sábado, 28 de junho de 2025

Alcatraz dos jacarés': o polêmico centro de detenção de imigrantes em construção em Miami, nos EUA

Caminhando por uma região pantanosa junto a dois policiais armados e com música heavy metal ao fundo, o procurador-geral do Estado americano da Flórida, James Uthmeier, conta no vídeo publicado nas suas redes sociais que, naquele pântano, será construído um centro de detenção para imigrantes sem documentos.

Uthmeier explica que o Estado da Flórida, controlado politicamente pelos republicanos, apoia o governo do presidente americano Donald Trump, em sua política de deportações e na busca de novos centros para abrigar pessoas detidas.

"Acredito que este seja o melhor: eu o chamo de Alcatraz dos jacarés", diz o procurador. Ele se refere à prisão federal de segurança máxima que funcionou na baía de São Francisco, na Califórnia (EUA), entre 1934 e 1963.

"Não é preciso investir muito no perímetro", prossegue Uthmeier. "Se as pessoas saírem, serão recebidas pelas cobras e jacarés."

As obras da construção do novo centro de detenção começaram esta semana. Elas incluem a readaptação do Aeroporto de Treinamento e Transição Dade-Collier, a cerca de 70 km do centro de Miami.

O local fica em meio aos Everglades, um pântano subtropical com grande importância ecológica. Ele abriga o parque nacional do mesmo nome, declarado pela Unesco como Reserva Internacional da Biosfera e Patrimônio da Humanidade.

O aeroporto onde ficará o centro de detenção migratória consiste basicamente de uma pista de aterrissagem para treinamento de pilotos, rodeada por uma vasta extensão de pântanos e brejos.

Viajamos de Miami até a entrada do aeroporto, seguindo a rodovia US-41 Oeste (também conhecida como Caminho Tamiami), com sua surpreendente paisagem.

Em um local repleto de mosquitos, em meio a um calor de verão sufocante, conseguimos avançar poucos metros no interior do recinto, até que, como imaginávamos, um guarda bloqueou o nosso acesso com uma caminhonete.

Parados na entrada da propriedade, observamos um desfile constante de caminhões transportando lonas, materiais de construção, banheiros portáteis e outras cargas não identificadas.

A urgência para capacitar o centro de detenção o mais breve possível parecia evidente.

Um rápido movimento na água de um pequeno canal que corre bem ao lado da entrada do recinto, seguido por um som proveniente da vegetação, nos fez imaginar se seriam peixes, víboras ou algum dos inúmeros jacarés que perambulam pelos pântanos e, ocasionalmente, se aproximam da estrada.

<><> Poderes de emergência

Embora a propriedade onde a pista está localizada pertença ao Condado de Miami-Dade, a decisão de convertê-lo em um centro de detenção foi tomada pelas autoridades estaduais da Flórida sob uma ordem executiva emitida em 2023 pelo governador Ron DeSantis, invocando poderes de emergência para conter o fluxo de migrantes sem documentos.

O novo centro, segundo Uthmeier, terá capacidade para abrigar mais de 1 mil pessoas detidas. Ele entrará em operação no mês de julho e está se transformando rapidamente em um dos símbolos mais controversos da ofensiva migratória do governo Trump.

Mas ele não é o único. Dezenas de outras instalações estão sendo preparadas com o mesmo propósito.

Afinal, o governo precisa de uma infraestrutura carcerária que permita abrigar os detidos, enquanto busca acelerar o ritmo das deportações.

Do momento em que um imigrante sem documentos é detido até o seu embarque no avião que irá levá-lo para outro país, podem passar semanas ou meses.

Diversos relatórios elaborados por organizações de proteção dos direitos humanos indicam que os centros de detenção atuais estão superlotados. Em muitos deles, as pessoas detidas precisam dormir no chão.

Dados obtidos pela rede de notícias CBS, parceira da BBC nos Estados Unidos, indicam que o Serviço de Imigração e Alfândega americano (ICE, na sigla em inglês) mantém um recorde de 59 mil pessoas detidas em todo o país. Este número representa mais de 140% da sua capacidade.

<><> 'Cruel e absurdo'

Betty Osceola mora perto do chamado "Alcatraz dos jacarés". Ela faz parte da comunidade indígena Miccosukee, que habita a região há várias gerações.

ambientais que podem ser causados pelo novo centro de detenção nos Everglades

No fim de semana de 21 e 22 de junho, ela participou de uma manifestação pacífica na entrada do aeroporto, contra o novo centro de detenção. E, nos últimos dias, também testemunhou o trânsito incessante de caminhões, que entram carregados e saem vazios do local.

Osceola não acredita que o centro de detenção seja uma solução temporária, como defendem as autoridades.

Para ela, na prática, seu funcionamento poderia se estender por meses ou até anos.

"Tenho sérias preocupações com os danos ambientais", declarou ela à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Ela conversou com a reportagem ao lado de um canal por onde nadava um pequeno jacaré.

Osceola também se preocupa com as condições que os detentos irão enfrentar nas novas instalações.

Organizações ambientalistas também manifestaram estas mesmas preocupações, incluindo a Amigos dos Everglades, além de organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos nos Estados Unidos.

A União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), sediada na Flórida, qualificou a iniciativa de "cruel e absurda".

Ela defende que não há justificativas para prender pessoas em locais isolados e perigosos, muito menos em um centro "projetado à imagem de uma das prisões mais mal afamadas da história dos Estados Unidos".

Os próprios centros de detenção em regiões povoadas, segundo a organização, mantêm antecedentes bem documentados de negligência médica, maus tratos e ausência de acesso legal.

"Construir um [centro de detenção] em um local remoto e pantanoso só irá agravar estas condições", destaca a organização.

A BBC entrou em contato com o escritório do procurador-geral da Flórida para conversar sobre todas estas dúvidas, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.

A posição do procurador Uthmeier sobre as novas instalações nos Everglades ficou claramente definida no vídeo publicado por ele nas suas redes sociais.

O procurador defende que o centro de detenção é uma "oportunidade eficiente e de baixo custo" para implementar a agenda de deportação em massa do presidente Trump.

Uthmeier afirma no vídeo que, com o "Alcatraz dos jacarés", não haverá "nenhum lugar para onde ir, nenhum lugar onde se esconder".

<><>  O custo

A ampliação, adaptação ou construção de novos centros de detenção é uma pedra no sapato do governo americano para acelerar as detenções de imigrantes.

A secretária de Segurança Nacional, Kristi Noem, afirmou em declarações enviadas para a BBC News Mundo que o Estado da Flórida irá receber fundos federais para formar o novo centro de detenção. Este é um dos pontos críticos do debate sobre as origens dos recursos para financiar este tipo de operação.

Sob a liderança do presidente Trump, Noem destacou que está "trabalhando a todo vapor em formas rentáveis e inovadoras para cumprir com o mandato do povo americano, de deportar em massa os imigrantes delinquentes sem documentos".

"Ampliaremos as instalações e o espaço para dormir em poucos dias, graças à nossa colaboração com a Flórida", destaca a secretária.

Noem explica que o "Alcatraz dos jacarés" será financiado, em grande parte, pelo Programa de Refúgio e Serviços da Agência Federal de Controle de Emergências (Fema, na sigla em inglês).

Trata-se de um organismo do Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos, encarregado de coordenar a resposta federal aos desastres.

Capacitar um centro de detenção para mais de 1 mil pessoas exige uma injeção de recursos significativa.

A prefeita democrata do condado de Miami-Dade, Daniella Levine Cava, afirma ter solicitado ao Estado da Flórida informações sobre os pontos preocupantes do projeto. A pista de aterrissagem onde será instalado o novo centro de detenções fica no território sob sua jurisdição.

A porta-voz do gabinete da prefeitura, Rachel Johnson, em declaração encaminhada à BBC, afirmou que compreende "a declaração do procurador-geral, de que foram recebidas autorizações federais para o projeto, mas ainda não recebemos uma resposta do Estado".

"O Condado tem sérias preocupações com o impacto ambiental nos Everglades", destacou ela.

As batidas contra imigrantes vêm aumentando em cidades como Los Angeles, na Califórnia. Mas, em Miami e no sul da Flórida, a ofensiva parece ser um pouco menor, embora não haja informações detalhadas sobre o número de pessoas detidas, onde elas estão e quais delas possuem antecedentes criminais.

Muitos imigrantes de origem latina sem documentos preferem sair o menos possível de suas casas. Eles receiam serem detidos e encaminhados para centros como o "Alcatraz dos jacarés".

As projeções oficiais indicam que o novo centro de detenção deve abrir as portas nas próximas semanas. E tudo parece indicar que o projeto irá seguir adiante.

Pelo menos é o que se observa na entrada do recinto, com seu fluxo incessante de caminhões, em meio a um pântano extremamente quente. Ali, vão viver pessoas detidas enquanto aguardam sua deportação dos Estados Unidos.

Alcatraz: a história da famosa prisão que Trump mandou reabrir

A reabertura de Alcatraz — outrora conhecida como uma das prisões mais severas dos EUA — serviria, segundo Trump, como um "símbolo da lei, da ordem e da justiça".

Líderes do Partido Democrata disseram que a proposta "não é séria". A prisão de segurança máxima, também conhecida como "The Rock" ("A Rocha"), foi fechada em 1963 e atualmente funciona como um ponto turístico de sucesso.

"Hoje, estou instruindo o Departamento Federal de Prisões, juntamente com o Departamento de Justiça, o FBI e o Departamento de Segurança Interna, a reabrir uma Alcatraz substancialmente ampliada e reconstruída", escreveu Trump.

Segundo ele, a prisão abrigaria "os criminosos mais impiedosos e violentos da América".

O presidente Trump tem enfrentado disputas com a Justiça devido à sua política de enviar supostos membros de gangues para uma prisão em El Salvador.

Em março, ele enviou mais de 200 venezuelanos acusados de envolvimento com gangues para lá. Trump também já falou sobre a possibilidade de mandar "criminosos nacionais" para prisões estrangeiras.

Alcatraz foi inicialmente um forte de defesa naval, tendo sido reformado no início do século 20 para funcionar como prisão militar. O Departamento de Justiça assumiu o local na década de 1930 e passou a receber detentos do sistema prisional federal.

Segundo o site do Departamento Federal de Prisões, Alcatraz foi fechada por ser cara demais para manter: operar a unidade custava quase três vezes mais do que qualquer outra prisão federal, principalmente devido à sua localização insular.

Transformar Alcatraz novamente em uma prisão funcional exigiria uma quantia enorme de dinheiro, disse o professor Gabriel Jack Chin, da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia em Davis, à BBC.

O sistema prisional federal atualmente opera com cerca de 25% a menos de presos em relação ao seu pico, e "há muitas camas vazias" nas prisões já existentes, afirmou Chin. "Portanto, não está claro se há necessidade de uma nova prisão."

Alcatraz tem "uma reputação de prisão severa", e Trump está tentando transmitir a mensagem de que sua administração será dura contra o crime, acrescentou o professor.

A ex-presidente da Câmara, Nancy Pelosi, democrata da Califórnia cujo distrito inclui Alcatraz, classificou a proposta como "não séria".

Já o senador estadual democrata por San Francisco, Scott Wiener, disse em uma postagem no Instagram que a ideia é "profundamente desequilibrada" e representa "um ataque ao Estado de Direito".

<><> A história de Alcatraz

Localizada em uma ilhota árida e rochosa no Pacífico Norte, a primeira fortificação de Alcatraz for construída por volta de 1850 e utilizada como uma prisão militar.

Mas a fama de Alcatraz se firmou nos anos em que esse rochedo em frente à baía de San Francisco, no norte da Califórnia, abrigou uma prisão federal de segurança máxima e serviu de lar forçado a alguns dos gângsteres mais temidos dos Estados Unidos.

Entre 1934 e 1963, ''A Rocha'', a alcunha que Alcatraz ganhou, foi a prisão modelo em que eram detidos criminosos considerados demasiadamente perigosos para as prisões do continente.

Alcatraz viveu a sua fuga mais célebre 50 anos atrás, em parte porque nunca mais se soube o paradeiro dos três detentos que escaparam. E também porque, depois disso, o governo americano ordenou o fechamento da penitenciária. Mas a lenda construída em torno do local seguiu se alimentando de relatos orais e de filmes de Hollywood.

Autoridades locais avaliaram que o presídio fornecia segurança suficiente para frustrar qualquer tentativa de fuga. O argumento deles é de que seria impossível sobreviver na costa por causa das fortes correntes ou das baixas temperaturas das águas.

Em 1912, ali foi erguido o, à época, maior edifício de concreto armado em todo o mundo. Mas foi o ano de 1933 que selou a fama de Alcatraz como uma prisão diferente.

Ela se converteu na ''prisão das prisões'', como a chamou a agência americana de prisões. Na prática, isso significava que o local passaria a receber a população carcerária considerada demasiadamente indisciplinada para outros centros de detenção nos Estados Unidos.

Ela também serviu como modelo para o sistema de prisão chamado de 1 x 3, com um guarda designado para cada três detentos. Esse padrão logo passaria ser empregado em outras prisões federais.

O primeiro guarda da prisão foi James Johnston, que considerava a penitenciária como um espaço de disciplina extrema, mais que um espaço de reabilitação e reinserção social dos detidos.

Sob a autoridade de Johnston, cada detido ganhou uma cela individual. A medida não se tratou de um luxo. O confinamento solitário era uma forma de evitar complôs e tentativas de fuga.

A mais severa regra em vigor, segundo relataram detentos, era ter de manter silêncio extremo. Os presidiários só podiam conversar durante os recreios dos finais de semana. E os que demonstravam uma conduta considerada inapropriada eram enviados ao chamado ''buraco'', um espaço subterrâneo em que os punidos chegavam a ficar confinados por semanas inteiras.

<><> Detentos famosos

De acordo com agência americana de prisões, a população carcerária de Alcatraz se manteve sempre abaixo da capacidade máxima do recinto. Em média, ela abrigou entre 260 e 275 prisioneiros, representando apenas 1% do total de presos em cárceres federais. Mas foram os personagens atrás das grades que ajudaram a consolidar a lenda de Alcatraz, sobretudo figuras de destaque do crime organizado na época da Grande Depressão no país.

O mais famoso foi sem dúvida o mafioso Al Capone, líder de uma organização contrabandista com base em Chicago. Ele foi enviado ao presídio porque, segundo as autoridades americanas, sua reclusão anterior, em Atlanta, não o havia impedido de continuar comandando a máfia.

O mafioso ficou em Alcatraz por pouco mais de quatro anos, até ser diagnosticado com sífilis e transferido para outra prisão.

Outro detento que ficou conhecido é Alvin Karpowicz, apelidado como "Creepy Karpis", que liderou o ranking dos "mais procurados" do FBI nos anos 1930 e tornou-se o preso com a mais longa estadia na ilha: 25 anos e um mês.

Também passaram pelo local o gângster George "Machine Gun" Kelly Barnes e Rafael Cancel Miranda, membro do Partido Nacionalista de Puerto Rico e responsável por um ataque armado contra o Congresso americano nos anos 1950.

<><> Fugas frustradas

Nem os mais sofisticados mecanismos de segurança da época foram suficientes para impedir que alguns detentos tentassem fugir. A administração do presídio contabilizou 14 tentativas de fuga envolvendo 36 pessoas durante mais de 30 anos. Destes, 23 foram recapturados, seis morreram baleados durante a fuga e outros dois afogados.

Cinco deles, no entanto, jamais foram reencontrados e passaram a integrar uma lista de "desaparecidos".

A primeira tentativa de fuga ocorreu ainda em 1936, só dois anos após a inauguração da penitenciária. Jow Bowers escalou o muro de segurança mas acabou sendo baleado. Em 1945, John Giles chegou a sequestrar um barco militar e chegar ao continente, mas foi detido novamente.

Os últimos a tentarem fugir foram Frank Morris, Clarence Anglin e Jogn Anglin, em 1962, e John Scott e Darl Parker, no mesmo ano. A prisão foi desativada pouco depois.

<><> Fora de funcionamento

Além das tentativas de fuga, outro fator contribuiu para o fechamento do presídio de segurança máxima: seus altos custos de manutenção.

Em 1963 o Departamento de Justiça americano avaliou que era necessário um investimento de US$ 5 milhões (um valor que hoje corresponderia a cerca de R$ 25,5 mihões) para reparar as estruturas danificadas pelo salitre.

Após seu fechamento oficial como presídio, no entanto, o local foi tomado por indígenas da organização "Aborígenes de todas as tribos". O objetivo era criar uma escola e um centro cultural na ilha que, segundo eles, tinha sido entregue pelo governo a chefes tribais no século 19.

O projeto encontrou muitas dificuldades e não teve continuidade.

Atualmente a ilha de Alcatraz é um dos pontos mais visitados de São Francisco, com cerca de 1,3 milhão de turistas por ano, e serve também de ponto de partida para uma competição anual de triatlo, "Fuga de Alcatraz", em que centenas de atletas provam que, com treinamento e equipamento apropriados, é possível sair da ilha e chegar são e salvo à terra firme.


Fonte: BBC News Mundo


 

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