Como
prevenir uma nova geração fumante e proteger crianças e adolescentes dos vapes
Não é
brigando com seu filho, irmão, sobrinho ou amigo, mas por meio de políticas
públicas baseadas em evidências científicas que a epidemia de cigarros
eletrônicos será controlada. Políticas essas que só serão implementadas
globalmente se houver ação das autoridades e pressão pública. Isso é o que
defendem especialistas e jovens ativistas ouvidos pela Agência Pública durante
a Conferência Mundial sobre Controle do Tabaco, em Dublin, na Irlanda.
“Temos
que ser lideranças, mas as pessoas no poder também deveriam assumir seu papel.
Eles foram eleitos, nós votamos neles, e eles deveriam falar por nós, não pela
indústria do tabaco”, avaliou Manik Marganamahendra, integrante do Conselho da
Juventude da Indonésia para Mudanças Táticas que participou de um mapeamento de
políticos que apoiam ou se opõem ao controle do tabaco no país.
“[Há
uma tentativa de] culpabilizar ou responsabilizar o indivíduo como sendo quem
vai botar em prática as políticas, quando, na verdade, para o indivíduo botar
em prática as políticas ele tem que ter todo um arcabouço social que favorece
isso”, explicou a secretária executiva da Comissão Nacional para Implementação
da Convenção-Quadro para o Controle Do Tabaco (Conicq), Vera Luiza da Costa. O
órgão é responsável por elaborar políticas públicas sobre o tema no Brasil.
O mais
recente relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a epidemia de
tabaco, lançado no evento, alertou sobre os perigos dos dispositivos
eletrônicos para fumar (DEFs), que podem afetar o desenvolvimento do cérebro de
crianças e adolescentes, além de “renormalizar o comportamento de fumar”. Para
a médica e jovem liderança nigeriana Odunola Olabintan, “a indústria do tabaco
está criando uma nova geração de viciados”.
No
Brasil, dados do terceiro Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD III)
apontam que 4,6% das meninas adolescentes usaram cigarros eletrônicos no mês
anterior à pesquisa, índice 76% maior do que o dos meninos adolescentes (2,6%).
A média de usuários adolescentes no mesmo intervalo foi de 3,6%, 71% superior
aos adultos (2,1%). Ao todo, 8,8% da população já experimentou o produto.
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Por que isso importa?
• Produtos como os vapes, apesar de
proibidos, são populares e promovem uma “normalização” do ato de fumar,
conquistando uma nova geração de usuários, o que pode ser combatido com mais
eficiência por lideranças dessa mesma geração, com auxílio de políticas e
evidências científicas.
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Desafio global palpável e palatável
O uso
de sabores é uma “estratégia” da indústria do fumo para facilitar a “iniciação
ao tabagismo” e “atrair novos consumidores, em especial o público jovem”, de
acordo com nota técnica do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (Cetab),
ligado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ainda assim, o relatório da OMS
aponta que apenas sete países proíbem todos os sabores, enquanto outros 15
restringem ou permitem sabores específicos.
Em
2012, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu a venda de
produtos de tabaco com aditivos no Brasil, mas a indústria do fumo apresentou
uma ação argumentando que a agência, que tem como uma de suas funções regular o
tabaco, teria “ultrapassado os limites de seu poder regulatório”. O tema está
na fila de análise do Supremo Tribunal Federal (STF) há mais de dez anos e os
produtos seguem à venda.
O
Brasil está entre os 42 países, incluindo Argentina, México, Índia, Noruega e
Uruguai, que proíbem completamente a venda dos vapes, mas ainda não há um
padrão em como regular os dispositivos no mundo. Outros 91 países adotam algum
tipo de regulamentação, incluindo Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, China
e Austrália, enquanto outros 62 não têm regulação sobre o tema. Em 74 países
não há idade mínima definida para a compra dos cigarros eletrônicos.
“Os
governos não podem ficar de braços cruzados e não fazer nada em relação a esses
produtos. Algo precisa ser feito”, afirmou Andrew Black, líder da equipe da
secretaria da Convenção-quadro da OMS para o Controle do Tabaco (CQCT).
A
pressão da indústria é “uma das maiores ameaças à adoção, implementação e
aplicação de medidas eficazes de controle do tabaco”, de acordo com o
relatório. Entre as táticas aplicadas pelas empresas, o texto cita a criação de
grupos que se dizem neutros, mas defendem os interesses da indústria; a
produção e disseminação de pesquisas enganosas; o lobby e a pressão a
autoridades públicas; a litigância judicial e a facilitação do contrabando.
A
Pública já mostrou como a indústria do tabaco agiu no Congresso e na Anvisa
para tentar liberar dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), demanda não
atendida. Entretanto, os vapes podem ser encontrados facilmente. “No Brasil, e
em muitos outros países, existe o comércio ilícito, e há empresas que o
incentivam. Por isso, é necessário ter mecanismos de fiscalização muito
eficazes para combater essa prática”, explicou o diretor do departamento de
promoção da saúde da OMS, Ruediger Krech.
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Responsabilizar redes sociais pode ampliar proteção à juventude
A
propaganda dos dispositivos eletrônicos para fumar nas redes sociais é um desafio
mesmo nos países onde os produtos são completamente proibidos, caso do Brasil.
Em abril, o governo brasileiro deu 48 horas para as plataformas Instagram,
YouTube, TikTok, Enjoei e Mercado Livre removerem anúncios de cigarros
eletrônicos. Apenas o Instagram foi responsável por 1.637 conteúdos pagos,
quase 90% do total.
Os
fabricantes também utilizam influenciadores digitais para atrair os jovens. Em
2024, o Núcleo Jornalismo mostrou como uma empresa paraguaia de vapes montou
uma rede de influência que contou com celebridades, modelos e páginas de festas
no TikTok, no Instagram e no YouTube para promover seus produtos.
“Os
jovens gostam de influenciadores”, explicou Olabintan, que considera que eles
tornam os produtos mais “chamativos e atrativos”. Ela avalia que as plataformas
deveriam ser responsabilizadas por permitirem esse tipo de postagens: “As
evidências são claras: os produtos de tabaco são prejudiciais. Da mesma forma
que você não permitiria que alguém promovesse uma arma para os jovens, por que
então permitir a promoção de um produto que, segundo dados inequívocos, mata?”,
defende.
Questionada
pela Pública se as redes deveriam responder por permitirem a propaganda dos
produtos, a advogada sênior da CQCT Kate Lannan afirmou que “não é fácil, mas é
possível”: “Responsabilizar as plataformas de mídia social em vários países,
mesmo em um grande bloco como a União Europeia, tem se mostrado muito difícil”.
Ela ressaltou, entretanto, que os Países Baixos têm caminhado nesse sentido.
“O
desafio de regular a internet não é um problema exclusivo do tabaco. É um
verdadeiro desafio para os governos pensarem em como oferecer as proteções às
quais a sociedade está acostumada em um novo mundo onde as fronteiras foram
quebradas por causa dessas tecnologias”, acrescentou Black, também da OMS. No
Brasil, o STF já formou maioria para abrir a possibilidade de responsabilizar
as plataformas por manterem no ar conteúdos ilegais, mas o julgamento ainda não
foi concluído.
Outro
desafio ligado ao tabaco e produtos associados enfrentado no ambiente digital é
o comércio online. Para Fleury Ducas, codiretora da Coalizão de Quebec para o
Controle do Tabaco, essa modalidade de venda deveria ser completamente
proibida. “Em muitos países, proibimos a exposição desses produtos em lojas
comuns que permitem a entrada de crianças e adolescentes. Fechamos as brechas
que permitiam às empresas anunciarem produtos de tabaco e nicotina em outdoors.
Mas, quando você permite isso nos outdoors modernos, que é o que a internet
representa, acaba sendo fácil para as empresas driblarem essas leis”, explicou.
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De jovem para jovem, um levante globalizado contra o fumo
Lideranças
jovens têm apostado em unir outras causas importantes para a faixa etária à
conscientização sobre os danos de fumar. A argentina Consuelo Funes ressalta a
ligação das iniciativas de controle do tabaco com a discussão sobre o meio
ambiente. “As pessoas ignoram que o uso do tabaco e de produtos associados têm
um impacto ambiental altíssimo. Então, se você se importa com o meio ambiente e
descobre que isso está relacionado, também deveria se importar com o controle
do tabaco. A ideia é justamente essa: encontrar a sinergia entre os
movimentos”, explicou a integrante da Organização Argentina de Jovens para as
Nações Unidas (OAJNU).
Em
2022, estudo feito em parceria entre a CQCT e o Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente (UNEP) estimou que 4,5 trilhões de bitucas de cigarro, forma
mais disseminada de resíduo plástico no mundo, são descartadas de
incorretamente por ano, o equivalente a 765 mil toneladas de lixo. Além disso,
os vapes também são compostos de plástico e bateria, elemento de descarte
complexo.
Chase
Kornacki, pesquisadora e indígena da etnia Navajo, dos Estados Unidos, trabalha
com programas de cessação do tabagismo com nove etnias do Sul da Califórnia e
participa de conversas com crianças e adolescentes “para mostrar exemplos de
como a indústria tenta influenciar e mirar nos jovens para que comprem seus
produtos” como forma de “fazê-los perceber que as cores vibrantes ou os sabores
que parecem empolgantes, na verdade, são feitos para enganar”. A intervenção é
feita de modo a respeitar as práticas sagradas das etnias. “O tabaco nunca foi
feito para ser viciante quando era usado da forma correta nas culturas e
comunidades indígenas”, explicou, dizendo combater o “tabaco comercial”.
Para
Agamroop Kaur, embaixadora da juventude da Campaign for Tobacco-Free Kids, a
importância de ter líderes jovens atuando no tema reside em impactar os pares.
“Nós entendemos os problemas que estamos enfrentando, entendemos o que nossos
amigos estão passando, qual é a perspectiva e os interesses deles. Os problemas
que enfrentamos hoje são muito diferentes dos problemas que as gerações mais
velhas enfrentaram”, disse.
Fonte: Por Laura Scofield, da Agencia Pública

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