Edergênio
Negreiros Vieira: Estado e extermínio
O ano
era 1997, e enquanto o mundo ocidental acompanhava o enterro da anacrônica
Princesa Diana com bilhões de espectadores, o Brasil estava longe de viver um
conto de fadas. Em Brasília, nos primeiros meses daquele ano, foi aprovada a
emenda da reeleição presidencial. Esse fato abriu caminho para a continuidade
do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e, possivelmente, marcou um dos
maiores escândalos de propina na história da República brasileira, visando a
aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
Nesse
mesmo ano, na capital federal, um ato brutal chocou o país: jovens brancos de
classe média atearam fogo e assassinaram Galdino Jesus dos Santos, um indígena
da etnia Pataxó. O crime ocorreu um dia após o “Dia do índio”, data que, como
bem observado, carregava uma alcunha colonialista. Outros eventos marcantes de
1997 incluem a questionável venda da Vale do Rio Doce e a perda do renomado
educador brasileiro Paulo Freire.
Entre a
miríade de acontecimentos que fazem de 1997 um ano “que não acabou”, destacamos
dois para ilustrar, de forma mais contundente, a proposta deste ensaio:
apresentar considerações preliminares sobre os conceitos de seletividade penal,
violência de Estado e racismo.
O
primeiro caso diz respeito ao flagrante, amplamente exibido em rede nacional
pelo Jornal Nacional, de policiais militares de São Paulo agredindo moradores
da Favela Naval, em Diadema. Durante uma suposta blitz, um veículo Gol com três
homens foi abordado. Os PMs exigiam dinheiro e, sem sucesso, espancaram as
vítimas severamente. Após a tortura, os homens foram liberados, mas um dos
agentes disparou duas vezes contra o carro.
Mario
José Josino, um morador da região, foi atingido na nuca e, apesar de levado ao
hospital público de Diadema, veio a óbito horas depois. As imagens, veiculadas
no fatídico 31 de março, repercutiram globalmente como um exemplo chocante de
violência policial.
O
segundo fato marcante foi o lançamento de Sobrevivendo no inferno, o icônico
álbum do grupo de rap Racionais MC’s. Com inegável qualidade sonora, o disco se
destacou por abordar temas políticos e sociais cruciais: racismo,
encarceramento em massa, violência policial, desigualdade e extermínio da
juventude negra.
Com
letras fortes que expunham em versos e rimas o cotidiano da violência no
Brasil, o álbum foi, inclusive, selecionado como leitura obrigatória para o
vestibular da Unicamp em 2018. A frase “27 anos de idade contrariando as
estatísticas” se tornou um poderoso mantra de denúncia contra a morte precoce
de milhares de homens jovens, negros e pobres das periferias brasileiras.
O grupo
musical Racionais MC’s, responsável por formar uma parcela significativa da
juventude brasileira, especialmente entre o final do século XX e o início do
século XXI, representa uma das mais importantes Agências de Letramento que o
Hip-Hop oferece.
Conforme
Ana Lúcia Silva Souza (2011, p. 35), “os ativistas do movimento hip-hop
desempenham um papel histórico ao incorporar, criar, ressignificar e reinventar
os usos sociais da linguagem, os valores e intenções do que chamamos de
letramentos de reexistência”.
Ao
expor as entranhas da violência a que milhões de pessoas são expostas no
Brasil, os Racionais MC’s articulam uma linguagem que rompe com o padrão
normativo. Dessa forma, eles denunciam o problema da seletividade racial no
país. A música “Fórmula Mágica da Paz” exemplifica bem essa denúncia. No trecho
que inicia este ensaio, o eu lírico reflete sobre a homogeneidade das
características das mulheres que observava na saída do “São Luís”, um conhecido
cemitério da zona norte de São Paulo (fundado em 1875), ao se deparar com um
perfil racial específico.
“2 de
novembro era finados, eu parei em frente ao São Luís do outro lado, e durante
uma meia hora olhei um por um e o que todas as senhoras tinham em comum: a
roupa humilde, a pela escura, o rosto abatido pela vida dura.” (Racionais
MC´s).
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Democracia racial de sangue
Por
trás de cada um daqueles rostos, possivelmente se escondem histórias que não
são exclusividades de São Paulo. Pelo contrário, dados recentes do IPEA-FBSP
(2025) revelam que, em números absolutos, o Brasil registrou 45.747 mil
homicídios em 2023, uma redução de 1,4% em relação ao ano anterior.
Esse
total de mortes, que inclui homicídios dolosos, mortes por intervenção
policial, feminicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte,
resulta em uma taxa de 23 mortes por 100 mil habitantes anualmente no Brasil.
Contudo, embora o país tenha observado uma redução geral dos homicídios, essa
tendência não se manifesta de forma equitativa entre os grupos de pessoas
negras e não negras.
Em
2023, do total de 45.747 mil mortes, 35.213 foram de pessoas pretas e pardas. A
taxa de homicídio entre negros, ainda de acordo com o IPEA-FBSP (2025), é de
28,9 por 100 mil habitantes, superando a média nacional (23) e sendo
significativamente maior que a taxa de homicídios de pessoas não negras, que
foi de 10,6 no mesmo ano.
Esses
números expõem uma realidade alarmante que aponta para a atuação de uma
sofisticada arquitetura estatal que opera na produção de corpos, especialmente
corpos negros.
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Seletividade racial e o sistema penal
A frase
“Democracia Racial de Sangue”, título de uma canção de rap do artista
paulistano Eduardo Taddeo, introduz a discussão sobre o conceito de
seletividade racial. Esse conceito surgiu no contexto do sistema carcerário,
oriundo de estudos da Criminologia crítica, um ramo de investigação que se
contrapôs ao discurso da Criminologia positivista e aos estudos sobre racismo
estrutural. Seu objetivo é confrontar a suposta neutralidade das leis e dos
mecanismos de justiça.
Historicamente,
no século XIX, as ideias de Cesare Lombroso buscaram biologizar e naturalizar
comportamentos criminosos. Influenciado pelo darwinismo social, que visava
atribuir características físicas e raciais a uma predisposição para o crime, o
conceito de criminalidade ganhou força.
Embora
o termo “seletividade racial” não existisse formalmente, a Criminologia
positivista forneceu sustentação para grupos e Estados nacionais criminalizarem
e perseguirem minorias sociais. No Brasil, esse pensamento encontrou respaldo
em pseudociências como a eugenia, instrumentalizando o Estado brasileiro a
criminalizar a população negra logo após o fim do processo de escravização.
Contudo,
a Criminologia crítica, que emergiu na segunda metade do século XX, opôs-se
veementemente a esse pensamento. A partir de dados que indicavam uma
super-representação de grupos raciais no sistema carcerário, os teóricos desse
campo passaram a analisar como o sistema penal agia para expressar os desejos
das classes sociais dominantes. Assim, o sistema não operava como um
instrumento neutro de controle do crime, mas sim como um espelho das relações
de poder e desigualdade social no Brasil.
Dessa
forma, o conceito de seletividade penal mostrou-se essencial para desvelar os
mecanismos que selecionam quem será criminalizado ou, até mesmo, assassinado.
Os dados apresentados anteriormente, extraídos do IPEA-FBSP (2025), permitem
analisar como a seletividade racial atua na produção de “corpos matáveis” no
país. Isso pode ser confirmado pela análise do risco relativo [2], que aponta
que, em 2023, uma pessoa negra tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de
homicídio do que uma pessoa não negra, um aumento de 15,6% em relação a 2013.
“Somos
a versão piorada dos Estados Unidos, Gambé que enterra negro aqui também não é
punido, a diferença é que lá, se Rodney King cuspir sangue, tem distúrbio, como
os de Los Angeles…” (Eduardo Taddeo).
A
letalidade policial, especialmente dirigida a corpos negros, é outro fator que
evidencia a seletividade racial no país. O Brasil figura entre as primeiras
posições globais quando o assunto é violência policial.
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Dados da letalidade policial no Brasil
De
acordo com o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp),
operado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, 6.014 mortes foram
registradas em decorrência de intervenção policial em 2024. É importante notar
que essa base de dados é alimentada por informações fornecidas pelas próprias
secretarias estaduais de segurança pública das unidades federativas.
O
estudo indica os cinco estados com as forças policiais mais letais, em ordem
decrescente: Em números absolutos: Bahia: 1,5 mil vítimas; São Paulo: 749
vítimas; Rio de Janeiro: 659 vítimas; Pará: 593 vítimas; Goiás: 387 mortes por
intervenção policial
Em
termos proporcionais (mortes por 100 mil habitantes): Amapá: 17,06; Bahia:
10,48; Pará: 6,84; Mato Grosso: 5,58; Goiás: 5,26.
A
violência é um fator primordial na consolidação de uma “sociedade desigual”. Em
consonância com essa perspectiva, Mario Theodoro (2022, p. 277) afirma que: “a
violência é o mais evidente e poderoso mecanismo de expressão da sociedade
desigual. E a letalidade policial contra negros, que vem aumentando a cada ano,
conforme as informações do Atlas da violência, é um inequívoco índice do
problema”.
Dada
sua complexidade, a violência afeta os diversos grupos sociais e raciais de
maneira desigual, uma constatação que também se aplica à questão de gênero. O
Atlas da Violência de 2023 (Cerqueira et al., 2023) revelou que, em 2021, a
população negra constituiu 77,1% das vítimas de homicídio. Em consonância, o
Monitor da Violência (Velasco, Feitosa Jr. e Grandin, 2022), ao analisar os
dados de 2021, indica que 80% das pessoas mortas em confrontos com agentes de
segurança do Estado pertenciam ao grupo racial negro.
A
posição de destaque negativa de Goiás no ranking de letalidade policial,
especialmente nos últimos anos, é um reflexo direto da política retórica e
discursiva do governador Ronaldo Caiado (DEM), a maior autoridade do executivo
estadual. Levantamentos do IPEA-FBSP e da própria Secretaria de Estado de
Segurança Pública apontam um crescimento de 22% no número de mortes decorrentes
de intervenção policial no estado. Na esteira desse processo, observou-se o
quadruplicamento das chamadas promoções por “atos de bravura” na carreira da
Polícia Militar de Goiás.
Com o
objetivo de se posicionar no cenário político nacional como uma alternativa
para setores da sociedade com visões mais conservadoras e reacionárias, o
governador Ronaldo Caiado tem priorizado a segurança pública como principal
pauta de seu governo. Contraditoriamente, enquanto Goiás registrou um aumento
no número de mortes em supostos confrontos com policiais militares, as
estatísticas oficiais da gestão estadual apontam para uma diminuição de
homicídios dolosos, roubo de veículos, feminicídios e outros crimes.
O
bordão “Em Goiás, ou bandido muda de profissão, ou muda de estado”, repetido
incansavelmente por Ronaldo Caiado, ecoa até mesmo entre a população, especialmente
ao ler ou ouvir reportagens sobre mortes em alegados confrontos policiais.
Essa
propaganda belicosa tem surtido efeito: dados do instituto de pesquisa Quaest
indicam que 69% dos eleitores goianos avaliam positivamente as políticas do
setor de segurança pública. Isso demonstra que, no estado de Goiás, a violência
encontra apoio popular e, por sua vez, garante a popularidade do governador.
Mortes
em confronto com agentes de segurança pública no estado de Goiás
Uma das
possíveis explicações para esse cenário reside na própria natureza da
violência: um fenômeno social complexo com múltiplas manifestações, que vão da
agressão física e verbal à psicológica, estatal e policial. A violência permeia
tanto as relações interpessoais quanto as estruturas de poder.
No
contexto brasileiro e, especificamente, goiano, essa questão histórica e
alarmante figura entre as maiores preocupações da população, conforme revelam
diversos levantamentos estatísticos. Os números, de fato, escancaram a urgência
de medidas eficazes para sua contenção.
A
Organização Mundial de Saúde (OMS) define uma epidemia de violência quando as
taxas de homicídio superam 10 por 100 mil habitantes. Em 2023, o Brasil
apresentou mais que o dobro desse índice, com uma média de 22,8 mortes por 100
mil, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Outra
face da epidemia de violência no Brasil é o sistema carcerário. Dados do
Anuário FBSP 2023 evidenciam a super-representação de certos grupos: 68,2% da
população carcerária é composta por pessoas não brancas, 62,6% por jovens de 18
a 34 anos e 95% por homens. Conforme apontam Soria Batista e Caixeta Maciel
(2018, p. 186-187), “presídio é um mecanismo de reprodução da desigualdade
social e de eliminação dos jovens negros pobres. Seja porque se matam entre
eles, dentro e fora do presidio ou porque são/serão mortos, em algum momento
pelas forças de segurança”.
Em um
país de herança colonial, a violência racial surge como uma das suas expressões
mais extremas, conforme Fanon (2005) aponta. Longe de ser um fenômeno recente,
como a discussão em destaque nos leva a refletir, essa violência tem raízes
profundas na própria formação do Estado nacional.
Atualmente,
ela se perpetua por meio de uma lógica de economia do crime, alimentada pela
espetacularização e superexploração de corpos, anualmente descartados em
inúmeras valas comuns no Brasil. Este ensaio, fundamentado em estudos
bibliográficos, propõe essa interpretação da violência em sua continuidade
histórica.
É
fundamental também analisar como a violência e suas dinâmicas se articulam com
a organização estatal (Fontgallant, 2021), constituindo uma economia da
violência e da criminalidade no Brasil. Essa economia é mantida por um
populismo penal que busca soluções na intensificação da violência,
especialmente em territórios marcados pelo confronto entre grupos organizados,
milícias e o Estado, afetando direta ou indiretamente uma vasta parcela da
população.
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Considerações preliminares – por uma arqueologia da violência racial em Goiás e
no Brasil
É
preciso compreender que, embora Ronaldo Caiado possa ser um sintoma de uma
patologia social, ele não é a causa fundamental desse fenômeno. Por isso, é
necessário aprofundar os estudos sobre o tema no contexto
socio-histórico-político e cultural do estado de Goiás.
Ao nos
debruçarmos sobre a história e reconhecendo seu caráter indelével – corroborado
pela assertiva de Mario Quintana, “o passado não conhece seu lugar, o passado
está sempre presente” –, os dados apresentados neste breve texto demonstram que
estados neocoloniais, a exemplo do Brasil, materializado em microcosmos como a
unidade federativa em que vivemos, edificam e consolidam seu poder através do
“punho visível da violência sancionada pelo Estado” (Cedric Robinson, 2023, p.
22).
Essa
violência, marcada pela fúria racial, manifesta-se sem pudor no uso de
armamento letal e em outras formas de agressão contra grupos racializados e/ou
estigmatizados pela lógica da dominação.
Como
afirma Osório (2019, p. 113), não se pode tratar a classe como “uma fórmula
onicompreensiva, capaz de explicar tudo que no final das contas acaba não
explicando nada.” No entanto, sem negar a importância do conceito,
especialmente para as ciências sociais, outras categorias também são utilizadas
na análise do problema da violência nas Américas. Portanto, o conceito de raça
e a categoria de gênero são elementos essenciais para essa análise, e,
retomando Lélia Gonzalez (2020, p. 84), “é por aí que a gente compreende a
resistência de certas análises que, ao insistirem na prioridade da luta de
classes, se negam a incorporar as categorias de raça e sexo.”
Em um
sistema político, social e econômico como o brasileiro, a raça ocupa uma
posição central na estrutura da sociedade e na distribuição da cidadania.
Apesar do mito da democracia racial, o Brasil carrega um longo passado
escravocrata, cujos efeitos se manifestam até hoje em uma desigualdade
estrutural flagrante. Essa desigualdade é visível em indicadores sociais,
econômicos e políticos, e é agravada pela violência policial seletiva e pela
privação de acesso a serviços essenciais como saúde, educação e segurança.
A
abordagem proposta neste texto se opõe à visão do Estado como um árbitro
imparcial ou um garantidor do bem-estar social. Em vez disso, o Estado é
analisado como um agente que opera a lógica da dominação e da perpetuação das
desigualdades.
Diferentemente
das análises tradicionais que o descrevem como detentor do monopólio da força e
protetor dos interesses da classe dominante (marxismo), ou como fonte de
desigualdades e hierarquias (anarquismo), nosso foco foi tentar compreender
como o Estado atua ativamente na promoção da violência. A violência policial, o
sistema prisional e as ações militares e paramilitares são exemplos claros das
formas pelas quais o Estado exerce violência física e psíquica sobre seus
cidadãos.
Nesse
sentido, destacam-se os argumentos de Osório (2019, p. 17), que evidencia que:
“o Estado é muito mais do que dominação de classes. Mas é essencialmente
dominação de classes. O Estado é muito mais do que a condensação de relações de
poder, mas é fundamentalmente a principal condensação das relações de poder. O
Estado é mais do que as relações que conformam uma comunidade, mas é
essencialmente uma comunidade, porém ilusória. Enfim, o Estado é muito mais do
que coerção. Mas é principalmente violência concentrada”.
Um
Estado que se configura como promotor da violência consolida-se por meio de
ações, omissões e estruturas estatais que instigam, facilitam ou perpetuam
diversas manifestações de violência no tecido social. Podemos aprofundar a
análise dos mecanismos pelos quais o Estado contribui para o patrocínio da
violência em outra oportunidade.
Por
fim, a promoção estatal da violência pode ser constatada e analisada nos dados
alarmantes da violência policial e sua consequente impunidade; na atuação de
grupos paramilitares e de extermínio que operam direta ou indiretamente sob a
proteção do Estado; e na ineficiência do sistema de justiça, que se manifesta
desde as formas de encarceramento até o cumprimento das penas.
Em
última análise, nota-se uma alteração intencional da lógica: o Estado, que
originalmente deveria garantir a segurança e a justiça, converte-se, por meio
de suas ações omissas e estruturais, em um promotor ativo da violência. Essa
atuação estatal encontra ressonância inclusive em setores populares, que
internalizam e propagam a crença de que a violência se combate com mais
violência. Como se diz popularmente, quando o assunto é violência, governantes
como Ronaldo Caiado buscam “apagar fogo com gasolina”.
Fonte:
A Terra é Redonda

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