sábado, 28 de junho de 2025

Israel como laboratório da escalada fascista e a segunda Nakba em Gaza

Em 1948, o êxodo de pelo menos 711 mil árabes palestinos em função da Guerra Árabe-Israelense, que está nas origens do surgimento do Estado de Israel, ocasionou o evento histórico que se convencionou chamar de Nakba, palavra que significa catástrofe ou desastre. Na análise do filósofo húngaro radicado há décadas no Brasil, Peter Pál Pelbart, o que ocorre agora com o genocídio conduzido por Netanyahu em Gaza reedita, de modo ainda mais brutal, esse episódio no Oriente Médio. Esta “é uma segunda Nakba. Num certo sentido, pior do que a anterior”.

Uma das coisas mais chocantes é o fato de que, ao contrário do Holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial, que para a maioria do mundo era desconhecido, hoje vemos em tempo real o massacre “de centenas de crianças, mulheres, idosos, multidões famélicas deambulando à cata de algum alimento e agonizando por falta de cuidado médico. Hoje, quando se vê e se sabe do genocídio em curso, cabe insistir em que a inação, a neutralidade e o silêncio se tornam cumplicidade. É intolerável o que acontece, e ainda mais intolerável testemunhar em silêncio”.

Para Pelbart, Israel se desvela como “um laboratório privilegiado de escalada fascista e expansionista, onde ademais se experimentam novas tecnologias de Inteligência Artificial (IA) no extermínio em massa. Claro que nada disso ocorre sem resistência, mas a voz dissidente é abafada pelo rufar dos tambores da guerra”.

Desde que se aliou à extrema-direita, Netanyahu ajudou a reforçar “todos os traços regressivos que já estavam presentes na sociedade israelense há anos, sobretudo após o 7 de outubro de 2023. O estado de exceção atingiu ainda mais brutalmente a população palestina em Israel e nos territórios ocupados, com incursões, detenções, assassinatos, aumento da truculência policial contra as manifestações e violência contra as dissidências”. O filósofo acrescenta que a Europa não consegue romper com a culpabilidade por ter gestado o Holocausto: hoje, paira o sentimento de que se deve apoiar o governo israelense de modo incondicional, sem qualquer tipo de crítica, que é classificada pela propaganda como antissemita.

Retomando o legado da filosofia de Emmanuel Lévinas, um dos mais importantes pensadores judeus do século XX, Pelbart acentua a importância do primado da ética e da alteridade, que vêm antes da ontologia e do Ser. Quando priorizou a alteridade, Lévinas “ousou desafiar o identitarismo judaico e seu etnocentrismo, ainda que não utilizasse esses termos. O que melhor expressa tal ética da alteridade é o Rosto do Outro, que diz: ‘Não Matarás’. Ora, quando constatamos que a televisão israelense se recusa a transmitir os rostos dos palestinos agonizantes em Gaza, nos quais se leem a fome, a sede, o desespero, a súplica, só podemos concluir que a sociedade israelense está doente e se encontra nas antípodas da ética defendida por Lévinas”.

>>>>> Confira a entrevista.

·        Por que boa parte do mundo se cala diante do genocídio em Gaza ou da sua relativização?

Peter Pál Pelbart – A Europa nunca conseguiu se livrar da culpa por ter sido o palco do Holocausto. Assim, ela se vê obrigada a expiar sua culpa apoiando incondicionalmente o governo de Israel. O receio dos europeus, mas não só, é que qualquer divergência em relação à política israelense seja interpretada como uma atitude antissemita, o que cutucaria velhos monstros que o continente prefere deixar intocados. Já com os Estados Unidos, trata-se de uma aliança estratégica e geopolítica cuja natureza supremacista vai ficando cada dia mais evidente.

Ademais, é grande a influência dos evangélicos fanaticamente defensores de Israel no governo Trump, para quem muçulmanos, islâmicos e palestinos são todos virtualmente terroristas. Mais profundamente, Israel pertence ao Norte, no sentido ideológico, geopolítico, militar, e desfruta de seus privilégios, entre os quais a certeza da impunidade, seja qual for a política de opressão em relação aos palestinos ou de expansionismo em relação aos vizinhos.

·        IHU – O que torna esse genocídio tão peculiar? Esta é uma outra Nakba? Por quê?

Peter Pál Pelbart – Sim, é uma segunda Nakba. Num certo sentido, pior do que a anterior. Eis alguns dados. Em 1947-1948, tratava-se para o nascente Estado de Israel de fazer com que a população palestina abandonasse suas casas, aldeias, cidades a fim de garantir a maioria demográfica judaica no território que lhe era destinado pela partilha. Ao longo dos combates, porém, Israel ampliou substancialmente suas fronteiras, engolindo grandes nacos do que deveria ser o Estado da Palestina. Ao todo, por volta de 750 mil palestinos foram expulsos ou fugiram, transformando-se em refugiados. O número total de mortos foi de 1% da população palestina – e uma proporção equivalente do lado israelense.

Agora, a estimativa é que Israel tenha massacrado 2,5% da população. Se forem contabilizados os soterrados e desaparecidos, a cifra pode chegar ao dobro. Em outros termos, é possível que no fim a cifra de mortos alcance 5% da população palestina – ou seja, cinco vezes mais do que na primeira Nakba. O sofrimento imposto a uma população de mais de dois milhões ao longo de ano e meio de bombardeios, aniquilação das cidades, confinamento, fome, sede, falta completa de medicamentos, evacuação de uma região a outra, destruição de hospitais, escolas, mesquitas talvez supere a tragédia da primeira Nakba.

·        Que aproximações e distanciamentos são adequados para se pensar no Holocausto judeu e no genocídio em Gaza?

Peter Pál Pelbart - Creio que hoje o mais urgente é chamar a atenção para um aspecto nessa comparação. Durante a Segunda Guerra Mundial, o mundo NÃO sabia da existência dos campos de concentração alemães, das câmaras de gás, dos fornos crematórios, das milhões de vítimas dizimadas em escala industrial. Hoje TODOS vemos ao vivo e em cores os massacres de centenas de crianças, mulheres, idosos, multidões famélicas deambulando à cata de algum alimento e agonizando por falta de cuidado médico.

Não se trata, portanto, de quantificar o sofrimento e participar da Olimpíada do Horror para decidir qual povo levará a medalha do mais sofrido. Hoje, quando se vê e se sabe do genocídio em curso, cabe insistir em que a inação, a neutralidade e o silêncio se tornam cumplicidade. É intolerável o que acontece, e ainda mais intolerável testemunhar em silêncio.

·        Como avalia o apoio norte-americano a Israel na condução desse conflito?

Peter Pál Pelbart – É a aliança estratégica e geopolítica do Norte branco contra os “descartáveis” do Sul do mundo. A força bruta como modus operandi. Os Estados Unidos podem reivindicar o Canadá ou a Groenlândia, assim como Israel se sente no direito de invadir Gaza ou anexar a Cisjordânia. É a lei do mais forte.

·        É correto analisar esse conflito dentro do registro das derivações neofascistas pelas quais passam inúmeras democracias no mundo, incluindo EUA e Israel? Por quê?

Peter Pál Pelbart – A Nakba antecede em muito a atual deriva neofascista. Contudo, é inegável que desde que Netanyahu se aliou à extrema-direita, todos os traços regressivos que já estavam presentes na sociedade israelense há anos recrudesceram, sobretudo depois do 7 de outubro de 2023. O estado de exceção atingiu ainda mais brutalmente a população palestina em Israel e nos territórios ocupados, com incursões, detenções, assassinatos, aumento da truculência policial contra manifestações e violência contra as dissidências.

Os ataques frontais contra o sistema judiciário, anteriores ao ataque do Hamas, retornaram com força alguns meses depois, através de táticas de lawfare. Um desejo generalizado de vingança, de punição coletiva, de “solução final” para o problema palestino virou assunto público e se acirrou com a quebra do cessar-fogo em março e a barbárie subsequente. Na verdade, o supremacismo étnico e a fúria bélica tomaram conta de boa parte da população. Mais e mais Israel aparece aos olhos do mundo como um laboratório privilegiado de escalada fascista e expansionista, onde ademais se experimentam novas tecnologias de Inteligência Artificial (IA) no extermínio em massa. Claro que nada disso ocorre sem resistência, mas a voz dissidente é abafada pelo rufar dos tambores da guerra.

·        Críticas à política estatal de Netanyahu em Gaza são rebatidas por alguns setores judaicos como antissemitismo. Por que essa classificação está incorreta?

Peter Pál Pelbart – Israel pretende ser representante dos judeus do mundo todo. E faz crer que ser judeu é equivalente a ser sionista. E que ser sionista é apoiar incondicionalmente o Estado de Israel. Ora, essa equação é um engodo. Nem todo judeu é sionista, nem todo sionista apoia a política atual de Israel, nem todo judeu apoia a política da atual coalizão. Faz parte, porém, da propaganda israelense acusar toda crítica ao governo israelense de antissemita.

É uma maneira de desqualificar os críticos, intimidar os judeus e utilizar a história do antissemitismo para justificar a política do atual governo israelense. Nos últimos meses temos presenciado este paradoxo: manifestações de estudantes judeus nas universidades estadunidenses e alemãs contra os massacres em Gaza e em favor dos palestinos, reprimidas com violência pela polícia local sob a alegação de serem antissemitas.

·        Por outro lado, a campanha israelense em Gaza fomenta o ódio aos judeus, indiscriminadamente. Como analisa a reedição dessa intolerância no contexto atual?

Peter Pál Pelbart – Se Israel pretende falar e agir em nome dos judeus do mundo, deveria saber que seus crimes acabarão respingando sobre os judeus do mundo todo. Parte do antissemitismo deriva dessa associação. Claro, quando ela se compõe com uma tradição antissemita que remonta a séculos, o resultado é o mais inquietante. O combate ao antissemitismo hoje passa pela crítica ativa, feita por judeus em todo o mundo, à escalada fascista israelense. É preciso reativar a tradição crítica, progressista, ética e libertária do que Enzo Traverso chamou de modernidade judaica.

·        Em carta aberta aos judeus, o senhor evoca a ética judaica a partir de Emmanuel Lévinas. Qual é o compromisso da Filosofia frente a esse conflito?

Peter Pál Pelbart – Emmanuel Lévinas é um dos maiores pensadores judeus do século XX. Ele sobreviveu à perseguição nazista e sorveu o melhor da tradição judaica para pensá-la. Em contraposição a Heidegger, que, no entanto, o inspirou parcialmente, sustentou que antes da ontologia vem a ética – antes do Ser, o Outro. Ao priorizar a alteridade, ousou desafiar o identitarismo judaico e seu etnocentrismo, ainda que não utilizasse esses termos. O que melhor expressa tal ética da alteridade é o Rosto do Outro, que diz: “Não Matarás”. Ora, quando constatamos que a televisão israelense se recusa a transmitir os rostos dos palestinos agonizantes em Gaza, nos quais se leem a fome, a sede, o desespero, a súplica, só podemos concluir que a sociedade israelense está doente e se encontra nas antípodas da ética defendida por Lévinas.

A filosofia não pode permanecer indiferente ao que se passa em nosso presente. Seria preciso tornar a epiderme das pessoas mais irritável, diria Foucault. A filosofia deve combater a baixeza de seu tempo, lembra Deleuze. Cabe ao pensamento intervir no seu tempo, contra o seu tempo, em favor, esperemos, de um tempo que virá, diz Nietzsche.

·        IHU – Agamben tem sido um dos autores fundamentais para pensarmos como a exceção se converte em regra e como ela opera amparada no estado democrático de direito. Em que aspectos Gaza se converte em um grande campo de concentração e prova que o binômio soberania-governamentalidade segue mais operativo e paradoxal do que nunca?

Peter Pál Pelbart – O campo de concentração é o paradigma biopolítico contemporâneo, diz Agamben. Isso se confirma a cada dia. O que não imaginávamos é que assistiríamos em tempo real, pela televisão, a redução de milhões de pessoas à condição de vida nua. O grau de visibilidade planetária que tal operação atingiu nos faz suspeitar que fomos catapultados a um novo patamar de normalização da exceção e de sua espetacularização escancarada. Como em Kafka, o mais espantoso é que o espantoso já não espanta ninguém.

¨      Médicos Sem Fronteiras denuncia sistema mortal de ajuda de Israel e EUA em Gaza

O sistema de distribuição de alimentos de Israel e dos Estados Unidos em Gaza, iniciado há um mês, está matando a população palestina, forçando-a a escolher entre morrer de fome ou arriscar suas vidas por suprimentos mínimos. Com mais de 500 pessoas mortas e quase 4 mil feridas enquanto tentavam buscar comida, esse esquema é um massacre disfarçado de ajuda humanitária e deve ser imediatamente interrompido.

Médicos Sem Fronteiras (MSF) apela às autoridades israelenses e seus aliados para que ponham fim ao cerco imposto à entrada de alimentos, combustíveis, suprimentos médicos e humanitários e voltem ao sistema humanitário pré-existente, coordenado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

O desastre em curso foi orquestrado pela organização Gaza Humanitarian Foundation (GHF sigla em inglês), apoiada por Israel e pelos Estados Unidos.  A forma como os suprimentos são distribuídos força milhares de palestinos, que passam fome devido a um cerco israelense de mais de 100 dias, a caminhar longas distâncias para chegar aos quatro pontos de entrega e lutar por restos de alimentos. Esses locais impedem que mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência tenham acesso à ajuda, enquanto pessoas são mortas e feridas em um processo caótico.

Mesmo diante de tanta violência, a cada nova atrocidade não há quase nenhuma reação — quanto mais condenação — por parte da comunidade internacional, que parece resignada com o seu papel de permitir e perpetuar uma campanha compatível com padrões de genocídio. Isso não pode continuar.

"Os quatro locais de distribuição, todos localizados em áreas sob o controle total das forças israelenses depois que as pessoas foram deslocadas à força de lá, são do tamanho de campos de futebol cercados por pontos de vigilância, montes de terra e arame farpado. A entrada cercada tem apenas um ponto de acesso para entrar ou sair", explica Aitor Zabalgogeazkoa, coordenador de emergência de MSF em Gaza. "Os trabalhadores da GHF deixam cair os paletes e as caixas de alimentos e abrem as cercas, permitindo que milhares de pessoas entrem de uma só vez e lutem até o último grão de arroz."

"Se as pessoas chegam cedo e se aproximam dos postos de controle, são alvejadas. Se chegarem na hora certa, mas houver um excesso de pessoas e elas pularem os montes e os arames, serão alvejadas", relata Zabalgogeazkoa. “Se chegarem tarde, não deveriam estar lá porque é uma ‘zona evacuada’, então são baleadas.”

Todos os dias, as equipes de MSF veem pacientes que foram mortos ou feridos tentando conseguir comida em um desses locais.

"Muitas pessoas estavam sendo diretamente alvejadas. Isso não é ajuda. É uma armadilha mortal", constata Hani Abu Soud, membro da comunidade no centro de saúde primária de Al-Mawasi. "Eles iam nos matar um por um.  Estávamos com fome, estávamos apenas tentando alimentar nossos filhos. O que mais posso fazer?  Um saco de lentilhas custa cerca de 30 a 40 shekels [cerca de 45 e 65 reais]". "Não temos esse dinheiro. A morte se tornou mais barata do que a sobrevivência."

À medida que as distribuições continuam, as equipes médicas notaram um aumento acentuado no número de pacientes com ferimentos a bala. No hospital de campanha de MSF em Deir Al-Balah, o índice de pessoas com esse tipo de lesão cresceu 190% na segunda semana de junho, em comparação com a semana anterior.

Os hospitais que ainda funcionam em Gaza estão devastados, operando com suprimentos mínimos de analgésicos, anestésicos e sangue. Hospitais em pleno funcionamento teriam dificuldades para lidar com um número tão alto de pacientes com traumas, que tomam as salas de emergência todos os dias.

Os pacientes feridos buscam ajuda em clínicas de saúde básica ou hospitais de campanha, já que as instalações de saúde maiores, com equipamentos para oferecer tratamento para traumas violentos, foram danificadas pelos ataques de Israel, e muitas não funcionam mais.

A clínica de MSF em Al Mawasi, que normalmente não está equipada para tratar pacientes com traumas, recebeu 423 pessoas feridas nos locais de distribuição desde 7 de junho. 

Dez ou mais pacientes com ferimentos violentos chegam dos locais de distribuição todos os dias. Essas lesões exigem tratamento imediato, como transfusões de sangue ou cirurgia, que as equipes médicas não podem oferecer em uma clínica de saúde básica.

Os pacientes são encaminhados para os poucos hospitais que ainda funcionam, como o hospital Nasser, mas, com a escassez de assistência médica, MSF recebeu relatos de pessoas feridas em locais de distribuição de ajuda que morreram devido aos ferimentos antes de receberem tratamento.

Sem comida na tenda que compartilhava com sua família, Ashraf, de 17 anos, foi a um local de distribuição em 23 de junho. "Eu disse que era muito perigoso. Ele falou que queria comprar algo para a irmã", conta Hanan, mãe de Ashraf. "Trinta minutos depois, ele me ligou, pedindo ajuda. Ele havia sido baleado. Essa ‘ajuda’ (o atual sistema de distribuição de alimentos) está encharcada de sangue." Ashraf estava sendo tratado na clínica de saúde básica em Al Mawasi.

A ajuda não deve ser controlada por uma parte em guerra para promover seus objetivos militares. As autoridades israelenses usaram uma tática deliberada de privação de alimentos contra os palestinos em Gaza. Israel transformou o suprimento de comida em uma arma, negando-o às pessoas e, depois, limitando-o a um volume baixíssimo, em uma violação total do direito humanitário internacional.

Os princípios humanitários existem para permitir a facilitação da assistência àqueles que mais precisam dela, com dignidade. A ajuda deve ser fornecida em escala, de acordo com esses princípios.

A população em Gaza tem necessidade vital e imediata do restabelecimento de um sistema de assistência genuíno e de um cessar-fogo sustentado para sua própria sobrevivência.

 

Fonte: Entrevista com Peter Pál Pelbart, para IHU/MSF

 

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