Herbert
Salles: Economia digital no Oriente Médio
O
avanço tecnológico na região traz uma série de desafios, entre eles o uso
dessas inovações para fins militares e de repressão. Sem o apoio da China,
os países árabes conseguiriam avançar em suas políticas públicas rumo a uma
economia digital plena?
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Economia digital árabe: nova matriz para além do petróleo
Os países árabes sempre foram
vistos como grandes produtores de petróleo, não por acaso, já que representam
mais de 60% da produção mundial. Mesmo que há décadas o Oriente Médio é
conhecido pela sua alta capacidade de produção petrolífera, atualmente, os
países da região vislumbram oportunidades em outro cenário, a economia
digital.
Ser o
Novo Vale do Silício é um mantra ecoado por diversas lideranças no Oriente
Médio e o projeto está bem avançado com diversos eventos de tecnologia que
atraem investidores em inovação para países como Arábia Saudita, que criou a
Autoridade Saudita de Dados e IA em 2019 e o Qatar, que tem uma Agenda Digital
Nacional que norteia o desenvolvimento da economia digital do país.
O
investimento massivo em telecomunicações é empregado por países da região, os
Emirados Árabes Unidos avançam em pesquisas para 6G, a Arábia Saudita já possui
uma taxa de 99% de penetração de internet e na capital a cobertura 5G está
próxima de 95%. O Qatar também investe em pesquisas para 6G e já ocupa o
primeiro lugar no mundo em velocidade de internet móvel em uma penetração de
internet de 99%.
Em
termos de inovação, o Qatar vem se destacando, ainda, no investimento em
tecnologias quânticas que são fundamentais nas pesquisas acadêmicas para novos
tratamentos, descobertas de novos medicamentos e nos negócios, auxilia em
logística, desenvolvimento de softwares e gestão financeira. O
governo da Arábia Saudita trouxe o conceito de “Cloud First” para todas
as suas rotinas e criou uma Zona Econômica de Computação em Nuvem para se
tornar líder no segmento.
Tanto o
Qatar quanto a Arábia Saudita possuem marcos para 2030, o primeiro busca
fortalecer sua infraestrutura digital para se tornar um polo tecnológico e
possui uma estratégia digital em seis pilares: hiperconectividade,
hipercomputação, hiperautomação, inovação digital, economia digital e
infraestrutura digital. A Arábia Saudita, por sua vez, visa diversificar sua
economia para diminuir a dependência do petróleo, tendo a economia digital como
norte em uma estratégia de posicionar o país como líder global em Inteligência
Artificial até 2030.
Os
Emirados Árabes Unidos também apostam em IA e a estimativa é que até 2030 13%
do PIB venha dessa tecnologia, movimentando quase US$ 100 bilhões. É mais um
caso de um país que visa reduzir sua dependência do petróleo para os próximos
anos, assim, estipularam objetivos estratégicos que perpassam o treinamento e
atração de profissionais de tecnologia, além de criar um ecossistema capaz de
ampliar a capacidade de desenvolvimento de IA.
Há um
claro esforço desses países na busca de um crescimento econômico a partir de
uma matriz econômica digital sob a liderança estatal e na criação de cidades
inteligentes, zonas de economia digital e espaços de empreendedorismo,
colocando-os em uma posição estratégica na região. Apesar da atração de
investimento privado, são políticas públicas que solidificam a economia digital
com objetivos e marcos claros.
É
visível, ainda, o esforço desses países em ter uma matriz que não esteja
dependente da algoritmização na oferta de trabalho, mas, por outro lado, não
estão criando barreiras para o uso da IA como possível substituta de
trabalhadores. Isso quer dizer que, por mais que haja um foco em treinar e
desenvolver profissionais para atuação em IA, muitas dessas tecnologias podem
substituir o ofício de diferentes trabalhadores, podendo causar impactos
sociais relevantes.
O
avanço tecnológico nessa região traz consigo diversos problemas, dentre eles, o
seu uso para fins militares e de repressão. Obviamente, os algoritmos e
inteligências artificiais podem ser vetores para vigilância e controle de
cidadãos, fim da privacidade e arrefecimento de direitos. Assim, a economia
digital pode ser utilizada como fortalecimento de governos, perseguição de
opositores e até uma arma poderosa em guerras.
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Segurança: a startup de guerra
Há, por
todos eles, uma grande preocupação com a cibersegurança. A Arábia Saudita criou
Autoridade Nacional de Segurança Cibernética e os Emirados Árabes Unidos têm a
perspectiva de investimento nessa área acima de US$ 4 bilhões. Tal preocupação
tem razões históricas de conflitos no Oriente Médio, inclusive, o mais recente
múltiplo ataque de Israel contra Líbano, Síria, Iêmen e Irã, além do genocídio
em Gaza. Nota-se, assim, que a segurança é um tema importante para os países da
região, principalmente, pelo uso de novas tecnologias para fins de conflito
tais como, drones, armas autônomas e guerra cibernética.
É
Israel, inclusive, que tem um posicionamento de se tornar uma “nação startup”
e utiliza muito de novas tecnologias para segurança. Na prática, Israel vem
investindo para potencializar seu arsenal e ampliar sua política colonialista
na região. Suas armas algorítmicas já foram utilizadas em Gaza para registrar e
monitorar palestinos a partir do cruzamento de dados.
Assim,
Israel protagoniza o uso de algoritmos para destruição e armamento de guerra
que já vem fazendo vítimas há algum tempo. Tal uso tecnológico é subestimado
por diferentes atores que analisam os conflitos encabeçados por Israel e é
ignorado por muitos governos, que estão inertes ao avanço de novas tecnologias
de alta capacidade de destruição.
Israel
tem uma unidade de inteligência especializada na segurança cibernética para
fins militares, a Unidade 8200. A “agência secreta”, segundo a Reuters, pode
ser a responsável pela operação que explodiu pagers do
Hezbollah no Líbano, em 2024, bem como os operadores dos sistemas Lavender e Gospel,
utilizados nas mortes de milhares de palestinos.
A
economia digital para fins de guerra, incorporada por Israel, pode ter tido
financiamento de Big Techs, como é o caso do Projeto Nimbus,
iniciado em 2021 e que tem Google e Amazon como parceiros. No ano de lançamento
do projeto, centenas de funcionários das duas empresas assinaram uma carta
denunciando o uso tecnológico para coleta de dados e vigilância de
palestinos.
De
acordo com a Associated Press, Israel também utiliza tecnologias da Microsoft e
da OpenIA em ataques à Gaza em 2024 e faz uso dos centros de dados da Cisco e
Dell. Em 2025, a Nvidia anunciou um investimento de US$ 500 milhões em pesquisa
com foco em IA no país. Assim, a “nação startup” que já teve
subsídio tecnológico de Big Techs para cometer crimes contra a
humanidade, ao utilizar Inteligência Artificial de forma sistemática para
destruir Gaza, atrai investidores e pesquisadores para desenvolver novas tecnologias
que podem (e serão) utilizadas pelo seu exército.
Diante
disso, Israel se aproxima de uma característica de uma “startup de
guerra” em que seu esforço de desenvolvimento tecnológico é relacionado com a
possibilidade de uso para fins de conflito com países da região, contrapondo
seus vizinhos que constroem zonas tecnológicas para desenvolvimento econômico,
pleiteando um futuro em que não haja tanta dependência do petróleo.
O
caráter não-belicista dos árabes, quanto ao uso da economia digital,
possibilita a aproximação com outros países e parceiros, como a China.
Principal parceira comercial do Irã, Iraque e Kuwait, a China busca estreitar
relações comerciais com outros países da região, principalmente, com seu
programa Cinturão e Rota, ou também conhecido como Nova Rota da Seda, para
construir uma via comercial entre Ásia e Europa.
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Nova Rota da Seda: a importância dos países árabes
O
Cinturão e Rota é uma inciativa lançada em 2013 pelo presidente Xi Jinping,
cujo foco está na construção de um corredor comercial que conecta a China com a
Europa. Seu planejamento e coordenação foram liderados pelo Estado e teve
mecanismos de apoio financeiros, cambiais e contou com programas de auxílio e
fomento para empresas chinesas. Ao longo da sua trajetória, a Nova Rota da Seda
incorporou países africanos e latinos, e com a volta de Trump, alguns países
estão deixando o cinturão por adesão ideológica, como no caso italiano ou por
pressão da Casa Branca, como fez o Panamá.
Para
além da forte adesão dos países árabes e alguns vizinhos, é notada uma
ausência: Israel. Se Irã, Iraque, Kuwait, Qatar, Arábia Saudita, Emirados
Árabes Unidos, Bahrein, Iêmen, Líbano e Afeganistão estão entre os que estão
contemplados no cinturão, Israel se afasta pelo alinhamento, fidelidade e
submissão aos Estados Unidos.
Protagonista
do projeto que busca criar um corredor entre Índia e Europa, Israel se
posiciona como uma barreira no avanço chinês. O problema é, justamente, as
ações militares na região, como ocorre em Gaza e, mais recentemente, no Irã.
Tal sanha por destruição faz com que os avanços para a construção do eixo
comercial atrasem e venham ter a perda de interesse de aliados
árabes.
Nesse
cenário, Israel, empenhado em destruir vizinhos e empilhar corpos em Gaza,
colabora de forma indireta com a adesão de vizinhos ao projeto chinês enquanto
se isola em seus interesses sionistas apadrinhado por Trump. Ou seja,
essa startup de guerra, cujo CEO é Netanyahu, permite que
países árabes avancem em uma economia digital que traga desenvolvimento local,
bem como, construa uma matriz econômica para além do petróleo.
A Nova
Rota da Seda tem diversos canais de financiamento entre bancos públicos e de
desenvolvimento. Dentre eles está o NDB, New Development Bank, conhecido como
Banco do BRICS e presidido por Dilma Rousseff, que tem compromisso de investir
mais de US$ 150 bilhões em projetos nos setores de energia limpa,
desenvolvimento urbano, eficiência ambiental e infraestrutura
digital.
O
cinturão, ainda, irá investir em inteligência artificial, computação
quântica, big data, nuvem e fomentar a construção de cidades
inteligentes, como as já planejadas pelos governos dos Emirados Árabes Unidos e
Qatar. Essas iniciativas estão contempladas no que é chamado de Rota da Seda
Digital, lançado em 2017 pelo governo chinês e em 2024 foi reafirmado em um
fórum de desenvolvimento digital no país, em que foram debatidos como oferecer
oportunidades de cooperação do sul global para o desenvolvimento da internet.
Em
2018, a Huawei foi a responsável pelo desenvolvimento da tecnologia 5G no Qatar
e coopera na construção do primeiro projeto 5G LAN no Oriente Médio, que
permite conexão web de alta capacidade e pode ser utilizada em
empresas de diferentes tamanhos e setores, desde startups até
hospitais e aeroportos, por exemplo.
Assim,
o Cinturão e a Rota avança na construção de parceiros comerciais relevantes
para o desenvolvimento de uma economia digital na Ásia capaz de contrapor a
hegemonia ocidental. Ainda, pode servir de mercado para a aquisição de produtos
e serviços chineses, ampliando a influência comercial e geopolítica da China no
Oriente Médio.
Mesmo
que Israel ostente o posto de “país com maior número de startups per
capta do mundo”, o Cinturão Chinês pode ser um propulsor de inovação e
desenvolvimento tecnológico com a colaboração de países vizinhos. Aos poucos,
Israel assiste uma matriz de economia digital emergindo ao lado enquanto se
interessa em estar imerso em sua máquina de guerra.
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O futuro da economia digital árabe
Os
países árabes avançariam em suas políticas públicas para uma economia digital
plena sem a ajuda da China? A resposta é um sonoro sim. Não há dúvidas que a
busca por alternativas ao petróleo para os próximos anos é uma decisão
acertada, por outro lado, o Cinturão e Rota acelerou investimentos e trouxe
novos parceiros para pavimentar a indústria digital no Oriente
Médio.
O
investimento estatal chinês colabora com o desenvolvimento de novos produtos e
serviços, bem como, é capaz de construir cidades e complexos inteligentes que
podem atrair empresas de tecnologias e profissionais. Há, ainda, a estratégia
de treinar e educar pessoas para o trabalho com tecnologia, o que pode ser
fundamental para o atingimento de metas para os próximos anos.
Há
alguns pontos de atenção a serem considerados, o primeiro é o impacto ambiental
provocado pela economia digital, já que o consumo de matérias-primas é alto
para dispositivos pessoais como smartphones e
computadores. Um relatório produzido pela ONU
aponta que houve aumento de 30% de lixo digital entre 2010 e 2022. Outro dado
preocupante é o aumento na emissão de CO2, podendo chegar a até 3% das emissões
globais.
A
demanda por minerais críticos aumentou drasticamente e as garantias para acesso
a eles enfrentam desafios geopolíticos por conta de mercados altamente
concentrados. Ainda, a extração de minérios pode causar impactos ambientes
significativos e afetar comunidades locais.
De
acordo com a ONU, nesse cenário, é necessária a criação de uma economia digital
circular e mais inclusiva, adotando práticas sustentáveis ao longo do ciclo de
vida do produto com a finalidade de reduzir o desperdício e maximizar o uso de
recursos. Além da redução de custos, as empresas podem criar oportunidades de
mercado com negócios mais sustentáveis que tragam benefícios para pessoas e
planeta.
Por
fim, é necessário manter um crescimento econômico digital que não torne o
trabalhador obsoleto, sem que esteja sujeito à algoritmos que gerenciam suas
rotinas ou que seja substituído por inteligências artificiais. O modelo de
algoritmização leva a maior precarização e desigualdade, rompendo possíveis
ciclos de prosperidade.
É
possível afirmar que o Oriente Médio vem se tornando um importante polo de
tecnologia e inovação e irá crescer nos próximos anos pela construção de
políticas públicas e na participação direta no Cinturão e Rota. Isso significa
dizer que a meta de diminuir a dependência econômica do petróleo poderá ser
atingida e ali ser um bloco importante de economia digital.
Fonte:
Le Monde

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