Finanças
sustentáveis: Radiografia de uma farsa
Em maio
de 2022, Stuart Kirk, chefe global de investimentos responsáveis da HSBC Asset
Management, uma das maiores empresas de gestão de ativos do mundo, deu uma
palestra em um evento do jornal Financial Times com o chocante
título “Por que investidores não precisam se preocupar com riscos climáticos”.
Na ocasião, ele reclamou das preocupações “excessivas” de órgãos como os Bancos
Centrais com os impactos econômicos da crise climática, e exclamou com deboche:
“Quem se importa se Miami vai estar 6 metros debaixo d’água daqui a 100 anos?
Amsterdã está 6 metros debaixo d’água há séculos, e é um lugar fantástico!”.
Para ele, “os seres humanos são espetaculares em gerir mudanças”, e a mudança
climática é, sobretudo, uma oportunidade de “fazer dinheiro por meio da
transição verde”.
A
palestra de Kirk poderia ser uma cena de Não olhe para cima, filme
de Adam McKay lançado em 2021. Na trama fictícia, cientistas descobrem que um
meteoro colossal vai se chocar com nosso planeta, mas há possibilidades
científicas e tecnológicas de evitar uma catástrofe que levaria ao fim da
aventura humana na Terra. Os bilionários e a presidenta dos Estados Unidos, no
entanto, preferem deixar a colisão acontecer para lucrar com a exploração da
riqueza mineral do meteoro.
A
sátira hollywoodiana só parece exagerada para quem desconhece as decisões e os
personagens reais do capitalismo global. Aliás, nosso executivo de
“investimentos responsáveis” trouxe em sua palestra um dado ilustrativo de como
a realidade capitalista é mais caricatural do que qualquer obra da indústria
cultural estadunidense: ao longo de 2020 e 2021, os lucros obtidos com a
exploração de car-vão cresceram, ultrapassando aqueles oriundos da produção de
energias renováveis.
Em 2023
nos Estados Unidos, contrariando suas promessas de campanha, Joe Biden já havia
aprovado quase 50% a mais de permissões para explorar petróleo e gás em terras
federais do que Donald Trump no mesmo tempo de mandato. O país tem batido
recordes na extração de petróleo, superando a marca de 13 milhões de barris por
dia em 2023. Enquanto seus prejuízos socioambientais são socializados para todo
o planeta, a apropriação dos ganhos é, ao contrário, extremamente concentrada.
O 1% mais rico e os próximos 9% na escala de distribuição de riqueza do país
receberam, respectivamente, 53,7% (US$ 48,8 bilhões) e 35% (US$ 31,6 bilhões)
dos lucros de combustíveis fósseis distribuídos a acionistas no segundo
trimestre de 2022.
Um fato
desvelado por Marx está na raiz da sanha por combustíveis fósseis: a economia
capitalista orienta-se “pela produção e realização de lucro, e não pela
satisfação das necessidades. A taxa de lucro é a força propulsora da produção
capitalista, e só se produz o que se pode e quando se pode produzir com lucro”.
Como explicam Brett Christophers e
Eduardo Sá Barreto, é por isso que a transição para uma matriz energética limpa
não avança de forma significativa no mundo, mesmo depois da enorme redução dos
preços para produzir e distribuir energias renováveis. O motor do investimento
capitalista não é o preço, mas o lucro, e os combustíveis fósseis ainda são
extremamente lucrativos. No capitalismo, “a viabilidade técnica ou a satisfação
de necessidades não são os critérios principais para a adoção de determinadas
configurações produtivas ou para a produção de um dado valor de uso”. O
importante é o movimento contínuo e infinito de busca pela autovalorização do
capital.
Marx
explicou que a busca pelo lucro acima de tudo, e pela valorização do capital
acima de todos, não decorre fundamentalmente de algum desvio moral ou ético da
burguesia. Trata-se de um imperativo sistêmico da acumulação capitalista: se
uma empresa abdica de maximizar seus ganhos, provavelmente será fagocitada por
outras que lucram mais, segundo a tendência da competição capitalista para
concentrar e centralizar o capital. Sob a dominância da valorização financeira,
a ânsia por lucratividade é ainda mais imediatista. Enquanto a queima de
combustíveis fósseis e de florestas gerar ganhos atrativos, o capital seguirá
com sua marcha funesta.
O
capital não só lucra apesar dos desastres que induz, mas inclusive por meio
deles. Nada o demonstra tão claramente quanto a indústria de armas, que aufere
ganhos com as mortes de palestinos, ucranianos e de jovens negros no Brasil.
Aliás, os gastos militares globais cresceram pelo nono ano seguido em 2023,
chegando a US$ 2,4 trilhões. Além do morticínio que promovem, esses
investimentos também geram fortes impactos ambientais negativos: nos Estados
Unidos, por exemplo, o departamento de Defesa é responsável por mais de 80% das
emissões de carbono do governo federal.
Para
entender a lógica por trás desse absurdo, é fundamental ter em conta que o
capitalismo não se organiza como um mercado mundial abstrato, mas se vincula
estruturalmente ao sistema de competição imperialista, que compele os
Estados-nação a maximizar seu poder e a disputar recursos estratégicos para
tanto. Trata-se de um dos fatores que impulsiona a expansão global de
investimentos na indústria bélica e na exploração de combustíveis fósseis. Não
bastam, portanto, apelos vagos e genéricos pela paz e pelo clima. Se queremos
redirecionar os gastos militares para ações de mitigação e adaptação às
mudanças climáticas, precisamos superar o modo de produção capitalista, que
organiza o sistema internacional sob a égide do imperialismo.
Há quem
insista, no entanto, ser possível salvar o clima e o capitalismo ao mesmo
tempo, e mais: como Kirk ou os personagens de Não olhe para cima, que os
melhores caminhos para enfrentar a crise ecológica seriam os lucrativos para os
capitalistas. Um de seus principais argumentos é examinado na segunda parte
deste texto: o dos investimentos ESG, uma das iniciativas de “finanças
sustentáveis” que ganharam mais expressão econômica e ideológica nos últimos
anos.
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“O diário secreto de um investidor sustentável”: o ESG como greenwashing sistêmico
Em
2004, Kofi Annan, então secretário-geral da ONU, convidou 21 das maiores
empresas do setor financeiro global para compor um grupo de trabalho destinado
a elaborar diretrizes e recomendações sobre como integrar aspectos “ambientais,
sociais e de governança corporativa” (ASG ou, na sigla em inglês, ESG) às
análises e decisões de investimentos. As empresas participantes gerenciavam
mais de US$ 6 trilhões em ativos: seis dos Estados Unidos, como Citigroup,
Goldman Sachs e Morgan Stanley, catorze da Europa, incluindo o HSBC de Stuart
Kirk, e uma da Austrália.
O
relatório do grupo recomendou que, para estimular a integração de fatores ESG
às análises financeiras e decisões de investimentos, deveriam ser preconizadas
“iniciativas voluntárias impulsionadas pelo mercado”, com regulação “flexível o
suficiente para permitir uma diversidade de abordagens e de proponentes, ao
invés de impor prescrições rígidas”.
Ao
longo dos últimos 20 anos, as iniciativas ESG mantiveram-se fiéis a esse
enquadramento inicial, orientado para medidas autorreguladas pelo mercado. A
única obrigação imposta às empresas é divulgar relatórios de sustentabilidade.
A premissa é que, se os investidores tiverem acesso a essas informações e aos
ratings ESG produzidos por agências privadas com base nelas, eles alocarão seus
recursos prioritariamente em negócios mais sustentáveis – não apenas por
preocupações ecológicas, mas também por cálculo econômico, considerando que
seus empreendimentos estariam menos expostos a riscos climáticos e, a longo
prazo, atrairiam mais consumidores e investidores com preocupações ambientais.
Reafirmando o velho mantra liberal, supõe-se que “indivíduos”, agentes privados
no mercado, são os entes mais aptos e legítimos para tomar as decisões mais
eficientes.
Quem
seriam esses “indivíduos”, na prática? Apesar da neblina ideológica que sugere
que qualquer pessoa pode se tornar um pequeno investidor, o fato é que a grande
massa de recursos do mercado é controlada por poucos agentes. Nas últimas
décadas, a estrutura de decisões de investimentos concentrou-se ainda mais com
o forte crescimento das empresas de gestão de ativos. Por isso, em 2019 houve
um momento importante para a emergência dos investimentos ESG, quando Larry
Fink, chefe da maior gestora de ativos do planeta, a BlackRock, priorizou o
tema em sua carta anual aos altos executivos do mercado.
Fink
enfatizou que as empresas precisavam reforçar a busca por seu “propósito”, “não
como mera campanha de marketing, mas como razão para existir e força animadora
para gerar valor e lucros”. Não haveria contradição entre lucro e propósito, ao
contrário: ambos seriam essenciais para “benefício não apenas de acionistas,
mas também de empregados, consumidores e comunidades”. A missiva conclamou os
CEOs do mundo, então, a se unirem para enfrentar “questões sociais e políticas
sensíveis”, “especialmente quando os governos falham em fazê-lo efetivamente”.
A BlackRock estaria fazendo a sua parte ao investir cada vez mais na mensuração
e na integração de fatores ESG às suas avaliações e estratégias de
investimento.
Quantas
dessas platitudes açucaradas, amplificadas em fóruns de wall streeters e faria
limers, traduziram-se em mudanças efetivas no mundo corpora- tivo e das
finanças? Tariq Fancy, antigo encarregado de chefiar os esforços ESG da
BlackRock, nos ajuda a responder à pergunta. Depois de um ano e meio no cargo,
e de pedir demissão em 2021, ele publicou em um blog a primeira parte do relato
“The Secret Diary of a ‘Sustainable Investor’” [O diário secreto de um
“investidor sustentável”]. Na terceira parte, “The Danger of Fairy Tales” [O
perigo dos contos de fadas], Fancy sintetiza suas frustrações de
ex-protagonista desse circuito do capitalismo “consciente” e “verde”: “a
interseção entre os círculos de propósito e lucro era menor do que eu
esperava”, “para a maioria das estratégias de investimentos [classificados como
sustentáveis], apenas alguns poucos aspectos ESG concretamente importavam”. Ele
conclui que contar com iniciativas voluntárias e autorreguladas do mercado para
enfrentar as mudanças climáticas é confiar em um “placebo perigoso, que
prejudica o interesse público”.
Diversos
estudos científicos têm dado razão a essa percepção crítica, mostrando que os
fundos ESG, na realidade, não têm impactos ambientais positivos. Não se trata,
portanto, de “separar o joio do trigo”, como se práticas de greenwashing fossem
exceções pontuais. O ESG é um discurso e um projeto de greenwashing sistêmico,
de construção de uma imagem “verde” para o capitalismo global, sobretudo para o
mercado financeiro, sem promover de modo efetivo a descarbonização da economia,
muito menos uma transição justa.
A
subordinação dos parâmetros ESG aos interesses do capital e do imperialismo
manifesta-se de modo obsceno. No início de 2022, uma pesquisa constatou que 52%
dos fundos ESG tinham investimentos na indústria de “defesa”, e estima-se que
tal proporção cresceu cerca de 25% nos últimos dois anos. Diante do aumento de
gastos militares no mundo e do consequente salto dos lucros da indústria bélica
depois da guerra da Ucrânia e do genocídio perpetrado por Israel em Gaza, esse
setor tornou-se ainda mais irresistível para os investidores capitalistas.
Em
abril de 2022, um dos maiores bancos nórdicos, o SEB, alegou que a indústria de
“defesa” não deveria ser excluída de uma política de investimentos
sustentáveis, porque seria a “chave para defender a democracia, a liberdade, a
estabilidade e os direitos humanos”. Pautando-se por essa mesma lógica, muitos
fundos ESG investem até mesmo em fornecedoras de fósforo branco, um gás tóxico,
para os Estados Unidos e para as forças armadas israelenses, que o utilizaram
recentemente em Gaza e no Líbano.
Desde
2021, aumentou também a proporção de investimentos em combustíveis fósseis nas
carteiras de ações dos fundos ESG. Mesmo no caso de empresas multinacionais que
produzem energias renováveis, não devemos entender que suas pontuações altas
nos ratings ESG significam uma produção próxima aos parâmetros de uma transição
social e ambientalmente justa. A forte expansão da produção de energia eólica
no semiárido do Nordeste nos últimos anos, por exemplo, tem desmatado áreas
significativas em topos e encostas de serras, cruciais para a preservação da
rica biodiversidade da Caatinga. Além disso, enquanto empresas privadas se
apropriam dos lucros subsidiados por recursos públicos e de uma parcela
crescente de terras, são comunidades camponesas que arcam com os prejuízos
socioambientais da expansão das fontes solar e eólica na região segundo o
modelo do capital. Tais processos de acumulação por despossessão vêm sendo
denunciados por movimentos populares e organizações sociais, que se uniram para
fundar em Natal, em 2023, o Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), que
defende um projeto popular para a transição energética.
Para os
ratings ESG, no entanto, empresas como a transnacional espanhola Iberdrola,
líder na expansão das renováveis no Nordeste, são modelos a serem seguidos, com
classificações AAA. Colonialismo “verde” e racismo ambiental: eis o que a
indústria de ratings ESG oferece como caminho.
Diante
desse descalabro sistêmico, o papel da esquerda não é disputar os critérios de
classificação dos investimentos como ESG. Disputá-los seria não apenas jogar no
campo do adversário, mas se sujeitar a um árbitro vendido para ele. Devemos
rejeitar a lógica ESG globalmente, por sua submissão ao primado do lucro e sua
construção tecnocrática. Uma transição justa, conforme aponta o MAR, deve ser
conduzida de outra forma, com efetiva participação popular e uma visão
econômica orientada a promover o bem viver.
Mais do
que mero instrumento de propaganda empresarial, o discurso e o aparato
institucional ESG foram construídos explicitamente como alternativas a
iniciativas regulatórias que impõem custos ao capital ou reduzem o seu poder.
Enquanto algumas frações do capitalismo global professam o negacionismo
climático puro e simples, outras adotam estratégia distinta: reconhecem o
problema retoricamente, mas garantem que seu enfrentamento se restrinja às
medidas voluntárias do mercado. O ESG é uma ferramenta de disputa de hegemonia
da política climática pelo capital financeiro global, servindo à propagação da
racionalidade neoliberal como apta e legítima para dirigir a economia, o Estado
e a sociedade. Como cereja desse bolo, cria-se um novo espaço para a valorização
do capital: estima-se que o mercado de softwares para elaborar ratings e ESG
deve atingir 6 bilhões de dólares em 2029.
É
verdade que a extrema direita dos Estados Unidos se opõe ao discurso ESG,
preferindo louvar o capitalismo fóssil de forma explícita, sem dourar a pílula.
Entretanto, não há contradição entre o desmonte da legislação ambiental e da
trabalhista, de um lado, e a promoção de “boas práticas” ESG, de outro. São
operações complementares: a tentativa de impor respeito aos direitos humanos e
socioambientais por meio de legislação mandatória é substituída pela estratégia
ESG, em que o mercado espontaneamente premiaria os negócios com as melhores
práticas. Por isso, mesmo durante o governo Bolsonaro, diversos Ministérios,
como o da Economia e até mesmo o da Agricultura (sob eterno controle dos
ruralistas), seguiram fazendo menções retóricas ao desenvolvimento sustentável.
Não por acaso, Larry Fink esteve presente no lançamento da “agenda de
sustentabilidade” do Banco Central do Brasil, em 2020.
O
discurso ESG, por fim, procura reconfigurar não apenas os modos de regulação da
atividade econômica, mas também os meios legítimos de ativismo social. Ao mesmo
tempo em que o neoliberalismo quer reprimir e deslegitimar sindicatos e
movimentos populares, ele conforma uma sociedade civil alternativa, povoada por
empresas de consultoria em sustentabilidade e direitos humanos e ONGs
tecnocráticas comprometidas com o capitalismo verde. Em vez de agir de maneira
coletiva e contestadora, os indivíduos comprometidos com uma transição
ecológica justa podem se “engajar” como investidores e direcionar seus recursos
para um fundo ESG. Já é a financeirização não apenas da economia, do Estado e
da política social, mas também do ativismo.
Na luta
ecossocialista, precisamos construir mediações táticas, mas a cilada do ESG não
é uma delas. Não é possível salvar, ao mesmo tempo, o clima e o capitalismo, a
biodiversidade e a civilização do “povo da mercadoria” (na expressão de Davi
Kopenawa) . Contra as bombas ESG e a subordinação da sustentabilidade à métrica
do lucro, precisamos manter os pés firmes no chão plural da luta
ecossocialista.
Fonte:
Por João Telésforo, em Outras Palavras

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