sábado, 28 de junho de 2025

Herbert Salles: Economia digital no Oriente Médio

O avanço tecnológico na região traz uma série de desafios, entre eles o uso dessas inovações para fins militares e de repressão. Sem o apoio da China, os países árabes conseguiriam avançar em suas políticas públicas rumo a uma economia digital plena?

<><> Economia digital árabe: nova matriz para além do petróleo 

 Os países árabes sempre foram vistos como grandes produtores de petróleo, não por acaso, já que representam mais de 60% da produção mundial. Mesmo que há décadas o Oriente Médio é conhecido pela sua alta capacidade de produção petrolífera, atualmente, os países da região vislumbram oportunidades em outro cenário, a economia digital. 

Ser o Novo Vale do Silício é um mantra ecoado por diversas lideranças no Oriente Médio e o projeto está bem avançado com diversos eventos de tecnologia que atraem investidores em inovação para países como Arábia Saudita, que criou a Autoridade Saudita de Dados e IA em 2019 e o Qatar, que tem uma Agenda Digital Nacional que norteia o desenvolvimento da economia digital do país. 

O investimento massivo em telecomunicações é empregado por países da região, os Emirados Árabes Unidos avançam em pesquisas para 6G, a Arábia Saudita já possui uma taxa de 99% de penetração de internet e na capital a cobertura 5G está próxima de 95%. O Qatar também investe em pesquisas para 6G e já ocupa o primeiro lugar no mundo em velocidade de internet móvel em uma penetração de internet de 99%.  

Em termos de inovação, o Qatar vem se destacando, ainda, no investimento em tecnologias quânticas que são fundamentais nas pesquisas acadêmicas para novos tratamentos, descobertas de novos medicamentos e nos negócios, auxilia em logística, desenvolvimento de softwares e gestão financeira. O governo da Arábia Saudita trouxe o conceito de “Cloud First” para todas as suas rotinas e criou uma Zona Econômica de Computação em Nuvem para se tornar líder no segmento.    

Tanto o Qatar quanto a Arábia Saudita possuem marcos para 2030, o primeiro busca fortalecer sua infraestrutura digital para se tornar um polo tecnológico e possui uma estratégia digital em seis pilares: hiperconectividade, hipercomputação, hiperautomação, inovação digital, economia digital e infraestrutura digital. A Arábia Saudita, por sua vez, visa diversificar sua economia para diminuir a dependência do petróleo, tendo a economia digital como norte em uma estratégia de posicionar o país como líder global em Inteligência Artificial até 2030.  

Os Emirados Árabes Unidos também apostam em IA e a estimativa é que até 2030 13% do PIB venha dessa tecnologia, movimentando quase US$ 100 bilhões. É mais um caso de um país que visa reduzir sua dependência do petróleo para os próximos anos, assim, estipularam objetivos estratégicos que perpassam o treinamento e atração de profissionais de tecnologia, além de criar um ecossistema capaz de ampliar a capacidade de desenvolvimento de IA.   

Há um claro esforço desses países na busca de um crescimento econômico a partir de uma matriz econômica digital sob a liderança estatal e na criação de cidades inteligentes, zonas de economia digital e espaços de empreendedorismo, colocando-os em uma posição estratégica na região. Apesar da atração de investimento privado, são políticas públicas que solidificam a economia digital com objetivos e marcos claros.  

É visível, ainda, o esforço desses países em ter uma matriz que não esteja dependente da algoritmização na oferta de trabalho, mas, por outro lado, não estão criando barreiras para o uso da IA como possível substituta de trabalhadores. Isso quer dizer que, por mais que haja um foco em treinar e desenvolver profissionais para atuação em IA, muitas dessas tecnologias podem substituir o ofício de diferentes trabalhadores, podendo causar impactos sociais relevantes.   

O avanço tecnológico nessa região traz consigo diversos problemas, dentre eles, o seu uso para fins militares e de repressão. Obviamente, os algoritmos e inteligências artificiais podem ser vetores para vigilância e controle de cidadãos, fim da privacidade e arrefecimento de direitos. Assim, a economia digital pode ser utilizada como fortalecimento de governos, perseguição de opositores e até uma arma poderosa em guerras.  

<><> Segurança: a startup de guerra  

Há, por todos eles, uma grande preocupação com a cibersegurança. A Arábia Saudita criou Autoridade Nacional de Segurança Cibernética e os Emirados Árabes Unidos têm a perspectiva de investimento nessa área acima de US$ 4 bilhões. Tal preocupação tem razões históricas de conflitos no Oriente Médio, inclusive, o mais recente múltiplo ataque de Israel contra Líbano, Síria, Iêmen e Irã, além do genocídio em Gaza. Nota-se, assim, que a segurança é um tema importante para os países da região, principalmente, pelo uso de novas tecnologias para fins de conflito tais como, drones, armas autônomas e guerra cibernética.  

É Israel, inclusive, que tem um posicionamento de se tornar uma “nação startup” e utiliza muito de novas tecnologias para segurança. Na prática, Israel vem investindo para potencializar seu arsenal e ampliar sua política colonialista na região. Suas armas algorítmicas já foram utilizadas em Gaza para registrar e monitorar palestinos a partir do cruzamento de dados.  

Assim, Israel protagoniza o uso de algoritmos para destruição e armamento de guerra que já vem fazendo vítimas há algum tempo. Tal uso tecnológico é subestimado por diferentes atores que analisam os conflitos encabeçados por Israel e é ignorado por muitos governos, que estão inertes ao avanço de novas tecnologias de alta capacidade de destruição.  

Israel tem uma unidade de inteligência especializada na segurança cibernética para fins militares, a Unidade 8200. A “agência secreta”, segundo a Reuters, pode ser a responsável pela operação que explodiu pagers do Hezbollah no Líbano, em 2024, bem como os operadores dos sistemas Lavender e Gospel, utilizados nas mortes de milhares de palestinos.  

A economia digital para fins de guerra, incorporada por Israel, pode ter tido financiamento de Big Techs, como é o caso do Projeto Nimbus, iniciado em 2021 e que tem Google e Amazon como parceiros. No ano de lançamento do projeto, centenas de funcionários das duas empresas assinaram uma carta denunciando o uso tecnológico para coleta de dados e vigilância de palestinos.  

De acordo com a Associated Press, Israel também utiliza tecnologias da Microsoft e da OpenIA em ataques à Gaza em 2024 e faz uso dos centros de dados da Cisco e Dell. Em 2025, a Nvidia anunciou um investimento de US$ 500 milhões em pesquisa com foco em IA no país. Assim, a “nação startup” que já teve subsídio tecnológico de Big Techs para cometer crimes contra a humanidade, ao utilizar Inteligência Artificial de forma sistemática para destruir Gaza, atrai investidores e pesquisadores para desenvolver novas tecnologias que podem (e serão) utilizadas pelo seu exército.   

Diante disso, Israel se aproxima de uma característica de uma “startup de guerra” em que seu esforço de desenvolvimento tecnológico é relacionado com a possibilidade de uso para fins de conflito com países da região, contrapondo seus vizinhos que constroem zonas tecnológicas para desenvolvimento econômico, pleiteando um futuro em que não haja tanta dependência do petróleo. 

O caráter não-belicista dos árabes, quanto ao uso da economia digital, possibilita a aproximação com outros países e parceiros, como a China. Principal parceira comercial do Irã, Iraque e Kuwait, a China busca estreitar relações comerciais com outros países da região, principalmente, com seu programa Cinturão e Rota, ou também conhecido como Nova Rota da Seda, para construir uma via comercial entre Ásia e Europa.  

<><> Nova Rota da Seda: a importância dos países árabes 

O Cinturão e Rota é uma inciativa lançada em 2013 pelo presidente Xi Jinping, cujo foco está na construção de um corredor comercial que conecta a China com a Europa. Seu planejamento e coordenação foram liderados pelo Estado e teve mecanismos de apoio financeiros, cambiais e contou com programas de auxílio e fomento para empresas chinesas. Ao longo da sua trajetória, a Nova Rota da Seda incorporou países africanos e latinos, e com a volta de Trump, alguns países estão deixando o cinturão por adesão ideológica, como no caso italiano ou por pressão da Casa Branca, como fez o Panamá.  

Para além da forte adesão dos países árabes e alguns vizinhos, é notada uma ausência: Israel. Se Irã, Iraque, Kuwait, Qatar, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Iêmen, Líbano e Afeganistão estão entre os que estão contemplados no cinturão, Israel se afasta pelo alinhamento, fidelidade e submissão aos Estados Unidos.  

Protagonista do projeto que busca criar um corredor entre Índia e Europa, Israel se posiciona como uma barreira no avanço chinês. O problema é, justamente, as ações militares na região, como ocorre em Gaza e, mais recentemente, no Irã. Tal sanha por destruição faz com que os avanços para a construção do eixo comercial atrasem e venham ter a perda de interesse de aliados árabes.  

Nesse cenário, Israel, empenhado em destruir vizinhos e empilhar corpos em Gaza, colabora de forma indireta com a adesão de vizinhos ao projeto chinês enquanto se isola em seus interesses sionistas apadrinhado por Trump. Ou seja, essa startup de guerra, cujo CEO é Netanyahu, permite que países árabes avancem em uma economia digital que traga desenvolvimento local, bem como, construa uma matriz econômica para além do petróleo. 

A Nova Rota da Seda tem diversos canais de financiamento entre bancos públicos e de desenvolvimento. Dentre eles está o NDB, New Development Bank, conhecido como Banco do BRICS e presidido por Dilma Rousseff, que tem compromisso de investir mais de US$ 150 bilhões em projetos nos setores de energia limpa, desenvolvimento urbano, eficiência ambiental e infraestrutura digital.  

O cinturão, ainda, irá investir em inteligência artificial, computação quântica, big data, nuvem e fomentar a construção de cidades inteligentes, como as já planejadas pelos governos dos Emirados Árabes Unidos e Qatar. Essas iniciativas estão contempladas no que é chamado de Rota da Seda Digital, lançado em 2017 pelo governo chinês e em 2024 foi reafirmado em um fórum de desenvolvimento digital no país, em que foram debatidos como oferecer oportunidades de cooperação do sul global para o desenvolvimento da internet.  

Em 2018, a Huawei foi a responsável pelo desenvolvimento da tecnologia 5G no Qatar e coopera na construção do primeiro projeto 5G LAN no Oriente Médio, que permite conexão web de alta capacidade e pode ser utilizada em empresas de diferentes tamanhos e setores, desde startups até hospitais e aeroportos, por exemplo. 

Assim, o Cinturão e a Rota avança na construção de parceiros comerciais relevantes para o desenvolvimento de uma economia digital na Ásia capaz de contrapor a hegemonia ocidental. Ainda, pode servir de mercado para a aquisição de produtos e serviços chineses, ampliando a influência comercial e geopolítica da China no Oriente Médio.  

Mesmo que Israel ostente o posto de “país com maior número de startups per capta do mundo”, o Cinturão Chinês pode ser um propulsor de inovação e desenvolvimento tecnológico com a colaboração de países vizinhos. Aos poucos, Israel assiste uma matriz de economia digital emergindo ao lado enquanto se interessa em estar imerso em sua máquina de guerra.   

<><> O futuro da economia digital árabe 

Os países árabes avançariam em suas políticas públicas para uma economia digital plena sem a ajuda da China? A resposta é um sonoro sim. Não há dúvidas que a busca por alternativas ao petróleo para os próximos anos é uma decisão acertada, por outro lado, o Cinturão e Rota acelerou investimentos e trouxe novos parceiros para pavimentar a indústria digital no Oriente Médio.   

O investimento estatal chinês colabora com o desenvolvimento de novos produtos e serviços, bem como, é capaz de construir cidades e complexos inteligentes que podem atrair empresas de tecnologias e profissionais. Há, ainda, a estratégia de treinar e educar pessoas para o trabalho com tecnologia, o que pode ser fundamental para o atingimento de metas para os próximos anos.  

Há alguns pontos de atenção a serem considerados, o primeiro é o impacto ambiental provocado pela economia digital, já que o consumo de matérias-primas é alto para dispositivos pessoais como smartphones e computadores. Um relatório produzido pela ONU aponta que houve aumento de 30% de lixo digital entre 2010 e 2022. Outro dado preocupante é o aumento na emissão de CO2, podendo chegar a até 3% das emissões globais.  

A demanda por minerais críticos aumentou drasticamente e as garantias para acesso a eles enfrentam desafios geopolíticos por conta de mercados altamente concentrados. Ainda, a extração de minérios pode causar impactos ambientes significativos e afetar comunidades locais.  

De acordo com a ONU, nesse cenário, é necessária a criação de uma economia digital circular e mais inclusiva, adotando práticas sustentáveis ao longo do ciclo de vida do produto com a finalidade de reduzir o desperdício e maximizar o uso de recursos. Além da redução de custos, as empresas podem criar oportunidades de mercado com negócios mais sustentáveis que tragam benefícios para pessoas e planeta.  

Por fim, é necessário manter um crescimento econômico digital que não torne o trabalhador obsoleto, sem que esteja sujeito à algoritmos que gerenciam suas rotinas ou que seja substituído por inteligências artificiais. O modelo de algoritmização leva a maior precarização e desigualdade, rompendo possíveis ciclos de prosperidade.  

É possível afirmar que o Oriente Médio vem se tornando um importante polo de tecnologia e inovação e irá crescer nos próximos anos pela construção de políticas públicas e na participação direta no Cinturão e Rota. Isso significa dizer que a meta de diminuir a dependência econômica do petróleo poderá ser atingida e ali ser um bloco importante de economia digital.  

 

Fonte: Le Monde

 

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