativa da Prefeitura Municipal da cidade através da Secretaria de Desenvolvimento Rural, ela tem como objetivo conectar o campo à cidade, escoando a produção dos agricultores e agricultoras e  viabilizar a venda direta para o consumidor final.

O Secretário da pasta, Wesley Nascimento, conta que, semanalmente, circulam pela feira cerca de 250 pessoas, que gastam uma média de R$ 90 gerando uma movimentação econômica de mais de R$ 80.000 ao mês.  Hoje, 36 famílias trabalham na feira e a maioria das barracas é gerida por mulheres.

Inflação sobe, inflação desce, mas em sete anos de feira, o abacate continua a R$ 2. É o que conta o ferista Lucas Luis a consumidores que se aproximavam de sua barraca.

Muitos agricultores familiares utilizam práticas agroecológicas e produzem seus próprios insumos, o que os torna menos vulneráveis às oscilações do mercado. Isso gera mais estabilidade de custos e, consequentemente, de preços.  Lucas tem 20 anos, é feirante e videomaker. Na sua barraca, vende produtos como laranja, mamão, jambo, coentro, carambola e entre outros. A tradição da agricultura começou com seu avô, foi tocada pelo tio e pelo  pai que cuidam da roça e das plantações. 

Lucas escoa os produtos em outras quatro feiras da região. “É por paixão. Meu pai não gosta de estar aqui na feira. O negócio dele é a enxada, é o que ele gosta de fazer”, completa. 

Esse é um reflexo de uma profissão que resiste de geração a geração. “Pra mim, para ser agricultora precisa ter muita força e coragem. Porque o serviço é pesado, entendeu? O serviço é pesado, mas é uma coisa gratificante”, diz Zezé. 

Com a feira, Dona Zezé, Aluísio e Lucas conseguem ter um retorno financeiro maior do que quando vendiam para terceiros, mantendo uma relação direta de produtor-consumidor.

São iniciativas como essa que diminuem a migração rural-urbana e fazem uma manutenção da renda mínima. De acordo com a vice-presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Caruaru, Conceição Aparecida, as linhas de crédito são fundamentais para fortalecer a atuação e permanência do produtor rural no campo. “Ajuda  a evitar a saída de trabalhadores da área rural e a promover o desenvolvimento sustentável do município”, diz. 

Os irmãos Francisco e Nazaré da Silva e a produtora Maria Aparecida, conhecida como Cida são alguns agricultores que toda quinta-feira, montam suas barracas na principal via da cidade.

A produção de cada  agricultor tem histórias, produtos e origens distintas, mas têm uma característica em comum: o não uso de agrotóxicos.  Ter produtos orgânicos é um dos requisitos para participar da feira. “Hoje em dia a gente vê os mercadões lotados de verduras, mas tudo cheio de veneno, cheio de agrotóxicos. Por isso que muitas vezes as pessoas acham que comem saudável, mas na verdade, tudo tem veneno e nem sabem disso, né?”, conta Lucas. 

Cida afirma: “As minhas coisas são tudo pequenininha mas eu uso sem agrotóxico” e lembra dos riscos de doenças que podem ser causadas a quem consome produtos com agrotóxico.

<><> Em família, do campo à feira

No Brasil, há  917 feiras  orgânicas ou agroecológicas, de acordo com o Mapa de Feiras Orgânicas, realizado  pelo Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC). Já em Pernambuco, são  59.

De acordo com o Censo Agropecuário do IBGE, em 2017, mais de 578 mil pessoas estavam ocupadas nos estabelecimentos familiares pernambucanos. Dentre esses, estão os irmãos Nazaré e Francisco da Silva. Trabalham juntos desde que nasceram e hoje dividem a barraca na feira, há sete anos. Tradição que veio de seus pais e avós no mesmo sítio em que moram hoje, no Sítio Serrote dos Bois, em Caruaru. 

Nazaré tem 60 anos e relata que se sente com saúde quando está na roça. Conta  que seu único “remédio” é uma cerveja gelada para passar a dor de cabeça. Quando pergunto sobre seus filhos, ela imediatamente pega o celular para mostrar as fotos. Estão em São Paulo. “E a senhora não quis ir, não?”, pergunto. “Meu lugar é onde eu estou. A gente tem que ficar como os passarinhos ali. Meio livre.”

Durante nossa conversa, uma cliente passa e comenta que frequenta a feira desde o início e é fiel a Nazaré e Francisco. 

Francisco conta que antes de trabalhar na feira, “vendia era no chão, no centro da cidade. Não era organizado que nem é aqui”. Na sua barraca há batata doce, milho, feijão preto, carioca e mulatinho, fava, mandioca e macaxeira. Para levar os produtos, acordam ainda sem a luz do sol e contam com a ajuda de um carro da prefeitura para o transporte.

 A movimentação na feira inicia por volta das 5 horas da manhã. Os irmãos Nazaré e Francisco da Silva vivem no mesmo sítio que os pais e os avós viveram e trabalharam.

O  escritor Gustavo Maia Gomes afirma, em seu livro Velhas Secas em Novos Sertões, que no Nordeste, de um modo geral, o campo vem progressivamente sendo esvaziado, permanecendo pessoas idosas e do sexo feminino. O Censo Agropecuário do IBGE, em 2017, traz em números que não há renovação geracional nos estabelecimentos agrícolas. Em 2006, 3,3% das atividades eram comandadas por menores de 25, já em 2017, caiu para 2%. Em contrapartida, a liderança de maiores de 65  anos subiu de 17,5% para 23,2%.

Sobre o gênero, a quantidade de mulheres na direção dos estabelecimentos aumentou entre 2006 e 2017, passando de 12,7% para 18,7%. Com a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em 1996, e a diversificação de linhas de crédito voltadas para a agricultura familiar, as políticas públicas e demais alternativas são meios para o fomento e sustentação desses modelos de vida.

Um deles é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criado em 1955,  que contribui para a segurança alimentar e nutricional dos alunos e tem parcerias com diversos setores, como a agricultura familiar. 

De acordo com o Censo Agropecuário, Pernambuco é destaque na produção de algodão, arroz, cebola, feijão, mandioca e milho, superior à do Nordeste. Ou seja, nas culturas em que predomina o agronegócio, a participação da agricultura familiar decresce, a exemplo da cana-de-açúcar.

Dessas culturas, a família de Dona Zezé cultiva feijão, mandioca e milho. E na feira comercializa a goma de mandioca e a tapioca pronta produzida pela sua filha e genro.  No sítio, plantam macaxeira para consumo da família e mandioca para comercialização.

Zezé conta  que a casa que moram atualmente foi concedida pelo governo e o terreno é o mesmo que os pais moravam. A casa antiga ainda permanece de pé. Já na sua fase adulta, a vivência foi mudando a partir do câncer de pele adquirido por anos de exposição ao sol e sem proteção. Hoje em dia ela aproveita os tempos de inverno para ir para a roça, que tem 10 hectares. Lá ela planta feijão mulatinho, feijão de corda, maniva e milho. Usa roupas longas e chapéu. Eram essas as vestimentas que usava quando nos preparávamos para sair.

Ela me leva à casa de farinha dentro do sítio. Nos arredores, há 50 anos, havia  pelo menos 130 casas de farinha na zona rural da cidade e, hoje, restam quatro ou cinco. Muitos filhos não quiseram dar continuidade às produções por optarem pelo ramo da confecção ou trabalhos com carteira assinada.

“Antigamente, a renda dessa região todinha era farinha. Era tão animado, que quando você se casava, você se preocupava em fazer uma casinha de farinha”, completam.

Seu Aluísio me conta com bastante afeto o funcionamento dos equipamentos. Tinha mais física ali do que eu jamais aprendi na escola. A prensagem da mandioca, onde a pressão é usada para retirar o líquido, na torração, que envolve transferência de calor para secar a farinha, nas alavancas na prensa ou no uso da gravidade.

Zezé fala que o chão da casa de farinha tem 1,55 m de comprimento e foi feito por ela, com 12 anos, e sua irmã. Hoje, semanalmente, são produzidos 100 kg de goma, 80 kg de massa de bolo e 50 kg de massa de beiju, e vendidos na Feira da Agricultura Familiar.

Andamos mais um pouco e começo a visualizar as soluções do sítio que facilitam o dia a dia, como o uso do esterco de boi para produzir biogás, que pode ser usado como gás de cozinha e a  cisterna-calçadão que capta a água da chuva por meio de um calçadão de cimento construído sobre o solo. Com essa área do calçadão, 300 milímetros de chuva são suficientes para encher a cisterna. Tecnologia de alto nível. Chegamos no roçado. Zezé e Seu Aluísio contam que  2025 já traz desafios. Do milho plantado, metade se perdeu por falta das chuvas e a outra metade não está madura como deveria. Dona Zezé diz que a esperança é junho, época de São João, período onde o milho se destaca além das plantações de feijão, mandioca e arroz.

Confesso que embora nascida e criada no agreste de Pernambuco, nunca tinha visto a maniva e uma mandioca saindo do solo. A mandioca plantada ali,conta Dona Zezé, irá durar um ano. Enquanto caminhamos pelo sítio, o casal conta que as feiras sempre fizeram parte da família. A mãe de Zezé tinha uma barraca  na feira do Parque 18 de Maio, mas acabaram perdendo por falta de documentação, após seu falecimento. Passaram alguns anos vendendo ovo, umbu cajá, goma e entre outros para atravessadores. Até que decidiram retomar o trabalho na feira. “Foi via um projeto do Pronaf que eu fiz parte. Pegamos uma parte  e compramos gado e outro, guardamos no banco. Aí veio a barraquinha, estreita que fazia dó”, contam Zezé e Aluísio. 

Na época, havia pouca clientela, crianças dormindo no chão e braços se esbarrando pelo pouco espaço. Ao longo do tempo, os fregueses começaram a aparecer, o casal comprou  uma barraca maior e a situação estabilizou. “Dá pra pagar as contas, dá pra colocar comida em casa, dá pra viver bem”, diz Zezé Na barraca, a família comercializa  goma, massa de bolo, massa de beiju e a tapioca pronta. Foto: Hellen Gouveia Em 2018, dona Zezé foi procurada pela Secretaria de Desenvolvimento Rural para fazer parte da Feira de Agricultura Familiar de Caruaru. Feira de rua e sem agrotóxicos que fortalece uma cultura que permanece viva.

 

Fonte: O Joio e O Trigo

 

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