Terceira
Guerra Mundial: o quebra-cabeça está se completando, afirma padre Giulio
Albanese
"Leão XIV, em seu primeiro
discurso em São Pedro, apelou à humanidade para buscar uma paz ‘desarmada e
desarmante’,
expressando o desejo de trabalhar pela justiça e pela coexistência entre os
povos. Não poderia ser mais claro! Essa é a marca da geopolítica vaticana”,
afirma o Padre Giulio
Albanese,
missionário comboniano, conselheiro da Secretaria de Estado, responsável pelas
Missões e Comunicações do Vicariato.
>>>
Eis a entrevista.
·
Que vento sopra no Sul?
Não
podemos ignorar o contexto global. A crise ucraniana aprofundou as
divisões em nível planetário. O dramático quebra-cabeça da ‘terceira guerra
mundial em
pedaços’, evocado por anos por Francisco, está se completando
hoje na Europa Oriental, no Oriente Médio, em Gaza, e entre Israel e o Irã, com as tensões
entre a China e Taiwan no Indo-Pacífico. Não se trata de
blocos porque as partes não são coesas, mas de algo pior, mais desfiado e
imprevisível. De um lado, as convergências oportunistas, se as tarifas o
permitirem, em torno dos EUA e do Ocidente. De outro, os
alinhamentos igualmente oportunistas e ambíguos em torno da China e da Rússia do resto do
mundo. Em termos numéricos: um oitavo da humanidade contra os outros sete
oitavos.
·
Quais os efeitos geopolíticos?
A
minoria dominante se agarra ao seu poder, desafiado pelos outros. A África Subsaariana está pagando o
preço mais alto, onde estão crescendo a pressão da pobreza, a falta de inclusão
social e de oportunidades de trabalho, a governança fraca e o rápido aumento do
custo de vida. O ajuste macroeconômico, as tensões políticas e a frustração
social tornam a atmosfera pesada.
·
No livro Áfricas, Inferno e Paraíso (Editora
Lev), que contrastes compila a partir de suas viagens?
O FMI expressou
preocupação pela África Subsaariana quanto ao aumento das ‘desordens
sociais’. Devemos ser realistas. Em uma macrorregião onde os gastos sociais
estão sendo cortados para pagar uma dívida cada vez mais onerosa e onde a alta
dos preços está pulverizando o poder de compra, as condições de vida das
pessoas comuns serão cada vez mais precárias. A situação tem sido incontrolável
desde que os governos africanos substituíram a dívida multilateral de baixo
custo e longo prazo por dívidas muito mais onerosas e de curto prazo com
credores privados (seguradoras, bancos, fundos de investimento, fundos de private
equity). Assim, a dívida foi financeirizada e o pagamento de juros está
vinculado a atividades especulativas nos mercados internacionais. As finanças
especulativas, no entanto, consideram um país altamente endividado como pouco
confiável e, consequentemente, o obrigam a pagar mais pelo dinheiro. Pelo menos
quatro vezes mais do que os países economicamente avançados pagam. Para os
países africanos, isso se traduz não apenas na ausência de assistência social,
mas também de infraestrutura (estradas, escolas, hospitais), necessária para
combater a pobreza e iniciar o desenvolvimento que garantiria a restituição do
empréstimo recebido.”
·
Por que isso não acontece?
Hoje,
os custos das mudanças climáticas absorvem mais
de 5% do PIB da África, aumentando a dívida. A Cop29 em Baku não nos torna
otimistas. A África é associada pela grande mídia a males mais ou
menos obscuros: guerras, carestias, epidemias esquecidas. Mas
a África é muito mais. Além de suas belezas naturais, um pôr do sol
de tirar o fôlego e infinitas riquezas naturais, é um recipiente poliédrico de
sabedorias ancestrais, um lugar de paixões, riquezas culturais e artísticas,
uma galáxia de etnias composta de rostos com suas histórias. É necessária uma
descentralização narrativa. Agonia, deriva, beco sem saída da globalização,
lastro geopolítico? A África sabe como otimizar as situações extremas.
Vamos superar os estereótipos que a tornam a trágica metáfora da pobreza e
distinguir entre problemas econômicos e sociais e o drama da pobreza.
·
O senhor fundou a principal agência missionária de
informação (Misna). Como isso muda a história sobre a África?
A África não
é pobre, mas empobrecida; não implora por beneficência ou por caridade
hipócritas e interesseiras, mas por justiça. Mergulhei nas profundezas do
continente: nas culturas, nas aldeias, nas favelas, conhecendo pessoas que
inventam o seu cotidiano. São as Áfricas: o plural é melhor para um
continente três vezes maior que a Europa. Terras submersas, invisíveis não
só aos olhos dos estrangeiros, mas também às elites locais, funcionais aos
mecanismos camuflados de uma globalização invasiva e de especulações
inescrupulosas.
·
O Ocidente é cúmplice?
O
desafio é reparar o fosso entre as vítimas da marginalização social e econômica
e aqueles que atuam como agentes locais de interesses ‘extra-africanos’. Essa é
a mensagem que tento transmitir ao descrever um continente com um crescimento
demográfico exponencial. A população africana está aumentando exponencialmente.
Em 1950, era de 221 milhões de pessoas. Agora é de 1,5 bilhões. Portanto, em
apenas sete décadas, aumentou 640%. Mas o crescimento não termina aí. Segundo
as previsões da ONU, os africanos serão dois bilhões e meio em 2050: um
quarto da população mundial. A idade média na África hoje é de vinte
anos. Em menos de trinta anos, os europeus representarão apenas 5%. Portanto, a
demografia africana desempenha um papel fundamental.
·
Por que afeta o mundo?
O boom
demográfico africano assumirá proporções tais que forçará as populações urbanas
a mudarem sua forma de sobrevivência. A cooperação entre o Norte e
o Sul do mundo será indispensável. Para se manter competitiva na
economia real, precisará de recursos humanos
africanos.
É necessário um pacto migratório euro-africano que restitua a dignidade à
mobilidade humana, prevenindo todas as formas de tráfico de pessoas, governando
os fluxos, respeitando o valor da vida. Não podemos mais pensar apenas em
preservar o espaço de nossos interesses pessoais ou nacionais.
Primeiro Francisco e agora Leão apelam ao bem comum, ao
senso de comunidade, a um ‘nós’ aberto à fraternidade universal.
·
O que sabemos sobre a África?
A
narrativa pública do continente se baseia em uma narrativa esporádica, parcial
e preconceituosa. O foco na Europa está na imigração por mar da costa
africana e no controle de fronteiras. Mas as verdadeiras razões da mobilidade
humana não são explicadas, com particular referência aos eventos que se sucedem
nos países de origem dos migrantes, frequentemente palco de tragédias
indizíveis. Nas relações Norte-Sul, devemos construir pontes. Leão XIV apela à
assunção de responsabilidades e a solidariedade vai além da lógica paternalista
da filantropia. Devemos reconhecer que nós e eles temos um destino comum.
·
Qual é o papel da China?
A China conseguiu
conquistar a simpatia da África, ao contrário de muitos Estados europeus,
implementando uma política empresarial que a torna presente hoje em todos os
países do continente. Mas isso não significa que não seja uma forma invasiva de
fazer negócios.
·
E o plano Mattei?
Como
missionário, se a Itália quiser ajudar
a África, só posso ficar feliz. O ativismo das empresas italianas também é
positivo, desde que aconteça em conformidade com as regras. O governo italiano
e a Europa devem adotar uma atitude diferente em abordar e resolver
os problemas sistemáticos e estruturais do continente. Caso contrário, os
problemas apenas serão procrastinados. Devemos ser corresponsáveis e não olhar
para as nações africanas com superioridade ou desejo de supremacia. A ajuda é
útil, mas o desafio é a informação, a primeira forma de solidariedade.
¨
A paz esteja convosco! Porém, a guerra chegou de novo.
Por Castor Bartolomé Ruiz
"Pensarmos
uma paz desarmada e desarmante, nas palavras do papa Leão XIV, exige uma
confrontação pública que desconstrua a legitimidade dos argumentos da cultura
belicista. Como sempre, os interesses bélicos estão associados à hegemonia do
poder de determinados sujeitos históricos muito poderosos. Por sua vez, essa
hegemonia não é absoluta, pode ser contestada sempre e quando se consiga
arquitetar uma pressão social, pública ou popular suficiente para deslegitimar
a loucura da cultura bélica. A cultura bélica nos conduz diretamente para
o abismo da morte e destruição. Neste contexto se aplica
a metáfora benjaminiana de que, para sobrevivermos, há que puxar o
freio da história que nos conduz à catástrofe".
<><>
Eis o artigo.
As
primeiras palavras do Papa Leão XIV quando saudou
ao povo no dia de sua eleição foram “A Paz esteja
convosco”.
Estas são as palavras do Ressuscitado aos discípulos que estavam
encerrados com medo. Nestas primeiras palavras, o Papa Leão XIV quis
mostrar uma espécie de preocupação primordial de nosso contexto histórico,
assim como indicar que esse anúncio do Ressuscitado sobre a Paz tem um alcance
ético e político em todos os tempos. O Papa Leão XIV é ciente de que
sua figura institucional representa um referente ético e simbólico na
conjuntura internacional. Sua preocupação pela paz (e a guerra) resultou ser um
sinal de nossos tempos. Talvez por isso decidiu reforçar o sentido dessa paz,
qualificando-a de uma “paz desarmada e desarmante”.
Pouco
depois de sua eleição como papa, estourou uma nova guerra, agora
entre Israel e Irã.
É muito provável que dada sua já larga experiência em vários contextos
internacionais, o Papa Leão XIV tenha consigo uma sensibilidade muito
especial para a “cultura do belicismo” que se está instalando em nossos tempos.
Por isso, ao assumir essa nova e singular responsabilidade tenha feito da luta
pela Paz um horizonte de seu papado. Seja como for, o fato é que a voz do
Papa Leão XIV pela paz está soando no contexto internacional quase
como um grito isolado e uma voz dissonante. Mas, por isso mesmo está postura
resulta muito significativa, já que questiona a legitimidade da guerra contra Irã
por parte de Israel.
A União Europeia, Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália e ad
latere pronunciam-se legitimando a agressão como um ato de defesa
legítima. Eis porque as palavras do Papa Leão XIV sobre a Paz, assim
como sua posição de isolamento internacional na crítica à guerra contra Irã,
representam um referente ético e também político para nossos tempos, como foi o
posicionamento do papa Francisco sobre ecologia, migração, etc.
O
contexto belicista parece se expandir numa estratégia de imposição da guerra como
dispositivo biopolítico para gestão da ordem social mundial. Estamos
imersos numa guerra da Rússia contra Ucrânia, que a Rússia não reconhece
como guerra, mas denomina de “operação especial”. Estamos sendo testemunhas ao
vivo de uma tragédia humanitária do Estado de Israel
contra a população de Gaza, com objetivos que se assemelham ao extermínio
deliberado para poder ocupar totalmente seu território. Há um conflito latente
e explícito entre Paquistão e Índia na
disputada região de Cachemira, que no mês de junho deflagrou novos
combates bélicos com disparos de misseis do Paquistão derrubando aviões da
Índia, numa escala belicista que, mais uma vez, foi contida por negociações. Há
uma guerra encravada em Sudão do Sul que está sangrando milhares
inocentes, com apoio das grandes potências em cada lado. Continua a guerra
dentro de Líbia entre facções militares, que representam interesses
geopolíticos das grandes potencias. Continua a guerra em Síria, agora entre facções
e grupos étnicos diferentes, sempre com presença apoios das grandes potências.
Entre outros vários conflitos bélicos, porém o dia 13 de junho
passado, Israel atacou Irã desencadeando uma nova guerra,
de proporções ainda imprevisíveis.
Cada um
destes conflitos têm suas motivações singulares. Porém todos eles são
alimentados por várias dinâmicas expansionistas do belicismo, que por sua vez
estão inoculando a cultura belicista como um valor natural e necessário da “realpolitik”
de nossos tempos. Para construir uma cultura da paz, há que, primeiramente
conhecer e desconstruir os argumentos que legitimam socialmente a cultura
belicista. Vejamos.
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1. Estratégia belicista dos movimentos autoritários
Uma
primeira dinâmica ou estratégia da cultura belicista está sendo inoculada
através do crescimento dos modelos políticos nacionalistas e xenófobos que
propagam a tese de que a essência da política consiste na eliminação do
inimigo. Esse inimigo pode ser o estrangeiro, o migrante, o morador de
periferias, os pobres, negros ou etnias diversas, em cada país se escolhe um
perfil de inimigo que deve ser combatido de modo belicista transformando a
política num ato de força. A fabricação da política como uma relação entre amigo
– inimigo é oriunda de Carl Schmitt (1888-1985) grande
inspirador dos movimentos fascistas e do nazismo nas
primeiras décadas do século XX. O que define a estes movimentos políticos
xenófobos é que arquitetam um projeto altamente belicista de provocação e
expansão dos conflitos como estratégia principal para conquistar o poder.
Já
sofremos, tragicamente, algumas consequências da hegemonia dos fascismos e do
nazismo na primeira metade do século XX. Agora estes movimentos retornaram
travestidos de novos discursos e estão numa ascensão preocupante na maioria dos
países. Estes movimentos políticos estão inflamando diariamente as
subjetividades massificadas com os argumentos de uma cultura belicista que vai
contaminando as massas e as instituições ao ponto de torna-lo aceitável e
crível. A cultura belicista é inerente à estratégia de poder dos movimentos
autoritários.
>>>
2. Estratégia do belicismo expansionista
Há uma
segunda dinâmica belicista que se está instalando em nossos tempos, ela advém
do modelo expansionista de fronteiras que as grandes potências estão adotando.
Depois da II Guerra Mundial chegou-se a uma espécie de “paz das
fronteiras”. Os tratados de paz após a II Guerra Mundial parecia que tinham
deixado as fronteiras territoriais claramente delimitadas e pacificadas, de tal
modo que essa delimitação de fronteiras parecia um limite intransponível para
novos conflitos bélicos internacionais.
O
laboratório bélico contemporâneo para expansão impune das fronteiras se
encontra no Estado de Israel. Apoiado no legítimo direito de defesa a
existir como Estado, Israel aproveitou a denominada “guerra dos seis
dias” para invadir e anexar-se as Colinas do Golan (Síria) e também
ocupou o Estado Palestino, nos seus dois territórios
Cisjordânia – Gaza e Jerusalém Oriental. Ainda que Israel tenha sido condenado
enfaticamente por diferentes resoluções da ONU deslegitimando qualquer direito
a ocupar estes territórios, o Estado de Israel, apoiado em sua força militar e
dos aliados, manteve uma política de expulsão dos palestinos de seus
territórios e a ocupação constante deles por novos colonos judeus.
Gaza
foi deixado como o único território sob controle político dos palestinos, por
sua alta densidade populacional. A partir do ato de violência bárbara e
injustificável que Hamas cometeu contra pessoas inocentes
em Israel, o governo de Benjamin Netanyahu decidiu
aproveitar a oportunidade para produzir uma estratégia de ataque de modo
indiscriminado à população de Gaza, com deslocamentos forçados sob
pretexto de combater ao Hamas, submetendo a milhões de habitantes a uma
estratégia de sofrimentos
horríveis (fome, doenças, bombardeios, assassinatos...) e por fim a uma
morte lenta que se configura como um genocídio estrategicamente desenhado para
ocupar o território.
O
peculiar deste modelo expansionista do Estado de Israel é que, a
pesar de todas as condenações políticas e jurídicas internacionais, ele avança
como uma estratégia vitoriosa. Por este motivo, esse modelo expansionista sobre
fronteiras de outros países, parece agora funcionar como um laboratório
experimental para outras estratégias belicistas. Assim, o governo de
Putin, Rússia, amparado em suas próprias razões e estratégias de poder, tomou a
decisão de expandir suas fronteiras sobre Ucrânia, anexando-se diferentes
territórios desta nação. Mas, a dinâmica expansionista também está sendo
implantada pelo governo Trump, EEUU. Não é um acaso, nem tampouco
mero exibicionismo chulesco o anúncio de Trump de anexar-se a
Groenlândia por
considera-lo um território estratégico. Também não é uma mera encenação
midiática a pretensão de anexar-se Canadá como novo Estado dos
Estados Unidos. Inclusive essa pretensão expansionista se manifestou ao ameaçar
o Panamá com invadir o Canal e tomá-lo como território americano.
Ainda,
esta dinâmica do expansionismo também está sendo implementada por China,
que utilizando-se de seu grande poder econômico e militar está expandindo suas
linhas de fronteira pelas águas do Pacífico Sul, ocupando ilhotas e
inclusive fabricando ilhas artificiais entorno das quais reclama os direitos de
soberania de 200 milhas marítimas. Desse modo China está conseguindo
expandir suas fronteiras por milhares de quilômetros no Pacífico Sul, até
colidir e invadir áreas de fronteira marítima de outros países
como Filipinas ou Vietnã, com os quais há tensões bélicas na
área.
Esta
geopolítica expansionista está promovendo uma nova cultura belicista em grande
escala, porque está operativo um novo paradigma de imperialismo
expansionista daquele que tem o maior poder bélico. Ainda no marco deste
paradigma bélico expansionista cabe destacar a utilização da doutrina do
“ataque preventivo” como argumento legítimo para promover uma guerra
preventivamente contra alguém, argumentando que é um direito se defender
preventivamente de alguém que ainda não atacou, mas poderá atacar no futuro.
Esse
foi o argumento utilizado pelo governo de Benjamin Netanyahu para
legitimar o ataque a Irã iniciando uma nova guerra de grandes
proporções e de resultados imprevisíveis. Se a doutrina bélica do “ataque
preventivo” fosse aceita, explicita ou implicitamente, significará que as
relações internacionais se transformarão num “bellum omnium contra omnes”
(guerra de todos contra todos), que traria à luz a necessidade
do Leviatã como modelo político absolutista de Hobbes ou
confirmaria as teses de Carl Schmitt de que a política é sempre uma
relação bélica. Se for aceita a tese da legitimidade do ataque preventivo,
qualquer pais poderá aduzir ou inventar um motivo para considerar a um outro um
perigo potencial e com esse argumento atacá-lo militarmente. A rigor, o direito
do ataque preventivo sempre será o direito do mais forte sobre os mais débeis,
o direito da força sobre a justiça.
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3. A guerra como dispositivo biopolítico de governo da ordem social-mundial
Uma
terceira dinâmica que está fincando as raízes de uma cultura belicista em
nossos tempos deriva do papel que a guerra tem adquirido em nossa
contemporaneidade. As guerras clássicas eram guerras entre Estados e
havia uma declaração formal de guerra que por sua vez visava a derrota total do
outro Estado. As dezenas de guerras contemporâneas, depois da guerra do
Vietnã, não houve em nenhuma delas uma declaração formal de guerra de um Estado
contra outro. As guerras atuais se realizam a partir do paradigma de manutenção
da “ordem mundial”.
O
conceito de ordem mundial foi assimilado ao conceito de ordem social,
considerando a ordem mundial uma nova ordem social-mundial na qual há uma
distribuição organizada de fluxo de capitais, matérias primas, mercadorias
e produtos através dos quais se produz uma circulação direcionada das riquezas
mundiais para determinados centros que as concentram, enquanto o resto do mundo
funciona como uma espécie de fontes de abastecimento. Esse paradigma da ordem
social-mundial substituiu ao antigo colonialismo dos séculos passados
por um novo modelo de extração e concentração de riqueza em escala mundial. A
manutenção da ordem social-mundial dentro de um equilíbrio de forças é
essencial para essa nova concentração de riquezas do capitalismo
financeiro.
Nesse
paradigma da ordem social-mundial, a guerra funciona como se fosse
um dispositivo de policiamento do mundo, ou seja, da ordem
social-mundial. Agora, a guerra não pretende destruir totalmente ao inimigo e
suas riquezas, pois isso prejudicaria o próprio comercio mundial e seus fluxos
de riqueza. A guerra tem uma nova funcionalidade, qual seja a de reposicionar a
países ou governos dissonantes da ordem social mundial dentro dos parâmetros
funcionais desenhados para eles nessa racionalidade da ordem. Guerras que
aconteceram como as
de Líbia, Síria, Iraque, Kuwait, Iugoslávia, Ucrânia e
agora Irã realizam-se dentro da lógica de manter a influência o
controle dentro da ordem mundial dessas áreas que resultaram díscolas por
diferentes motivos. A guerra tornou-se um
dispositivo biopolítico de controle e gestão de populações, similar ao que a
polícia representa para a ordem social de um Estado. Desse modo, vemos
proliferar as guerras em espaços sociais contidos onde se conflagram as grandes
potencias e interesses de modo limitado, evitando expandir a guerra de forma
generalizada, que prejudicaria o fluxo das riquezas da ordem social mundial.
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4. O complexo industrial militar e a cultura bélica
Uma
quarta dinâmica que está insuflando constantemente o surgimento de novos
conflitos bélicos em nosso tempo é a já conhecido “complexo industrial bélico”
ou indústria armamentista. Desde a denominada Primeira Guerra
Mundial (1914-1919) vimos surgir um poder bélico interno e autônomo dos
próprios Estados. Esse poderio bélico está constituído pelas grandes empresas e
corporações fabricantes de armamentos. A partir da Primeira Guerra Mundial a
produção de armamentos deixou de ser um monopólio do Estado e passou,
paulatinamente, a ser um negócio de particulares que montavam diferentes
empresas especializadas em armamentos para abastecer os Estados que os
demandam.
A
privatização da produção do armamento transferiu também para as corporações que
o fabricam um poder político acorde com o poder econômico que concentram.
O poder econômico das corporações do armamento supera amplamente o
nosso conhecimento e até a nossa compreensão, pois esse poder pertence aos “arcana
imperi” ou segredo de Estado. Concomitantemente, a influência política e o
poder de decisão dessas corporações na produção dos conflitos bélicos
contemporâneos permanece sempre como uma sombra indecifrável. Sabemos que as
ações dessas companhias sobem fortemente de valor quando há uma nova guerra e
que perdem valor quando há grandes períodos de paz. Ou seja, os acionistas
das corporações bélicas ficam muito insatisfeitos quando há períodos
prolongados de paz em que não se gasta o armamento estocado e consequentemente
as empresas não têm benefícios. O poder econômico da indústria armamentista nos
principais países produtores de armamento chega a ter uma influência decisiva
no PIB do país. Isso significa que para que a roda da economia do
pais funcione bem, é importante que a indústria armamentista tenha grandes
benefícios, o que por sua vez significa que sempre deve haver guerras ativas
suficientes que permitam escoar o armamento produzido. Este perverso circuito
entre os lucros do capital na indústria do
armamento e
a necessidade das guerras, é mais um fator que produz e alimenta a cultura
belicista de nosso tempo.
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5. A nova guerra fria
Uma
quinta dinâmica que está impulsionando a cultura bélica de nosso
tempo é a nova “carreira armamentista” que se tem desencadeado em diferentes
latitudes do planeta. A nova carreira armamentista é quase que o resultado dos
fatores bélicos anteriores. Muitos países, como ocorre com todos os países
da União Europeia, decidiram aumentar seus
orçamentos para rearme militar em grande escala prevendo já uma guerra
de maiores dimensões. Países que durante décadas mantiveram uma tradição
pacifista e consideraram o rearme militar um perigo potencial que estimula o
surgimento das guerras, agora estão mudando para se alinhar num projeto de
rearme em grande escala. Esta dinâmica parece estar lançando aos
diferentes países e blocos regionais a uma espécie de nova carreira
armamentista, que por sua vez sempre tem resultados imprevisíveis. Na melhor
das hipóteses, esta cultura belicista que se está enquistando em nosso tempo
vai nos conduzir para uma nova guerra fria, com todas as consequências. E na
pior das hipóteses, a loucura de rearme pode provocar um enfrentamento bélico
em grande escala de consequências absolutamente imprevisíveis.
Pensarmos
uma paz desarmada e desarmante, nas palavras do papa Leão XIV, exige uma
confrontação pública que desconstrua a legitimidade dos argumentos da cultura
belicista. Como sempre, os interesses bélicos estão associados à hegemonia do
poder de determinados sujeitos históricos muito poderosos. Por sua vez, essa
hegemonia não é absoluta, pode ser contestada sempre e quando se consiga
arquitetar uma pressão social, pública ou popular suficiente para deslegitimar
a loucura da cultura bélica. A cultura bélica nos conduz diretamente para
o abismo da morte e destruição. Neste contexto se aplica
a metáfora benjaminiana de que, para sobrevivermos, há que puxar o
freio da história que nos conduz à catástrofe.
Fonte:
Entrevista de Giacomo Galeazzi, em La Stampa/IHU

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