Plano
Diretor de Epidemiologia e sua necessária politização
Depois
do trauma coletivo da pandemia de covid-19, a epidemiologia tornou-se uma
especialidade científica mais familiar do público geral. A partir dos dados semanais
de infecções, adoecimentos e mortes, nos acostumamos a lidar diariamente com
este tripé essencial de uma área cujo objeto de estudo é a saúde de um conjunto
populacional.
Diante
deste resumo simplificado, a apresentação do 5º Plano Diretor para o
desenvolvimento da Epidemiologia no Brasil – 2025-2029, elaborado pela
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em parceria direta com o
Ministério da Saúde, parece uma consequência óbvia daquele momento. No entanto,
há muito mais em disputa, como deixaram claro vários especialistas que se
encontraram na Faculdade de Saúde Pública da USP no dia 17 de junho para a
apresentação do Plano.
Em sua
fala, Marilisa Barros, médica, sanitarista e professora da Unicamp, foi direto
ao ponto. “Vivemos no contexto do golpe de 2016, eleições de 2018, desmonte do
Estado e negacionismo, que dirigiu o país na pandemia. Não faria sentido um
Plano de Diretor de Epidemiologia naquele contexto. E se a extrema-direita não
perdesse a eleição de 2022 tampouco haveria Plano. No próximo ano teremos ideia
de para onde poderemos caminhar”.
Ou
seja, o Plano Diretor não é um documento frio sobre ações básicas de vigilância
em saúde e monitoramento de situações diversas de adoecimento. Como deixa clara
a própria introdução do documento oficial, sua ideia está muito além da
produção de boletins de dados e estatísticas.
“Nas
últimas décadas, a expansão das políticas neoliberais, no contexto de
financeirização do modo de produção capitalista, implicou concentração de
renda, aumento da pobreza, precarização do trabalho, aprofundamento das
iniquidades sociais em saúde e desinvestimento em políticas de saúde e
bem-estar social”, contextualiza.
Portanto,
não é nada casual o momento em que surge o 5º Plano. Ele dista exatos 20 anos
do último, apresentado em 2005. Os outros datam de 1989, 1994 e 2000, de modo
que está diretamente ligado à criação do SUS e ao processo de redemocratização
do país, época em que também se afirmou a Saúde Coletiva como campo de
conhecimento científico essencial às políticas do setor.
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Elaboração participativa
O Plano
começou a se delinear exatamente após a vitória de Lula sobre Bolsonaro, em
grupos de trabalho da Abrasco. Em agosto de 2023, uma oficina em Brasília
formou os grupos de trabalho e comissões, compostas 105 membros de 55
instituições de ensino e pesquisa, e representação nas cinco regiões do país.
Já em 2024, um congresso deu encaminhamento ao trabalho ora apresentado à
sociedade.
Suas
três áreas temáticas são formação, pesquisa e participação em políticas
públicas. “O 5o Plano tem novos problemas para lidar, mas parte de um patamar
melhor, onde há mais formação profissional no país. As avaliações das políticas
de saúde ainda são precárias e o plano compensa 20 anos de defasagem e junta
gerações, de modo que aproveita as formulações anteriores e os novos
profissionais formados desde então”, analisou Guilherme Werneck, professor da
UERJ e Diretor do Departamento de Ações Estratégicas de Epidemiologia e
Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério.
Como
explicou Maria Rita Donalisio, professora do Departamento de Saúde Coletiva da
Unicamp, o documento estabelece parâmetros que já podem ser prontamente
adotados por entes federativos dos três níveis. Além disso, luta para
consolidar a inserção deste tipo de profissional no SUS. “Os assuntos são
transversais e tais políticas devem ser inseridas em políticas setoriais.
Sistemas de informação do país estão fragmentados. Até hoje o ministério se
esforça para juntar tudo isso.”
Em
linhas gerais, analisar necessidades em saúde de populações mais vulneráveis
incide diretamente no sistema político e econômico, onde prevalece uma agenda
responsável pelo seu processo de saúde-doença.
“Identificamos
insuficiência de pesquisa sobre modelo econômico e suas abordagens teóricas,
propostas metodológicas e avaliações de impacto de saúde, com reduzido número
de estudos e escasso conhecimento sobre populações vulnerabilizadas, como
indígenas, de rua, carcerária, LGBTQ”, antecipou Claudia Leite Moraes,
professora do Departamento de Epidemiologia da UERJ.
No
entanto, é impossível não se questionar se um país que voltou a ser dominado
politicamente por uma direta oligárquica, o que se reflete fortemente nos
governos estaduais e prefeituras, levará a sério uma visão de saúde pública tão
crítica como a expressada no Plano Diretor.
“Devemos
reforçar pesquisas que enfatizem origens das desigualdades socioeconômicas
originadas no capitalismo, fortes produtoras de desigualdade. Reforça-se a
necessidade de ampliar número de pesquisas nos focos mencionados. Condições de
vida e saúde da população mais marginalizada devem ser foco prioritário”,
resumiu Claudia.
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“Por uma epidemiologia crítica”
Como
ressaltado em diversas falas dos especialistas presentes, a análise do modo de
vida de qualquer sociedade é essencial à epidemiologia. Um dos grandes
sanitaristas do país, Naomar de Almeida Filho, do Instituto de Saúde Coletiva
da UFBA, encerrou o encontro com o lançamento de seu livro, que não deixa
dúvidas a respeito do que deve ser alvo desta área do conhecimento.
Epidemiologia
no pós-pandemia – de ciência tímida a ciência emergente traz à tona debates que
vão muito além de uma mera abordagem técnica da saúde pública. “Um Plano
Diretor tem finalidade de organizar ações e também provocar aberturas para
discussões temáticas, questionamentos e reflexões necessárias para que a
prática política não seja só empírica, mas tenha a racionalidade crítica
construtiva necessária”, discursou.
Em sua
fala, também explicou o curioso título de sua obra. Para ele, a epidemiologia
foi, até a pandemia, um campo pouco popular de conhecimento. No entanto, tal
momento a colocou sob holofotes, a ponto de diversos profissionais de outras
áreas se apresentarem ao público como especialistas da área.
“Houve
uma específica apropriação da ‘grife epidemiológica’ pelos cientistas de dados.
Isso permite antecipar futuras disputas políticas pelo discurso e produção de
narrativa legitimada sob o processo de transformação de dados em informação, e
depois em conhecimentos referentes ao processo da
saúde-enfermidade-cuidado-população, que é o objeto da epidemiologia.”
Sua
fala acompanhou a tônica de todo o evento, dentro do qual Marilisa Barros
defendeu abertamente uma “politização da epidemiologia”. Nesse sentido, cabe
refletir sobre a conjuntura que se vive, na qual, poucos dias depois, o
chanceler brasileiro Celso Amorim, ao analisar os conflitos no Oriente Médio,
admitiu que “a ordem global dos últimos 80 anos acabou e teremos de aprender a
lidar com isso”.
Em
escala menor do que as grandes disputas geopolíticas, evidentemente, a
epidemiologia tende a se revelar campo de batalha da famigerada “polarização”,
neste caso, em torno da produção de dados e estatísticas de saúde pública, e
sua subsequente utilização pelo poder público
Fonte:
Por Gabriel Brito, em Outra Saúde

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